Suplico-vos, mesmo que me vejais tombar, que não vos atireis para o meio da liça, como fizestes em Nancy. Não gostaria de reviver uma tal cena...

Em seguida, Philippe juntou-se ao seu adversário, ao mesmo tempo que os tambores faziam ouvir o seu rufar lento, de tal modo sinistro que gelou o sangue de Fiora. Tornabuoni, a jovem sabia-o, não era um inimigo negligenciável. Em Florença, não tendo mais nada que fazer, exercitava-se com as armas, arte que Philippe não praticava, certamente, há muitos meses. Uma oração fervorosa e silenciosa ergueu-se do seu coração em direcção ao céu:

Não por mim, Senhor, mas por Vós, visto que ele Vos escolheu, fazei com que viva!

Entretanto, no instante em que os tambores se calaram, o grande preboste gritou:

Que os combatentes avancem e que Deus faça o seu juízo!

O combate começou com uma extrema violência. Sem sequer se estudarem mutuamente, Selongey e Tornabuoni atiraram-se um ao outro, resolvidos a exterminarem-se. Sob os golpes das espadas, os escudos soavam como sinos, mas depressa se tornou evidente que Philippe tinha a vantagem da estatura

Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


e também da força. Tendo esquivado com habilidade uma bota manhosa dirigida ao seu ventre, o borgonhês atirou-se ao seu adversário e os seus golpes começaram a chover, tão densos como granizo em Abril. Luca recuou, recuou, esforçando-se por proteger a cabeça e sem conseguir desferir qualquer golpe. Foi salvo quando tocou nos cordões do recinto: o juiz ordenou a Philippe que o deixasse ganhar um pouco de espaço. Este obedeceu e recuou. O outro aproveitou para se atirar atrás da sua espada como um aríete, na intenção evidente de reatar o golpe falhado momentos antes: trespassar-lhe o ventre a despeito da protecção. Fiora reteve, por pouco, um grito, mas Philippe tinha demasiada experiência das diversas formas de combate para se deixar surpreender. O cavaleiro esquivou o golpe com a agilidade de um bailarino e o florentino, levado pelo impulso, quase trespassou Tristan l’Hermite, que o empurrou com vigor. Luca resmungou uma desculpa e girou nos calcanhares para enfrentar de novo Philippe, mas este já estava sobre ele. Largando a espada, desferiu um soco no adversário que o estendeu por terra. Em seguida, atirou-se para cima dele e, tirando a adaga, encostou-lha tranquilamente à garganta:

Eu tinha-te dito que um justador italiano não tinha hipótese contra um cavaleiro borgonhês ironizou ele. Diz as tuas orações!

Misericórdia! Misericórdia!... Piedade! Sim, eu menti para que o Rei acreditasse que conspiráveis juntos, tu e Fiora... Mas...

Se ainda tens muitas coisas para dizer, despacha-te, porque já não tenho paciência para ti...

A criança... existe... mas o Magnífico é que é o pai! Misericórdia!

Philippe ergueu o punhal. Um grito do Rei deteve-o...

Alto!

Sem largar o seu inimigo vencido, Philippe virou a cabeça para a tribuna.

O combate é até à morte, Sire, recordo-vo-lo. A vida deste homem pertence-me.

Nesse caso, concedei-ma! Ele é um miserável e Deus julgou bem, mas também é um embaixador e, além disso, pertence à família Médícis. Não gostaríamos de ofender, mais do que o necessário, o senhor Lourenço, que tem a nossa amizade.

Selongey ergueu-se, mas não guardou a adaga na bainha e manteve o vencido debaixo de olho:

Que se cumpra a vontade do Rei! Mas posso perguntar quais são as suas intenções?

Ele vai regressar a Florença sob uma boa escolta e munido de uma carta nossa expondo o que acaba de acontecer. Não ficaremos surpreendidos se o senhor Lourenço lhe reservar algumas manifestações de descontentamento. Guardas! Levai-o para o quarto dele, onde ficará retido até à partida.

Enquanto isso, compreendendo que nada mais tinha a fazer ali e que a sua presença não era desejada, o carrasco inclinou-se perante Fiora e, com a espada ao ombro, encaminhou-se para a torre da Justiça no primeiro pátio. Fiora, essa, morria de desejo de se atirar a Philippe, mas não ousou mexer-se sem a autorização do Rei. A jovem respondeu com um movimento gracioso de cabeça à saudação do executor e esperou. Entretanto, Philippe avançou até junto da tribuna real e sem pôr o joelho em terra como o costume exigia:

A vida e a honra de donna Fiora estão salvas, Sire, como Deus quis. Quanto a mim, sou agora prisioneiro do Rei!

É assim que o entendemos, mas, antes de decidir, respondei a uma pergunta! Se vos devolvêssemos a liberdade, que faríeis?

Regressaria para o lugar de onde vim, Sire!

Oh!...

Se bem que ligeiro, o queixume de Fiora foi ouvido pelo Rei que, com um gesto, lhe impôs silêncio.

Regressaríeis ao convento?

Sim, Sire. Não pretendo servir outro senhor que não Deus. Que o Rei me perdoe!

