E não deixou umas palavras, umas linhas?

Nada! Péronnelle disse-me que nos últimos tempos, durante a nossa ausência, ela se encontrou secretamente, disse ela, mas numa aldeia é difícil impedir que as línguas comecem a trabalhar com um senhor jovem e belo...

Luca Tornabuoni, meu antigo apaixonado, que depois da conspiração dos Pazzi quase fez com que os carrascos de Florença a retalhassem. Se não tivesse ouvido aquele miserável com os meus próprios ouvidos, não teria acreditado...

Oh. Eu soube umas coisas que podem explicar esse facto surpreendente. Aquela pobre Khatoun e Florent eram... digamos, muito amigos. Além disso, creio que pensava não ter, na vossa casa, o lugar a que tinha direito e tinha alguns ciúmes de toda a gente.

Eu não lhe confiei o meu filho? Que outra prova de estima poderia dar-lhe?

Estima, estima! Ela queria amor... e, sobretudo, nenhuma responsabilidade! Quer queirais, quer não, Khatoun foi feita para a vida preguiçosa de um harém, para uma vida de doçuras e carícias...

Receio bem que não as consiga junto de Luca! Ele é um egoísta refinado. Se, ao menos, soubéssemos onde ela está!

Não, Fiora! Não conteis comigo para a procurar, mesmo que eu pudesse. Ela já tem idade suficiente para continuar sozinha e acaba de vos fazer mal!

Pouca coisa, comparada com tantos anos de dedicação! Oh, Léonarde! Fico tão preocupada com ela...

Léonarde não disse que preferia ver Fiora preocupada com Khatoun do que com ela própria. Aquele caso do julgamento de Deus não lhe agradava nada. No entanto, a angústia ainda não a oprimia, porque acabava de ter uma ideia: enviar uma carta à princesa Joana para o castelo de Lignières, pedindo-lhe que interviesse. Era verdade que a princesa não tinha grande poder sobre o seu terrível pai, mas a velha solteirona sabia que, perante o seu olhar verdadeiramente celestial, o Rei ficava pouco à-vontade. Podia-se pedir tudo àquele coração angélico. À falta de Mortimer, enviado, assim parecia, na véspera, em missão pelo Rei, à falta de Commynes, expedido da mesma maneira, sem dúvida para lhes tirar a vontade de entrar na liça por Fiora, Léonarde pensou confiar a sua carta a Archie Ayrlie, aquele escocês que ensinara Florent a montar. Era bom rapaz, que fora mais de uma vez esvaziar alguns jarros à Casa das Pervincas. Se ele não pudesse ir a Lignières, arranjaria forma de mandar Florent. Quanto a encontrá-lo, Léonarde não teria dificuldade, já que o via muitas vezes quando ia ao jardim com Philippe, onde o pequenito tinha autorização para passear.

O combate teria lugar na terça-feira do dia 29 de Junho, festa de São Pedro e São Paulo. Com o seu perfeito conhecimento do calendário, Luís XI escolhera aquele dia porque o Papa, sucessor de São Pedro, estava mais ou menos implicado, na pessoa do seu sobrinho, naquela história sombria. O Rei nunca perdia uma ocasião para se reconciliar com o céu, ou de o chamar em seu socorro. Pelo seu lado, Léonarde, quase tão piedosa como o soberano, acrescentara aos dois príncipes dos Apóstolos a longa lista dos hóspedes do Paraíso que ela invocava todos os dias em prol da paz e felicidade do ”seu cordeiro”...

No entanto, à medida que os dias se iam passando, Léonarde ia perdendo o sono. A velha solteirona escrevera a sua carta e Archie Ayrlie encarregara-se dela de boa vontade. Ao mesmo tempo, tomara mil precauções para não ser vista por ninguém ao entregar-lha no jardim, o único sítio onde beneficiava de alguma liberdade. Não voltara a ver o escocês e não possuía nenhum meio de saber se a sua missiva chegara a bom porto.

Com efeito, Léonarde também se encontrava submetida a estreita vigilância, não podendo sair do seu alojamento senão escoltada por um arqueiro e na companhia do pequeno Philippe. Era-lhe proibido sair sozinha. Para além desse guarda, que a levava todos os dias à prisão para se encontrar com Fiora, ou ao jardim para as saídas do pequenito, não tinha afinidades senão com as duas criadas encarregadas de a servir. Nem uma única vez se encontrou com o Rei, cujas trompas de caça se ouviam frequentemente no pátio de honra. Da sua janela podia ver aqueles que entravam ou saíam, mas como não os conhecia, essas idas e vindas não tinham grande significado. Então, quando não estava junto de Fiora e quando o pequenito dormia, passava horas a olhar para a pequena janela com grades do austero edifício em frente, que iluminava a prisioneira, e rezava, rezava para que um homem de bem, um cavaleiro digno desse nome aceitasse arriscar a sua vida para que a jovem não perdesse a sua...

