Dá-me autorização para te vir ver, Fiora! Tenho de te falar! Diz-me que posso vir!

Inclinando-se no corrimão, a interpelada lançou:

Eu não estou em minha casa. Além disso, não me apetece ver-te!

Aquela declaração definitiva não impediu Luca de regressar durante o dia, mas Fiora recusou recebê-lo, assim como no dia seguinte. A jovem procurou compreender por que razão aquele rapaz, em tempos seu cavaleiro ardente e cujas homenagens ela aceitava porque era belo e decorativo, mas sem lhe retribuir os sentimentos, desejava tanto aproximar-se de novo. Ainda por cima porque, segundo Chiara, era casado e pai de uma criança.

Se começo a ter relações com todos os homens casados da cidade, a minha reputação desaparece num instante confiou ela a Chiara. Além disso, não tenho vontade nenhuma de lhe falar.

O bom tempo regressara e instalava-se para satisfação geral, se bem que as pessoas sérias se recusassem a ver uma relação entre os caprichos do céu e os despojos mortais de Jacopo Pazzi. Que, aliás, abandonara Florença definitivamente pela via do rio, para onde o magistrado de justiça o mandara atirar do alto da ponte Rubaconte.

Nesse dia, as duas amigas, que saíam de boa vontade para as ruas de uma Florença enfim tranquilizada, decidiram subir a San Miniato. O tempo dos espinheiros-alvar e das violetas já tinha passado, mas Fiora e Chiara tinham a mesma predilecção por aquele local encantador de onde se desfrutava, sobre Florença, a mais bela vista da região. As chuvadas recentes não tinham causado grandes estragos em redor da velha igreja e do velho palácio dos bispos. Ciprestes orgulhosos enegreciam o alto da colina, qual barreira erguida contra o assalto da vegetação que três dias de sol tinham tornado exuberante.

Do alto do pequeno terraço da igreja as duas jovens contemplaram por um momento a cidade estendida a seus pés e irisada de uma pequena bruma anunciadora de calor. O perfume das ervas, da erva-cidreira, da hortelã e do funcho subia vindo das hortas situadas mais abaixo. O ar era de uma doçura delicada e no grande céu azul as andorinhas passavam como delgadas flechas negras.

Sentada na erva por baixo de um pinheiro e mascando uma das suas agulhas, Fiora sentia-se entorpecida sob o prazer daquele instante, em que voltava a encontrar a cidade que amava, onde podia, sem ideias preconcebidas, deixar-se invadir pela sua graça e beleza. Nem Chiara, nem ela, sentiam a necessidade de falar, certas da harmonia tranquila por onde vogavam os seus espíritos. Instalada um pouco mais longe, Colomba dormia encostada a uma árvore, o nariz encostado ao grande regaço.

Fiora estava quase a imitar a governanta quando uma sombra se interpôs entre ela e a paisagem. A jovem teve um sobressalto ao reconhecer Luca Tornabuoni, que acabava de pôr um joelho em terra para estar à sua altura. De imediato irritada, a sua reacção foi instantânea:

Vai-te! Já te disse que não te queria ver mais!

Um instante, Fiora! É só um instante! Eu sei que tu me queres mal.

Quero-te mal? Eu já me tinha esquecido da tua existência. Não foi boa ideia fazeres-ma recordar!

Não sejas tão dura! Eu sei que me portei mal contigo, mas tenho sofrido tanto desde então...

Sofrido? Tu sabes lá o que isso quer dizer! Basta olhar para ti para ver como tens sofrido estes últimos anos: tens um aspecto soberbo, aparentas uma bela prosperidade e disseram-me que tens uma esposa jovem e um filho! Na verdade, tudo isso é de chorar.

Deixa-me, ao menos, defender a minha causa! Chiara, peço-te, deixa-me uns momentos a sós com ela.

Mas esta, em vez de se afastar, estendeu-se sobre a erva:

Por minha fé, não! Estou aqui muito bem. De qualquer maneira, ela não te quer ouvir. Ela não gosta de poltrões.

Eu não sou um poltrão e sabei-lo muito bem, as duas! Eu bato-me galhardamente nos torneios.

Isso está ao alcance de qualquer imbecil, desde que tenha músculos, armas e um cavalo bem treinado disse Fiora em tom cortante. A coragem não é isso.

Que devia fazer, então? Afrontar sozinho uma multidão encolerizada? Aquilo foi terrível...

Achas que eu não sei? Que devias ter feito? Correr para mim, estender essa mão, de que eu necessitava tanto, em meu socorro. Ficar a meu lado. Mas fugiste como um coelho perseguido. Se não fosse Lourenço...

Que fez ele de extraordinário, o meu primo? Podia salvar-te e não o fez disse Luca com amargura.

Fez mais do que imaginas e se hoje estou viva, a ele o devo.

E tu pagas-lhe regiamente, pelo que dizem? Tornaste-te amante dele. É verdade, de facto, mas não vejo que isso te diga respeito?

Mas, eu amo-te! Nunca deixei de te amar e estou arrependido. Queria ir em teu socorro, mas o meu pai fechou-me e...

E tu achaste mais confortável continuar fechado. Após o que te apressaste a oferecer os teus votos a outra. Ou o meu amigo Demétrios sonhou ao ver-te na companhia de uma bela ruiva? Acabemos com isto, Luca! Eu ouvia-te com prazer, antigamente, mas não te amava. Nunca te amei. Como queres tu, agora, que me interesse por ti?