Não vos podemos reprovar um tão alto desígnio, mas essa liberdade não passa de uma suposição. De facto, damos-vos a escolher duas perspectivas: ou regressais às vossas terras da Borgonha, que continuam a ser vossas, com a vossa mulher e o vosso filho, prometendo manter-vos tranquilo, ou tereis diante de vós longos e alegres anos no castelo de Loches, numa das nossas masmorras! Vinde aqui, donna Fiora!

A jovem avançou lentamente até junto do seu marido, para o qual não ousou olhar.

Sire! disse ela, erguendo para o soberano os seus olhos cheios de lágrimas corajosamente contidas suplico ao Rei que não force messire de Selongey a uma escolha penosa. Que o Rei lhe permita regressar ao priorado de Notre-Dame!

E vós, Madame, que vai ser de vós?

O que agradar ao Rei, mas suplico-lhe que me permita viver em paz. Sinto-me infinitamente cansada...

Não admira! De qualquer maneira, conservareis la Rabaudière, que vos foi dada a título definitivo, a vós e aos vossos descendentes. Mas... que temos agora?

Era a princesa Joana, que no fim do combate tinha abandonado a tribuna depois de o seu pai lhe ter dito qualquer coisa ao ouvido. Pela mão, a jovem segurava o pequeno Philippe e Léonarde seguia-a.

Como toda a gente, Philippe virara a cabeça na direcção do olhar do Rei. O grupo encantador, formado pelo pequenito e pela pequena princesa defeituosa que ele parecia apoiar, fê-lo fixar o olhar. Então, Joana deteve-se:

Quereis ir abraçar messire vosso pai? perguntou ela docemente.

O petiz, olhando maravilhado para aquele grande cavaleiro vestido de armadura, extremamente semelhante à imagem que ele fazia do pai, não hesitou um momento. Estendendo os pequenos braços, correu para ele, ao mesmo tempo que Philippe se ajoelhava para o receber sem o apertar com muita força, porque o contacto com o aço não tinha nada de agradável. Mas abraçou-o com um fervor que fez sorrir Luís XI. Este fingiu que não viu as duas lágrimas que deslizavam pelas faces do intratável senhor de Selongey.

Creio suspirou ele que estamos entendidos! Levantando-se penosamente do seu trono, o Rei desceu os três degraus que iam da tribuna ao saibro do pátio.

Nós não vamos exigir que nos presteis vassalagem disse ele severamente a Philippe. Mas exigimos de vós a promessa formal de que não nos prejudicareis mais e, em seu devido tempo, de que não ensinareis os vossos filhos a odiar a França, antes pelo contrário, que os ensinareis a servi-la. Não esqueçais que Selongey está na Borgonha e que a Borgonha regressou à nossa coroa, como o exige a lei feudal, no caso de um príncipe Valois morrer sem herdeiros masculinos.

Philippe, que se levantara, pousou o filho e o pequenito aproveitou para correr para a mãe. O cavaleiro olhou por um instante para aquele homenzinho estranho mais baixo do que ele uma cabeça, aquele homenzinho que tinha tão pouco ar de Rei... salvo em momentos como aquele, em que irradiava uma majestade incrível. Lentamente, Philippe pôs um joelho em terra e estendeu o braço:

Pela minha honra e pelo meu nome, Sire, juro. Nunca mais os de Selongey pegarão em armas contra o Rei de França.

Agradecemos-vos! Bem, donna Fiora, eis-vos em família. É a vós que confiamos este rebelde! É a vós que cabe a sua guarda e nós não duvidamos...

Não, Sire, por piedade! Eu não quero essa responsabilidade...

Fazei dela o que quiserdes! Damos-vos as boas-tardes. Então, minha filha acrescentou ele, virando-se para a duquesa de Orleães estais contente?

Estou, Sire! Na verdade, nunca duvidei da vossa justiça. Mas, por que infligistes a donna Fiora esta longa penitência, esta angústia, este medo de perder a vida? Tínheis mesmo necessidade de apelar a Deus?

Sempre a falar, ela e Luís XI afastaram-se na direcção dos aposentos reais. O Rei sorriu e, baixando a voz, inclinou-se para ser mais bem ouvido:

É evidente que não! Compreendi rapidamente que aquela infeliz era vítima de uma conspiração, mas era preciso que todos a acreditassem em perigo de vida para conseguir que o teimoso do marido saísse do seu covil...

Mas, e ela? Por que não a avisastes?

Porque, mesmo assim, ela cometeu suficientes tolices para merecer uma boa lição. E proíbo-vos de lhe dizer seja o que for. Não gosto muito de explicar os meandros dos meus pensamentos! E agora, minha filha, vamos para a mesa! Na verdade, tudo isto me abriu o apetite!

Fiora, com Philippe, o filho de ambos e Léonarde, regressavam a cavalo à Casa das Pervincas, mas os dois esposos ainda não tinham trocado uma única palavra. Selongey levava o filho diante de si, na sela, e não cessava de o contemplar. Entretanto, Fiora sentia-se triste por o seu marido não ter dado sinais, até ao momento, de que ela existia. Ele e o pequenito pareciam fechados num mundo só deles, um mundo onde não havia lugar para ela...

Assim, quando atingiram a alameda de carvalhos cheios de musgo que ia dar à casa, a jovem aproximou-se do marido.