A jovem princesa, dobrando o joelho com humildade, ergueu corajosamente para o seu pai o rosto ingrato e os olhos magníficos cuja cor era a mesma do grande céu azul daquela manhã.

Ainda não sei, Sire meu pai, mas pareceu-me que tinha de vir ter convosco a partir do momento em que pedistes a Deus que vos assistisse no vosso julgamento.

Como diacho soubestes disto no vosso castelo?

Recebi uma carta, Sire disse Joana, que não sabia mentir.

Uma carta de quem?

Permiti que vos dê a minha resposta no fim do combate...

Como vos agradar! Aliás, duvido que vos agrade. Bem, já que estais aqui, vinde sentar-vos junto de mim e passemos ao que se segue.

O seu olhar sombrio pousou-se nos dois homens ainda de joelhos:

Mantendes as acusações contra a dame de Selongey aqui presente?

Apenas Tornabuoni respondeu ”sim” com alguma firmeza na voz. O seu companheiro, cujos dentes batiam apesar da doçura da manhã, contentou-se em acenar com a cabeça, incapaz de falar.

Confessastes-vos, ouvistes missa e recebestes a Santa Comunhão? E, mesmo assim, mantendes o que dizeis?

Ambos responderam da mesma forma. O olhar do Rei era fulgurante, mas o soberano permitiu que os cantos da sua boca esboçassem um sorriso:

Nós pensamos saber por que razão demonstrais tanta certeza e tanta coragem, aliás bem-aventurada disse ele, trocista. Pensais que, como messire Mortimer e messire de Commynes não podem ser campeões daquela que acusais, mais ninguém arriscará a vida por uma causa tão má! Pois então olhai! E vós, trombetas, soai! Parece-me que vem lá um cavaleiro!

A grade, com efeito, erguia-se ainda mais e deixava passar três cavaleiros: um em traje de viagem, os dois outros de armadura... e uma imensa alegria inundou o coração de Fiora: porque se o primeiro era Commynes, um dos outros dois, que na cota de armas ostentava as águias de prata, era Philippe de Selongey...

Transposta a porta, os três homens puseram pé em terra e avançaram juntos na direcção da tribuna, diante da qual Tornabuoni e Olivier lê Daim os viam aproximar com um vago terror, persuadidos, sem dúvida, de que as regras do combate iam alterar-se e que teriam de enfrentar, pelo menos, dois dos guerreiros. Chegados diante do Rei, os três saudaram ao mesmo tempo e Commynes disse:

Sire, messire Mortimer e eu próprio cumprimos a missão de que o Rei nos deu a honra de nos encarregar. Que o nosso Sire permita que lhe apresente o conde Philippe de Selongey, cavaleiro da mui nobre ordem do Tosão d’Ouro, que se apresenta perante vós de sua livre vontade para defender a causa e a vida da sua mulher injustamente acusada. Ele aceita, naturalmente, o combate até à morte.

Do seu lugar, reparando no perfil acerado de Philippe, Fiora sentiu o seu coração derreter-se de amor. Nunca ele lhe parecera mais magnífico nem mais orgulhoso! Luís XI debruçou-se para ele com um cotovelo apoiado num joelho:

Agrada-nos acolher-vos nesta liça, conde de Selongey Contávamos, com efeito, que vos apercebêsseis do grave perigo em que se encontrava a condessa... devido à sua imprudência.

Se o que me disseram é exacto, Sire e eu não tenho razão para duvidar, não vejo aqui nenhuma imprudência, antes a inocência surpreendida e é com alegria que vou combater, com a permissão do Rei e em conjunto com estes dois homens que ousaram acusá-la pelos motivos mais baixos: o ciúme e a cupidez...

Um momento! Antes de entrardes em liça, é bom que esclareçamos a vossa posição perante nós. Vós fostes condenado à morte uma vez por nos terdes estendido uma armadilha e nos terdes tentado assassinar.

A palavra é grosseira, Sire protestou Philippe. Nós estávamos em guerra e vós éreis o mais mortal inimigo do meu senhor, monsenhor Carlos de Borgonha, que Deus tenha na sua guarda!

Admitamos! A condessa conseguiu, não apenas a vossa graça, mas também a vossa liberdade, que vos foi devolvida sem condições. O nosso governador de Dijon atingiu-vos, uma segunda vez, com a sentença de morte por terdes tentado sublevar o povo... Deixai-nos falar sem interromper, por favor! rosnou ele quando Philippe já abria a boca. Dessa vez, só a nossa vontade vos poupou a vida para não fazer chorar uns olhos demasiado belos, mas ficastes prisioneiro no nosso castelo de Pierre-Scíze... de onde vos evadistes. É exacto?

Selongey esboçou uma saudação para mostrar que estava de acordo.

Portanto continuou o Rei aos nossos olhos, sois um prisioneiro em fuga e, como tal, temos o direito de vos punir se, por acaso, conseguirdes aqui a vitória. Esperamos que os nossos mensageiros vos tenham exposto claramente a situação...

