Um grito de aprovação saudou aquelas palavras ferozes que encheram de repugnância a alma de Fiora. Nunca imaginara que o seu antigo apaixonado fosse capaz de esconder sob um rosto de deus grego uma alma negra e os apetites dos mesmos Pazzi que queria degolar. Resolutamente, a jovem avançou para ele e colocou a sua mula de través na rua. Chiara seguiu-a e os dois criados fizeram o mesmo, abandonando a pobre Colomba, persuadida de que as duas jovens iam ser massacradas e invocando os santos do Paraíso com grandes gritos e lágrimas.
Esta é, sem dúvida, uma das facetas da tua coragem? lançou Fiora, desdenhosa, quando ficou suficientemente perto para se fazer ouvir. Quem pretendes tu degolar?
Olha! Fiora? Pensei que não quisesses dirigir-me mais a palavra? disse Luca com um sorriso que ela achou medonho.
Não é a ti que eu estou a falar: é a um assassino em potência...
Subitamente, a jovem sentiu-se desmaiar, porque acabava de reconhecer os dois infelizes, um homem e uma mulher, que uns brutos obrigavam a caminhar à força a despeito da sua evidente fraqueza. Estavam ambos cobertos de poeira, esfarrapados e tinham os rostos cobertos de sangue. Mas eram, incontestavelmente, Carlo Pazzi e Khatoun. Com um grito de horror, Fiora forçou a sua mula através da multidão sem se preocupar com o que os cascos do animal pudessem esmagar. Como Chiara e os dois criados a seguissem, as pessoas afastaram-se, tanto mais que alguns sussurravam à sua passagem: ”É a Fiora!... a amiguinha de monsenhor Lourenço... Chegada junto das duas vítimas que, esgotadas, se tinham deixado cair por terra de joelhos, a jovem desmontou e agarrou-se a Khatoun. E como um dos brutos tentasse impedi-la, ela lançou-lhe:
Atreve-te a tocar-me e serás enforcado! Esta jovem nunca foi uma Pazzi. Chama-se Khatoun, é tártara e é minha escrava.
Em seguida, virando-se, furiosa, na direcção de Luca que se tinha aproximado:
Não me digas que não a reconheceste? Viste-a mais de cem vezes em casa do meu pai!
Oh, é possível! grunhiu ele mas, que faz ela com ele? Não me digas que ele também não é um Pazzi? É o lamentável Carlo, o aborto que a família escondia com tanto cuidado. Reconheci-o quando o vi atravessar a ponte com a rapariga.
Nesse caso, a culpa disto tudo é tua?
Pois claro! Nenhum Pazzi deve ficar vivo nesta terra que eles sujaram lançou ele com grande eloquência. Reconheço que posso ter cometido um erro no que diz respeito à tua escrava e, como tal, devolvo-ta. Leva-a e deixa-nos, para acabarmos com o outro!
Chiara já se tinha apoderado da pobre pequena e os seus criados levavam-na para a loja de um boticário que acabava de se abrir para ela. Dava pena olhar para o pobre Carlo. Com as longas e esguias pernas dobradas, os olhos fechados e o rosto da cor da cinza, respirava com dificuldade e só o punho dos seus carrascos o impediam de se abater. Fiora compreendeu que o combate ainda não terminara:
Está fora de questão tu e os teus... amigos disporem da sua vida. Essa decisão pertence a monsenhor Lourenço.
Já disse que lhe levaremos a sua cabeça.
Mas eu não tenho a certeza, de que isso lhe agradará. Ele proibiu os actos de justiça demasiado expeditos e mais vale não desencadear a sua cólera.
A sua cólera? Por esta escória da humanidade? Estás a esquecer-te de uma coisa: foi a sua fortuna que pagou os assassinos de Giuliano.
Uma fortuna de que ele não dispunha. Ele era refém de Francesco Pazzi e é por isso que eu digo que só o Magnífico pode decidir da sua sorte. Estais a ouvir? acrescentou ela, erguendo a voz. Vamos, todos juntos, conduzir Carlo Pazzi ao palácio da Via Larga! Podeis estar certos de que o nosso príncipe ficará mais reconhecido perante uma homenagem viva do que perante uma homenagem morta!
Os gritos de descontentamento que se tinham erguido quando ela se tinha atirado para a batalha apaziguaram-se sensivelmente. A jovem falava em nome do senhor de Florença e aquela gente pensava que ela tinha esse direito. Fiora conseguiu, até, alguns grunhidos de aprovação ao acrescentar que, provavelmente, Lourenço saberia recompensá-los. Mas as coisas quase pioraram de novo quando ela pediu que Carlo fosse içado para a sua mula.
Ele aguentou até aqui, pode muito bem aguentar até ao palácio! exclamou uma espécie de colosso cujos braços nus, ostentando braceletes de couro e cuja túnica, manchada de sangue enegrecido, o classificavam como pertencente à corporação dos carniceiros.
Fiora encolheu os ombros:
Então, leva-o tu! És suficientemente forte para isso. Não vês que ele está meio-morto? Um cadáver não te renderá nenhuma moeda.
A jovem conseguiu o que queria: Carlo foi atirado como um saco para a garupa da mula cujas rédeas ela mesma segurava. Fiora sabia que a situação era difícil, mas por nada deste mundo, mesmo que tivesse de perder o amor de Lourenço, abandonaria àqueles brutos o estranho rapaz que se declarara seu amigo quando a terra inteira se unia contra ela. Nesse instante, Chiara saiu da loja do boticário e abarcou a cena com um simples olhar, mas Fiora não lhe deu tempo para emitir a sua opinião.