A jovem levantara-se para se afastar dele. Ele estendeu as mãos suplicantes para a reter, mas a seda do seu vestido negro deslizou-lhe por entre os dedos. Chiara levantou-se, também ela, e colocou-se entre os dois, naturalmente. Pousou uma mão apaziguadora pelo ombro do jovem:

Esquece-a, Luca! Tu apaixonaste-te outra vez quando a viste, mas pareces uma criança que reclama um brinquedo durante muito tempo desdenhado só porque o dão a um irmão, e que tem uma birra para o recuperar. Não se força o coração de uma mulher...

Ah sim? E ela amava Lourenço, naquele tempo? No entanto, agora é dele!

Eu não sou de ninguém... senão de uma recordação! exclamou Fiora quase a perder a paciência. Talvez, com efeito, eu devesse qualquer coisa ao teu primo, mas a ti não devo nada! Portanto, deixa de me importunar e vai-te embora! Regressa para junto dos teus! Eu não quero voltar a ver-te ou a ouvir-te.

Uma brusca cólera corou o belo rosto de Luca e incendiou-lhe os olhos negros:

Nunca te verás livre de mim, Fiora! E por São Lucas, meu patrono, saberei levar-te aonde quero!

O teu santo patrono era médico. Pede-lhe que te cure, porque estás em vias de perder o espírito. Seria a coisa mais sensata!

Metendo o braço no de Chiara, a jovem encaminhou-se para junto de Colomba que, devido às vozes exaltadas, já há muito estava acordada e seguia a cena com as feições esfomeadas de um amador apaixonado por romances. Compreendendo que não ganhava nada em insistir, Luca Tornabuoni dirigiu-se para o seu cavalo, que estava preso a um dos anéis de bronze do palácio episcopal. O gesto que dirigiu ao grupo formado pelas três mulheres tanto podia significar um adeus como uma ameaça.

Podes dizer-me o que lhe deu? perguntou Fiora, encolhendo os ombros.

Vá-se lá saber! Talvez seja sincero quando diz que nunca te esqueceu, se bem que Cecília, a mulher dele, seja encantadora. Sobretudo, acredito que a sua atitude actual se explica de três maneiras: viu-te de novo, sabe que Lourenço é teu amante... e aborrece-se, como acontece quando se é rico, pouco culto e não se sabe o que fazer do tempo de que se dispõe. No entanto, tem cuidado: o amor de uma criança estragada pode tornar-se uma fonte de sarilhos. Sobretudo se decidires instalar-te aqui.

Veremos! Posso sempre regressar a França.

De regresso ao palácio Albizzi, Fiora encontrou um bilhete que lhe tinha sido enviado à hora do meio-dia. Continha apenas algumas palavras e ela corou um pouco ao lê-las, sem poder conter um sorriso:

”Só penso em ti! Vem! A estátua é muito menos bela do que tu. Ou estás amanhã à noite nos meus braços, ou vou-te buscar. L.

A jovem dobrou o bilhete e meteu-o no corpete com um gesto um pouco nervoso de mais. Chiara desatou a rir:

Ele reclama-te?

Sim.

E... tu não tens vontade nenhuma de o fazer esperar?

Não...

Entendido! Amanhã acompanhar-te-emos até às muralhas, Colomba e eu, e dar-te-ei dois criados para te acompanharem o resto do caminho.

Por que não vens, tu, passar uns dias comigo a Fiesole?

Talvez mais tarde... Lourenço não gostaria nada da minha presença e a mim não me apetece nada desagradar-lhe.

No dia seguinte, na via Calzaiuoli, Fiora, Chiara e Colomba, que tinham ido comprar tecidos ligeiros a pensar nos calores do Verão, saíam de uma loja e encaminhavam-se para as suas mulas guardadas por dois criados quando a rua se encheu de uma multidão aos berros e gesticulando, armada de paus, de facas e objectos diversos, que gritava ”Morte aos Pazzi. Justiça!... Liberdade!... À morte o Pazzi e a rapariga amarela!”

Jesus! gemeu Chiara. Ei-los que recomeçam! Dir-se-ia que encontraram mais um!

O efeito dos gritos foi mágico. Num abrir e fechar de olhos, os artigos foram retirados das montras, as persianas estalaram e o local ficou deserto.

Talvez fizéssemos bem em fugir, também nós? tentou Colomba, que tentava subir para a sua mula ajudada por um dos criados. Mas Fiora, já na sua sela, não a ouviu. Pelo contrário, a jovem fez avançar o seu animal alguns passos na direcção da multidão.

Não! gritou Chiara, inquieta. Vais fazer com que te façam em postas!

Olha quem lidera a multidão! disse ela, apontando com a chibata para o cavaleiro que marchava à cabeça da horda e que se virava para vigiar qualquer coisa.

Chiara juntou-se à amiga.

É Luca! sussurrou ela, estupefacta. O que é que lhe deu para brincar aos caudilhos? E um caudilho bem encarniçado!

Com efeito, a voz de Tornabuoni parecia dar ordens:

Ainda não! Não vamos matá-los já! Degolá-los-emos sobre a tumba de Giuliano e levaremos as suas cabeças ao meu primo Lourenço!