À custa de um violento esforço que o fez empalidecer ainda um pouco mais, Carlo conseguiu sentar-se.

O que eu perguntaria a mim próprio, se estivesse no teu lugar, seria como conservá-la. Mas, ao fim e ao cabo, talvez não estejas muito interessado.

Carlo procurava um apoio para se poder pôr de pé. Fiora precipitou-se, sentou-se junto dele e, passando-lhe um braço em redor dos ombros, obrigou-o a ficar imóvel, enxugando com a ajuda do seu lenço o suor que lhe perlava a fronte.

Onde tencionais ir?

Servir de pasto àqueles corvos aos gritos disse ele com uma pequena risada. Mas não vão ter grande coisa: eu já estou meio-morto. Até certo ponto, fazem-me um favor...

Vamos juntos, Carlo. Monsenhor Lourenço nunca foi capaz de impor a sua lei quando Florença se incendeia. Uma maneira como outra qualquer de a fazer acreditar que ainda é uma república...

O desdém que vibrava na voz da jovem esbofeteou Lourenço:

Dispenso os teus sarcasmos, Fiora! Ficai ambos tranquilos! Já é tempo, com efeito, que se saiba quem manda aqui!

Dez minutos mais tarde, a via Larga reencontrava o seu aspecto habitual. A chuva cessara tão subitamente como surgira e os guardas do palácio retomavam a cadência do seu lento passeio. Um pouco por toda a parte, na grande artéria, as persianas desciam sobre as lojas. Os comerciantes saíam das suas casas, como os outros homens, porque era a hora sagrada da passeggiata, hora a que, enquanto as suas mulheres se afadigavam na preparação da refeição da noite, os florentinos juntavam-se diante do Duomo, da Senhoria ou no Mercato Vecchio para discutir os negócios do dia ou falar de política. Os jovens elegantes,

1 Passeio


esses, escolhiam antes a ponte Santa Trinita, que conhecia sempre, ao pôr do Sol, a mais brilhante das animações. Paradoxalmente, era também a hora em que os muros da cidade pareciam ressumar uma estranha melancolia, aquela morbidezza que tinha um certo encanto e que os sinos do Ângelus acompanhavam como outras tantas vozes celestes. As dos homens suavizavam-se e um doce murmúrio erguia-se sobre a cidade.

Encostada a um dos armários marchetados que aumentavam a profundidade das seteiras, Fiora deixava o seu olhar divagar pelos grupos de trajes e gibões de cores escuras que, em passo tranquilo, se dirigiam para o encontro vespertino conversando polidamente. Aquela cidade parecia, na verdade, incompreensível, uma cidade que fazia da arte de viver e dos sábios preceitos da filosofia o supra-sumo da civilização e que, ao mesmo tempo, paria uma multidão uivadora ávida de sangue e capaz de cobrir as suas ruas e praças de despojos humanos.

Carlo, deitado de novo no seu banco, tinha os olhos fechados. Parecia sofrer e, com toda a evidência, o seu estado necessitava da presença de um médico... Quando Lourenço regressou, encontrou Fiora de pé junto dele e segurando-lhe na mão:

Dir-se-ia que conseguiste dispersá-los? constatou a jovem. Que lhes disseste?

Que ele morreu disse ele, designando com o queixo o corpo estendido.

Fiora teve um leve sorriso, suficientemente desdenhoso para traduzir o seu pensamento, melhor do que quaisquer palavras. Lourenço encolheu os ombros, furioso:

Ainda não estás satisfeita, pois não? Que significa esse sorriso?

Nada... ou muito pouco! Simplesmente, pergunto a mim própria se ousarás algum dia, um só, opor a tua vontade a um tumulto. O que me espanta é eles não terem reclamado o corpo para o fazerem em fanicos sobre o túmulo de Giuliano!

Eles reclamaram-no. Sobretudo aquele burro do Luca. Mandei-o para casa, acrescentando que, se o visse outra vez a brincar aos caudilhos, o atirava para a Stinche como rebelde.

1 A prisão de Florença


E depois?

Não te ponhas com esse ar de juiz presidindo a um tribunal, Fiora! Estás a irritar-me! Lembrei a minha interdição de tocar em qualquer sepultura, seja ela qual for. E, para o provar, disse que Pazzi seria enterrado secretamente onde eu achasse que devia ser enterrado... E agora vou mandar levá-lo para um quarto.

Para que os teus criados saibam que mentiste? Rica ideia! Não podias, também, pensar na tua mãe e na tua mulher?

Nem uma nem outra estão cá. Mandei-as para a villa di Castello assim que o bom tempo regressou, para que possam encontrar paz e sossego. Quanto aos meus criados...

Esquece-os! Ou antes, diz àqueles em quem mais confias que preparem uma liteira que feche bem e que reunam uma escolta comandada por Savaglio. Vou levar Carlo para minha casa, para Fiesole. Ninguém o tratará tão bem como Demétrios.

Queres partir esta noite? Isso é uma loucura! O povo vai fazer perguntas ao ver uma liteira tão bem guardada!

Não fará perguntas nenhumas pela simples razão de que, aqui, ninguém ignora que eu sou a tua favorita do momento. Ninguém se mostrará surpreendido por tu mostrares alguma solicitude.