Um ligeiro sorriso abriu a boca arrogante de Philippe:

Não ignoro nada do que me espera. Messire de Commynes, em particular... que eu não tinha o prazer de ver desde que ele abandonou... um pouco depressa de mais o serviço de monsenhor Carlos, foi extremamente claro nesse ponto. Hoje, apenas uma coisa me interessa: arrancar àquele carrasco que vejo ali a mulher que usa o meu nome e que me deu um filho...

Um filho que vós não pareceis muito interessado em conhecer? Não apenas sois um marido estranho, senhor conde, como sois, também, um pai curioso...

Aqueles que quiseram permanecer fiéis ao seu juramento feudal e à memória do defunto duque vivem tempos cruéis, Sir e pela minha parte, cansado de acordos coxos e concessões demasiado fáceis, preferi servir a Deus! Só Ele me parecia suficientemente grande...

Para ter direito à vossa homenagem? Embora isso não seja muito amável para a nossa pessoa, estamos longe de vos censurar por terdes escolhido um tão grande senhor, um senhor do qual nós, reis e príncipes, não seremos nunca senão humildes criados. Mas não estamos certos de que essa escolha tão nobre apague o juramento prestado diante do altar a uma jovem que está no direito de esperar de vós amor e protecção.

Não o esqueci e é por isso que vou combater por ela...

Dois adversários ao mesmo tempo, já pensastes? Sabemos que não é conforme às regras da cavalaria, mas não duvidando da vossa vinda e conhecendo o vosso valor, pareceu-nos que, assim, as forças ficariam mais equilibradas...

Olhando para os seus adversários, o sorriso de Philippe carregou-se de indizível desdém:

Há alguns anos vi lutar, em Florença, messire Tornabuoni e creio ter-lhe dito, então, o que pensava dos seus... talentos guerreiros. O outro não conheço, se não por tê-lo ouvido mentir...

Pretensioso insuportável! rugiu o florentino vou-te mostrar do que sou capaz. Lembra-te que só a vontade do meu primo Lourenço de Médicis me impediu, então, de te cortar as orelhas!

Uma vontade que veio bem a propósito. Quanto às minhas orelhas, não têm muito a temer. Quando quiserdes, meus senhores!

Selongey recebeu das mãos de Mortimer o seu elmo e das de Commynes a sua espada e o seu escudo. Após uma última saudação ao Rei, o cavaleiro foi ajoelhar-se por breves instantes perante o Santíssimo Sacramento para receber a bênção do padre. Os dois outros seguiram-no, o infeliz barbeiro sobre umas pernas mal seguras que fizeram sorrir Tristan l’Hermite. Por fim, os três colocaram-se às ordens do preboste, que iria dirigir o combate, para ouvirem as regras. Nesse momento, a voz de Luís XI fez-se ouvir:

Só mais um momento! Regressai aqui, meus senhores!

Quando eles se alinharam na sua frente, o Rei deu-se ao prazer de os encarar à vez e, detendo o seu olhar agudo, difícil de sustentar, em Selongey, disse suavemente:

Messire Philippe, nunca houve amizade entre nós, mas vós sois de alta linhagem e nós estimamos demasiado a vossa bravura para vos infligir a afronta de combaterdes contra mestre Olivier lê Daim, que não é se não o nosso barbeiro e a quem não quisemos fazer cavaleiro. É um poltrão indigno de usar armas. Defrontareis, portanto, apenas o embaixador de Florença, que é de nascimento nobre...

O alívio do barbeiro foi de tal modo evidente que a assembleia foi percorrida por uma risada. Mas Selongey não se riu:

Se ele insultou uma dama, merece a punição que lhe vou infligir, cortando-lhe a garganta. Para isso será suficiente a adaga, não sujarei a minha espada...

Tudo bem, tudo bem! Por Deus, senhor conde, nós compreendemos a vossa cólera, mas não nos priveis do nosso barbeiro! No entanto acrescentou ele com uma súbita dureza as vilanias provadas de mestre Olivier valer-lhe-ão ser aprisionado no nosso castelo de Loches durante o tempo que nos apetecer. Depois, se decidirmos devolver-lhe a luz, deverá expiar o perjúrio de que é culpado perante Deus indo rezar ao túmulo de Santiago de Compostela, na Galiza. Levai-o, Mortimer, até que o nosso grande preboste tenha vagar para se ocupar dele!

Será uma alegria, Sire! suspirou Tristan l’Hermite. O Rei deseja que o combate comece, agora?

O Rei fez sinal de que não tinha mais nada a dizer, enquanto levavam o barbeiro aos berros e a espernear. Entretanto, Philippe dirigiu-se a Fiora e, pegando na sua espada pela ponta, estendeu-lha para que ela pousasse, por um instante, os dedos no punho, como o exigia a antiga tradição. Se bem que já não fosse muito respeitada, parecia que, naquela manhã, as tradições tinham a parte melhor. Philippe fazia questão naquela:

Madame disse ele em voz suficientemente alta para que todos ouvissem aceitais-me como vosso campeão?

Ela tocou na arma com uma mão trémula e através das lágrimas que não conseguia reter ofereceu ao marido um olhar radiante de amor.

Sim... mas, por amor de Deus, tende cuidado, porque, se vos acontecer qualquer coisa, serei eu a chamar a morte...

Selongey teve um pequeno sorriso e acrescentou em voz baixa: