Porta-te bem, coração! Se não me vires amanhã é porque parti para uma grande viagem... por causa da minha saúde!
Ides ver o meu paizinho?
Sim, meu anjo, prometo-te: hei-de ir ver o teu paizinho e talvez, então, te leve comigo...
As lágrimas estavam demasiado próximas e ela não queria que o pequenito as visse. Entregou-o a Léonarde e, suavemente, empurrou ambos na direcção da porta que Grégoire mantinha aberta. O guarda esperava no patamar.
Quando a porta se fechou, Fiora ficou imóvel no mesmo lugar, escutando, nos degraus de pedra, os passos curiosamente pesados de Léonarde a desaparecerem. Depois, ouviu o som da pesada porta que dava para o pátio... Fiora ficou só, só perante si mesma, perante o seu passado, perante os seus pecados, perante os seus amores reais ou simulados.
Tudo aquilo, disse ela para si própria, não passava de uma terrível embrulhada e mais valia que no dia seguinte à morte do seu pai tivesse morrido no juízo de Deus pela água que Hieronyma, certa de sair incólume, pedira para as duas. Há muito que o seu corpo, levado pelas águas amareladas do Arno, se teria fundido no mar azul. Philippe não teria nascido... nem Lorenza, mas Fiora sentia-se menos inquieta pela filha do que pelo filho. Lorenza viveria protegida pelo amor duplo de Agnolo e de Agnelle e talvez também pelo poder do seu pai... se Lourenço de Médícis conseguisse vencer a guerra ímpia a que o Papa o forçava. Enquanto que Philippe, se o seu pai não abandonasse o refúgio ilusório do priorado onde estava para velar ele próprio pelo seu filho, só teria Léonarde, já idosa, e a boa gente de la Rabaudière. Não teria o Rei piedade daquela criança duplamente órfã?
Quando o superior do pequeno convento encerrado nas muralhas de Plessis-lès-Tours penetrou na sua prisão para a ouvir em confissão, encontrou Fiora sentada no seu leito com as mãos pousadas tranquilamente nos joelhos.
A confissão durou muito tempo. Para ser compreendida por aquele homem simples que só ouvia os pecados dos guardas criados do castelo, Fiora teve de lhe contar uma grande parte da sua curta vida. À medida que ia falando, pareceu-lhe tudo tão estranho, tão anormal, que a jovem compreendeu perfeitamente o ar espantado do monge...
Tens a certeza, minha filha, que não estás a inventar nada? perguntou ele, horrorizado quando ela evocou as suas estranhas relações com o Papa. Será possível o nosso Santo Padre ter um comportamento tão negro?
Não me sinto surpreendida com a vossa reacção, senhor abade. Mas vós não sois italiano. A diferença está aí. Eu estou, simplesmente, a tentar fazer-vos compreender por que razão tive de cometer tantos pecados e peço-vos que mos perdoeis com a mesma sinceridade com que eu os lamento. Pensai que amanhã vou comparecer perante o tribunal de Deus. Mas Ele não terá necessidade de explicações...
Depois de o religioso ter abandonado a sua cela, Fiora, recuperada toda a sua coragem, comeu com apetite o fricassé de pato e o patê de vitela que o bom do Grégoire lhe serviu com uma bela salada e uma massa açucarada frita, tudo acompanhado com um vinho de Orleães fresco. Um pequeno cesto de cerejas terminava aquele festim a que a jovem fez as honras, recusando-se a ouvir as fungadelas do seu carcereiro e a olhar-lhe para os olhos, tão vermelhos como os de Léonarde. Após o que se deitou e adormeceu tão tranquilamente como se o dia seguinte fosse um dia como outro qualquer...
Acordando de madrugada para fazer uma longa e minuciosa toillette, Fiora voltou a vestir o vestido de que gostava particularmente, de espesso cendal branco e bordado com pequenos ramos verdes e cordões dourados entrelaçados. Incapaz de fazer a si mesma um daqueles penteados para os quais era necessária a ajuda de uma companheira, escovou cuidadosamente os seus espessos cabelos negros e fez duas tranças, que pregou na nuca com a ajuda de alfinetes, fazendo um pesado carrapito que nenhuma lâmina seria capaz de atravessar. Era a sua maneira de desafiar a morte. Em seguida, pegou num véu branco, colocou-o sobre a cabeça e enrolou-o em redor do seu longo e delgado pescoço como outrora no decurso das suas longas cavalgadas, quando viajava de vestido. Depois, esperou que a viessem buscar.
Fiora sabia que estava autorizada a ouvir missa na pequena capela dedicada a Notre-Dame de Cléry, o oratório preferido do Rei, que se situava a oeste do primeiro pátio, perto do torreão. Tornabuoni e lê Daim, esses, ouvi-la-iam na do castelo, que se situava a seguir aos aposentos reais.
Fiora apreciou aquela disposição, que a punha ao abrigo de um encontro com aqueles dois homens encarniçados na sua perda. Ao atravessar o pátio de honra para se deslocar à primeira, ela apercebeu, nos aposentos reais, uma tribuna decorada com as cores de França. Fora preparado um vasto espaço, delimitado por cordões de seda ligando quatro lanças espetadas no solo. De facto, o combate seria efectuado com espadas e adagas, para que se soubesse que não se tratava de um torneio. Sob aquele belo sol matinal, as tapeçarias azuis e douradas davam, apesar de tudo, um ar festivo àqueles preparativos.
Entretanto, tinham sido dadas ordens para que, à excepção da sua escolta armada, Fiora não se encontrasse com ninguém. Na capela só se encontravam um velho padre e o seu acólito, diante de quem ela se ajoelhou para seguir piedosamente o ofício divino e receber a Santa Comunhão. Depois, pelo mesmo caminho, levaram-na de volta à sua cela sem que encontrassem vivalma. O castelo, para além das sentinelas nas muralhas, parecia mergulhado num profundo torpor.
Uma refeição ligeira de mel, leite, pão e manteiga esperava-a e ela consumiu uma boa parte para se assegurar de que nenhuma fraqueza a trairia. O combate teria lugar ao fim da manhã, durante a última hora antes do meio-dia e já não faltava muito tempo. Assim, a jovem verificou o seu penteado e depois lavou as mãos. Estava pronta para se submeter ao seu destino, fosse ele qual fosse. E sentiu a alma em paz. Só necessitava de um pouco de coragem e pensou na sua mãe, Marie de Brévailles, que subira para o cadafalso com um sorriso nos lábios. Era verdade que partira com aquele que amava e, desse modo, as coisas tinham-lhe sido, sem dúvida, facilitadas. Fiora teria de morrer só e sem dar mostras de fraqueza. A jovem pensou que devia esse comportamento ao seu nome e à memória dos seus pais verdadeiros, assim como à do seu pai adoptivo.
O aspecto do pátio, encerrado entre os edifícios cor-de-rosa e brancos do castelo, pareceu-lhe bem diferente do que algumas horas antes quando, à hora prevista, foi conduzida ao lugar preparado para ela: uma cadeira em cima de um estrado, situada à direita e um pouco afastada da tribuna real, agora cheia de homens vestidos de escuro em redor da cadeira de braços sobrelevada de Luís XI. Este tinha ao pescoço o colar de Saint-Michel e as suas roupas, extraordinariamente, eram de veludo negro, tal como o chapéu ornamentado com medalhas e cuja aba, baixada à frente, fazia sobressair a linha do seu nariz.
Fiora saudou-o como convinha e dirigiu-se ao seu lugar. Só então a jovem viu o carrasco. Todo vestido de vermelho e com a espada ao ombro, devia ter seguido o pequeno grupo quando este saíra da prisão, mas Fiora não reparara nele.
A despeito da sua coragem, a jovem sentiu-se empalidecer quando ele se instalou a dois passos da sua cadeira com as mãos apoiadas no punho da arma cuja ponta estava espetada no solo. Então, ela obrigou-se a olhar em frente, para o espaço delimitado pelos cordões de seda. Um dos lados, na direcção da entrada do castelo, permanecia aberto, mas à excepção dessa passagem, o terreiro da liça estava rodeado por uma fila de guardas escoceses cujas armaduras polidas brilhavam ao sol sob a cota de armas com a flor-de-lis. Infelizmente, Mortimer não estava entre os presentes, assim como Commynes no grupo reduzido de conselheiros do Rei. Nenhum público, para além destes. Até a grade estava descida entre os dois pátios de Plessis. Por fim, de pé diante da tribuna, ela própria encostada à parede dos aposentos reais, estava o grande preboste, juiz do combate...
Junto dele quatro trombetas e, um pouco mais longe, quatro tambores cobertos de crepe negro.
Tristan L’Hermite virou-se lentamente para o Rei, que saudou com a rigidez de um velho soldado:
O Rei ordena que os combatentes entrem no terreiro da liça?
Com um sinal de cabeça e um gesto da mão, Luís XI disse que sim. Um instante mais tarde, anunciados pelo rufar dos tambores, Luca Tornabuoni e Olivier lê Daim faziam a sua entrada e ajoelhavam-se diante do soberano. Ambos tinham a túnica de couro e a meia-armadura apropriadas para um combate a pé. Atrás deles, um escudeiro transportava duas espadas e duas adagas. As couraças tinham-lhes sido emprestadas, porque eles não possuíam esses apetrechos de guerra, pelo menos no caso de Tornabuoni, cujo brasão fora pintado no pequeno escudo que lhe serviria de defesa. Lê Daim, não sendo nobre, mandara pintar um gamo sobre fundo azul, constituindo um brasão simbólico. Ambos arvoravam uma palidez assustadora.
Nesse momento, a grade ergueu-se para dar passagem ao pequeno cortejo constituído pelo padre e pelo Santíssimo Sacramento, diante do qual os presentes se iam ajoelhando à medida que ele passava. Uma jovem, rezando, caminhava alguns passos atrás do religioso. O seu grande toucado azulado e o seu vestido com flores-de-lís, como as cotas de malha dos escoceses, contrastavam com os trajes fúnebres do séquito real. Fiora reconheceu-a e o seu coração teve um baque: era a segunda filha do rei, Joana de França, duquesa de Orleães. E a sua chegada contrariou fortemente o seu pai:
Por Deus, minha filha, que vindes aqui fazer? exclamou ele depois de a custódia ter sido depositada num altar portátil coberto de tecido dourado ali instalado por dois monges.
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