Leva Khatoun para tua casa, por favor! pediu ela docemente. Eu vou lá ter daqui a pouco.
Não vais regressar a Fiesole?
Não. Preciso de ver, antes, Lourenço.
E a jovem retomou o seu caminho à cabeça de uma multidão agora mais curiosa do que verdadeiramente excitada. Luca Tornabuoni marchava a seu lado com feições amuadas e o carniceiro ia do outro lado da mula. Ninguém disse uma palavra até que, ao virar de uma esquina, a silhueta imponente e familiar do palácio Médicis apareceu com as suas enormes pedras aparelhadas e as suas janelas abobadadas. Em tempos, qualquer um teria podido transpor a soleira e penetrar, pelo menos, no grande pátio quadrado, mas agora o portão era guardado por guardas armados. A nobre morada devia ao assassinato de Giuliano o facto de ter perdido o carácter amável e bondoso que a tornava tão atraente. Ganhara a severidade altiva que Fiora vira nos palácios romanos. Decididamente, Florença mudara muito! Bem entendido, os soldados cruzaram as armas à chegada daquela multidão sombria e vagamente ameaçadora. E só as descruzaram quando Luca Tornabuoni se deu a conhecer, mas Fiora reclamou Savaglio e o capitão da guarda apareceu. Fiel ao seu hábito, este foi de um humor massacrante:
Que se passa? gritou ele. Eu já disse que não queria reuniões em frente desta casa. Dispersai! Deixa-me, ao menos, entrar com esta mula e estes dois homens lançou Fiora. Quero ver monsenhor Lourenço.
O olhar de Savaglio, vivo e acerado, deteve-se em cada uma das três fisionomias e depois no corpo inerte:
Ser Luca. não precisa de autorização para ver o primo e tu também não, donna Fiora, mas esses dois outros não me parecem familiares. E essa gente?
Eles esperarão tranquilamente enquanto eu lhe falo a sós
- insistiu a jovem. Ele está?
No seu gabinete. Eu levo-te lá...
Eu também quero ir! exclamou Tornabuoni e não percebo por que...
Vamos! Primeiro as damas! disse o chefe da guarda e o seu sorriso de lobo dizia da pouca estima que sentia pelo jovem. Estou certo que donna Fiora não demorará muito. Tu podes bem esperar mais um momento...
Sempre a falar, Savaglio deu a volta à mula, procurando aperceber o rosto do homem que o animal transportava:
Está morto?
Não. Simplesmente desmaiado, creio eu, mas talvez precise de alguns cuidados! É Carlo Pazzi, messer Savaglio. Acabava de entrar em Florença quando foi atacado...
Cuidados a um Pazzi! Dás-te conta, Savaglio?
Fiora aproximou-se de Luca, o suficiente para que ele ouvisse o seu sussurro:
Toda a gente, aqui, sabe que ele é um inocente disse ela entredentes. No entanto, lembra-te, Luca, que uma das irmãs de Lourenço está casada com um Pazzi... e que esse não foi inquietado... Só Lourenço poderá julgar este... e eu inclinar-me-ei perante a sua decisão.
Sem esperar pela resposta, a jovem dirigiu-se em passo rápido para a íngreme escadaria que ia dar aos andares superiores logo seguida por um criado encarregado de a anunciar, já que Savaglio decidira, em última instância, ficar de olho naquele bando que não lhe inspirava nenhuma confiança.
Atrás do dorso solene do criado, Fiora percorreu as divisões cuja magnificência lhe era familiar. A jovem conhecia, há muito, as grandes tapeçarias tecidas a ouro, os móveis preciosos dispersos numa desordem propositada sobre espessos tapetes vindos da Pérsia ou do longínquo Cathay os aparadores atafulhados de objectos de ouro, de prata ou de cobre, incrustados de pedras preciosas, todo o luxo que uma grande fortuna e um gosto sem defeito podiam reunir em torno de um homem. Fiora penetrou, enfim, numa divisão onde uns grandes armários pintados, subindo até ao tecto armoriado e dourado, deixavam ver uma profusão de livros encadernados a couro, a pergaminho, a veludo e até a prata cinzelada. No momento da sua entrada, Lourenço de Médícis saía tão impetuosamente que quase a atirou por terra. Ele reteve-a e apertou-a um instante contra si:
Tu? Que bela surpresa!... Espera por mim um instante, tenho de ir ver que tumulto é este...
Eu venho, justamente, falar-te dele. Este tumulto é um pouco por minha causa. Anda ver!
Ela levou-o até à galeria que dava para o pátio e mostrou-lhe o pequeno grupo formado por Luca, a mula que Savaglio livrava da sua carga sem grande suavidade e o carniceiro.
Exigi que o teu primo e a horda que ele reuniu para degolar aquele infeliz sobre o túmulo de Giuliano o trouxessem primeiro até aqui para que tu decidisses.
Parece-me que o conheço disse Lourenço, semicerrando os olhos míopes para ver melhor. Dir-se-ia que é Carlo Pazzi, o Inocente É ele mesmo. Acaba de chegar de Roma na companhia de Khatoun, a minha antiga escrava tártara que Catarina Sforza me deu. O teu primo e um bando de brutos estavam a maltratá-los quando eu intervim com Chiara e dois criados. Khatoun, a esta hora, já deve estar no palácio Albizzi, onde estão a tratar dela. Agora, cabe-te a ti decidir da sorte de Carlo, mas devo prevenir-te que não suportarei que lhe façam mal.
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