Pela sua parte, Fiora preocupava-se muito menos, entregue a uma espécie de fatalismo que lhe retirava todo o medo dessa morte a mesma que o seu pai e a sua mãe tinham sofrido à qual tinha poucas hipóteses de escapar. Nem sequer queria mal a Luís XI pelo jogo cruel que inventara. O Rei sabia-o, temia tanto mais a morte quanto avançava na idade e se a sua coragem física permanecia a mesma quando ia para a guerra, o assassinato manhoso, pérfido, causava-lhe um verdadeiro horror. Talvez porque, após os seus dezoito anos de reinado e até antes, quando não passava de um delfim ferozmente hostil ao seu pai Carlos VII a sua inteligência aguda lhe permitira evitar armadilhas, traições e emboscadas. Ora, aquela carta infeliz falava no seu assassinato. No fundo, o Rei dera mostras de uma grande brandura ao propor o duelo judiciário, podia ter mandado executar em segredo a pseudoculpada ou pô-la a apodrecer, com os ossos partidos, no fundo de uma masmorra qualquer...

Então, Fiora esforçou-se por atirar para longe de si a evocação desse dia ameaçador, para se consagrar por inteiro ao seu filho. Não vivera muito tempo junto dele e descobria-o com delícia, encantando-se com a sua beleza e inteligência precoce. Nunca tendo visto outra coisa que não sorrisos e não tendo recebido outra coisa que não carícias, o pequenito era uma criança muito alegre. A despeito de um carácter já em afirmação, tinha uma grande alegria de viver e transbordava de ternura pela sua mãe, a quem apelidava, por vezes, de ”minha bela dama”.

Para explicar o facto de Fiora não o acompanhar nunca ao jardim, tinham-lhe dito que ela estivera doente e que precisava de repouso. Apesar de aceitar a explicação sem discutir, Philippe não conseguia compreender por que razão a sua mãe não vivia com Léonarde e ele no castelo, antes no ”quarto reles” que, na sua lógica infantil, não era próprio para uma convalescença. O pequenito não dizia nada, mas demonstrava a Fiora ainda mais amor. Ele, tão turbulento, ficava horas sentado nos joelhos da mãe, encostado ao seu peito, ouvindo histórias e recebendo beijos...

Meu Deus! rezava interiormente Léonarde. Fazei com que depois deste combate idiota a nossa Fiora recupere a liberdade. Senão... oh, nem ouso pensar no que acontecerá!

O mês de Junho passou, doce e florido, com as manifestações alegres da festa do Corpo-de-Deus, que despojaram por completo as roseiras dos arredores e do São João que acendeu, chegada a noite, grandes fogueiras nas praças de todas as aldeias e no pátio de todos os castelos. Em Plessis, Fiora, se ouviu os cânticos e os gritos de alegria, não viu o reflexo da imensa fogueira que a Guarda Escocesa acendeu no primeiro pátio, em frente dos seus aquartelamentos. O seu quarto permaneceu obscuro, como se quisessem fazer-lhe sentir que estava na antecâmara da morte.

Quando pensava no Rei, era com mais tristeza do que cólera, porque se sentia ligada àquele homem a envelhecer, cuja grande fronte abrigava um espírito tão subtil, uma inteligência tão universal. E eis que aquele cérebro excepcional permitira que o medo do assassínio vencesse a amizade, a quase afeição que sentia por ”donna Fiora”. Aquela amizade, depois de ter ajudado a jovem a viver, quebrara-se por causa de uma simples folha de papel, por causa de umas simples linhas cuja letra o Rei não quisera ver que era falsa. Pior ainda, o Rei recusara os dois campeões que se tinham, espontaneamente, oferecido para defender a sua causa e para ter a certeza de que não perturbariam a sua festa macabra, mandara-os para longe. Então, quando esses pensamentos lhe vinham à mente, Fiora ajoelhava-se e rezava...

Chegou o último dia...

Quando Léonarde levou o pequeno Philippe, bem disse que a poeira lhe irritava os olhos, mas era evidente que chorara durante toda a noite. E, de facto, as notícias não eram tranquilizadoras: nem Commynes, nem Mortimer, tinham aparecido e Archie Ayrlie confiara à velha solteirona que, tanto quanto sabia, não se apresentara nenhum campeão. O escocês acrescentara que eram muitos aqueles que, na Guarda, desejavam oferecer as suas armas à prisioneira, mas era de temer que o Rei os rejeitasse, tal como rejeitara Mortimer.

O dia foi longo e penoso para as duas mulheres. Pelo pequenito, mantiveram a atitude habitual, sorrindo-lhe e brincando com ele. Fiora conseguiu-o melhor do que Léonarde, talvez porque não tivesse, realmente, medo. A jovem só lamentava deixar os que amava, não poder abraçar pela última vez a sua querida Lorenza que, essa, nunca conheceria a sua mãe.

No momento de se separarem, ela abraçou Léonarde com uma ternura infinita.

Vós, que sois tão piedosa sussurrou ela, sentindo as lágrimas da velha solteirona na face devíeis ter mais confiança em Deus. Ele é que vai decidir amanhã e, se não quiser que eu morra, nem o Rei nem ninguém poderá fazer o contrário...

É verdade, meu cordeiro, tendes razão e eu não passo de uma velha tola. Mas vou rezar, rezar, rezar tanto que o Senhor há-de ouvir-me! Tenho confiança e se amanhã à noite não vos puder apertar nos braços como agora, quererá dizer que Deus não existe. Mas, nesse aspecto, estou tranquila...

Então, Fiora apertou o seu filho contra o coração e guardou-o ali um instante, cobrindo de beijos ligeiros os caracóis sedosos e a pequena fronte tão suave.