Ele reflectiu por uns momentos e depois, aproximando-se da jovem, tomou-a nos braços sem parecer aperceber-se da sua ligeira resistência e escondeu-lhe o rosto no pescoço:

Então, façamos melhor ainda! murmurou ele. Savaglio fica aqui e eu próprio te escoltarei.

Queres?...

Por que não? Já que toda a gente está ao corrente, não há razão para não agirmos à luz do dia. Arrisco-me apenas, ao longo do caminho, a receber algumas piadas lascivas sobre os prazeres que vou ter à noite. Não, não digas nada! Lembra-te da minha carta: não quero ficar sem ti mais uma noite...

Ora, nessa noite, Fiora não reencontrou a felicidade indolente que conhecera durante as últimas semanas. Talvez porque não se sentisse verdadeiramente livre. No quarto vizinho, vazio até àquela noite, Carlo repousava, profundamente adormecido graças à droga administrada por Demétrios para lhe acalmar as dores. O jovem sofria, de várias costelas partidas, sem contar com as diversas esfoladelas no rosto e no couro cabeludo. Mas a sua presença no outro lado da parede incomodava Fiora e nem toda a arte amorosa de Lourenço foi capaz de a descontrair...

Após se saciar uma primeira vez, este apercebeu-se e após algumas tentativas para acordar naquele belo corpo um ardor igual ao seu, acabou por se deixar cair no leito, os olhos fixos no dossel cujas cortinas brancas os envolviam com uma luminosidade rosada provocada pela vela.

Devias ter-me dito a verdade - suspirou ele. Já não me amas?

Eu nunca te disse que te amava murmurou Fiora. Tu também não, aliás...

Estou a prová-lo, parece-me?

Não. Estás a provar o teu desejo, o teu coração não é para aí chamado.

Mas estou cheio de ciúmes e, há pouco, teria estrangulado aquele infeliz.

E isso será mesmo ciúme? Tu sabes que ele não fez nada e que nunca poderia haver nada entre nós. Não será antes por ele ser um Pazzi?

Talvez... se bem que ele me inspire, antes de mais, piedade. Mas tu, Fiora, que te diz o teu coração acerca de mim?

Honestamente, não sei. Eu gosto do amor que tu me dás e o meu corpo excita-se quando tu te aproximas...

Esta noite não, em todo o caso!

Concordo... mas não me queiras mal por isso: o dia foi difícil.

Além disso, não suportas a ideia de uma presença no outro lado da parede?

Também. Sinto um incómodo bizarro... como se fôssemos verdadeiramente casados.

De repente, a jovem ouviu-o rir-se:

Se é só isso!

Saltando do leito, ele enfiou os calções e as botas, enrolou Fiora num lençol, atirou-lhe para cima com algumas almofadas apesar dos seus protestos e depois, agarrando no todo saiu do quarto, desceu as escadas, atravessou o vestíbulo e desatou a correr através do jardim ainda molhado da última chuvada até à pequena gruta onde Francesco Beltrami gostava de se refugiar durante os dias quentes de Verão. Uma tina e uma bica com cabeça de leão ocupavam o centro e a canção da água acalmava o espírito muitas vezes acabrunhado do grande negociante.

Lourenço pousou Fiora no chão, espalhou as almofadas e deixou-se cair em cima delas com a jovem, que desenrolara, entretanto, do lençol, como se fora um pião:

Pronto! declarou ele alegremente. Acabaram-se os vizinhos incómodos! Doravante amar-nos-emos aqui.

Fiora não pôde resistir. Arrebatada por uma sarabanda louca de carícias, deixou que a sua necessidade de amor e a sua juventude levassem a melhor.

No dia seguinte, através da magia do Magnífico, a pequena gruta, vestida com grandes lírios de água, de cetins irisados, de cristais glaucos e com um tapete sedoso que lembrava erva azul, assemelhava-se aos retiros encantados dos contos orientais. O amor experimentou ali um sabor novo porque se libertava dos constrangimentos impostos pela grande villa e dava aos dois amantes a impressão deliciosa de estarem sós no coração do primeiro jardim do mundo.

Uma noite em que, após se terem banhado e feito amor na tina e enquanto Lourenço enxugava com um cuidado devoto o corpo de Fiora, esta, que molhava os lábios numa taça de vinho de Chipre, suspirou, estendendo-a ao amante:

Tenho vergonha de mim própria, Lourenço... Nunca conseguirei arrancar-me a ti...

Espero bem que não. E por que razão nos havíamos de separar?

Esqueces que tenho um filho, que não o vejo há meses... e que tenho saudades dele.

Eu mando-o vir em breve. Sabes, eu penso muito em nós e não me faltam projectos. Até dei ordens para que reparem, para ti, o antigo palácio Grazzini. Viverás lá com o teu filho e os teus criados sob o nome de Selongey. Não... não digas nada! Farei do teu filho um dos primeiros homens de Florença. Será rico, poderoso e nada o impedirá, chegada a ocasião, de ir servir com as suas armas o soberano que quiser escolher... Quanto a nós, ficaremos juntos, minha flor preciosa, e poderei continuar a rodear-te de cuidados... e de amor.