Também incrivelmente distraído, os acontecimentos exteriores passavam por ele sem deixar vestígios. Assim, durante o jantar, durante qual Colomba serviu pombos recheados com ervas finas, uma das suas glórias, mostrou-se extremamente surpreendido por ter encontrado, no seu caminho, ao sair de casa do seu amigo sábio Toscanelli, o cadáver do velho Pazzi, arrastado por um bando de homens e mulheres.

Foi-me difícil reconhecê-lo, o cadáver está em muito mau estado. Aliás, não percebi bem o que estava ali o cadáver do Pazzi a fazer, porque nem sequer sabia que ele tinha morrido.

Meu querido tio disse Chiara, rindo-se que cataclismo seria necessário para te arrancar aos teus estudos e interessar-te pela vida da cidade? Depois da morte do irmão, Lourenço de Médicis e a Senhoria decidiram exterminar os Pazzi. Já te esqueceste que o palácio deles ardeu há quinze dias?

E verdade! Já me lembro, na ocasião pensei que tinha sido uma das nossas chaminés que se tinha incendiado. Em todo o caso, aquele bravo Petrucci desatou a berrar, dizendo que era preciso parar aquele passeio repugnante porque o Sol tinha regressado e então não compreendi mais nada. O que é que o Sol tem a ver com aquilo tudo? O Sol não brilha todos os dias em Florença?

Há mais de um mês que não brilhava, mas parece que não deste por isso? Aquela pobre gente pensava que a chuva incessante era provocada pelo facto de terem enterrado Pazzi, cúmplice de Satanás, numa igreja. Espero, de qualquer modo, que o enterrem noutro lado qualquer!

Ah bom! Ah!... Muito bem! Enterrá-lo? Sim, creio que Petrucci disse qualquer coisa acerca disso. Vão enterrar o velho bandido perto das muralhas, para os lados da porta San Ambrogio, parece. Colomba! Dá-me mais meio pombo...

Terminada a refeição, foi em busca de um grande gato preto e branco que dormitava em frente da chaminé, meteu-o debaixo do braço e regressou ao seu gabinete de trabalho após ter desejado uma boa noite às duas raparigas.

Estas partilharam o leito de Chiara, tal como noutros tempos. Tinham sempre que dizer uma à outra e naquela noite, claro, mais do que nunca. Desse modo se passou uma boa parte da noite. Uma bela noite, tranquila, a primeira desde há muitas semanas e o luar, velado por uma ligeira névoa de reflexos nacarados, iluminava o quarto com uma luz ligeiramente misteriosa. Uma acácia branca metia um ramo pela janela de Chiara, deixando cair no tapete as suas frágeis flores de perfume delicado. Naquela atmosfera plena da doçura de outros tempos, Fiora abandonou o seu coração à amiga como nunca antes, mesmo a Demétrios. Chiara, sendo mulher, podia compreender os arrebatamentos secretos de outra mulher como nenhum homem.

Tal como o médico, Chiara encorajou a sua amiga a manter secreto o seu infeliz casamento com Carlo Pazzi.

Nós vamos ter guerra e Roma vai estar, em breve, muito mais longe de Florença do que está na realidade. Tens todas as hipóteses de nunca mais ver esse pobre rapaz.

Não deixo de estar menos casada e ele comportou-se como um amigo. E sei que se sente infeliz longe da sua querida casa de Trespiano. Se, ao menos, eu conseguisse que lha devolvessem!

Compreendo a tua preocupação, mas espera ainda um pouco. Lourenço parece um esfolado vivo depois do crime. Tu adoças-lhe as noites, sem dúvida, mas deves desconfiar das suas reacções. Por outro lado, como pensas organizar o teu futuro? Não podes continuar nessa situação falsa provocada pela... pela paixão dele!

Queres dizer capricho e eu creio que essa é a palavra certa. Quem era a amante de Lourenço antes de eu regressar? Porque estou certa de que ele tinha uma?

Tinha. Bartolommea del Nasi. Uma bela rapariga, não muito astuta, mas a família é-o o suficiente por ela. Eles podem achar desagradável o facto de a tua presença ter feito secar a sua fonte de rendimento. Arriscas-te a ficar em perigo.

Não me parece que queiram ficar com um crime na consciência. Mais tarde ou mais cedo, afastar-me-ei de Lourenço. Simplesmente, não o quero ferir.

Sê franca! Nem renunciar ao que encontras junto dele?

É verdade. Gostaria que esta situação se prolongasse mais um pouco. Aliás, pelo que diz, também ele deseja que isto dure muito tempo; propôs-me mandar alguém a Plessis para trazer o meu filho e Léonarde, mas eu ainda não me resolvi a aceitar. Não sei porquê, porque seria no interesse da criança. Educado aqui, receberia, naturalmente, toda a educação necessária para continuar os negócios do meu pai.

Não estás a falar a sério?

Estou. Desde que nasceu que desejo fazer dele um homem igual ao meu pai: corajoso, letrado, humano, generoso e aberto à beleza. Parece-te inverosímil?

É a minha vez de ser franca: sim.

Mas porquê?

Não fui eu que casei com messire de Selongey! Esqueces-te que o teu filho também é dele, que tem um grande nome no seu país, mesmo que pertença a um homem que pagou com o cadafalso a sua fidelidade a uma causa perdida. Não podes fazer dele um burguês florentino...

Não vejo que isso o possa diminuir?

É possível que não, mas ele verá, um dia. Quando for grande fará perguntas às quais terás de responder. E então, quem te diz que ele não preferirá uma vida miserável, uma vida de proscrito de acordo com a escolha do pai, à vida faustosa que tu sonhas para ele, mas na qual não se reconhecerá? Tu foste desenraizada e sabes o que isso custa. Não faças com que o teu filho sofra o mesmo! Educa-o no amor e na recordação do teu marido...

E isso é incompatível com a vida de alta personagem da nossa cidade?

Talvez não, na condição de que não sejas então, e há muito tempo, a amante de Lourenço. Eu sei acrescentou Chiara, sorrindo que parece que te estou a votar a uma austeridade para a qual não foste feita, mas creio que, se tivesse um filho, dedicar-me-ia a ele com alegria...

Sem responder, Fiora passou um braço pelo pescoço da amiga, beijou-a e deixou o seu rosto encostado ao dela, sem se dar conta de que as lágrimas lhe corriam pelas faces.

Não chores disse Chiara. Estou certa que ainda tens belos dias pela frente... E agora, se dormíssemos? A alvorada está a chegar.

Não foi o dia que as acordou, antes um verdadeiro uivo lançado por Colomba. Num abrir e fechar de olhos, viram-se de pés nus e em camisa nos degraus de mármore da escadaria, correndo na direcção da grande porta do palácio, aberta, na entrada da qual estava Colomba desmaiada. Uma criada dava-lhe pancadinhas nas faces sem convicção, ao mesmo tempo que, no exterior, um criado erguia o punho e lançava injúrias. Um jovem elegante juntara a sua voz à do servo e de Lodovico Albizzi que, em roupão e com o gato debaixo do braço, batia com os pés no chão e lançava gritos inarticulados.

Ao juntarem-se-lhes, as duas jovens viram um bando de rapazes que se afastava dançando e arrastando uma coisa qualquer na ponta de uma corda.

O que é que se passa, meu tio? perguntou Chiara, inquieta ao ver o ancião vermelho de furor.

Ah, é o velho diabo do Jacopo Pazzi! Continuam a arrastá-lo pelas ruas! Nunca vi um morto mexer-se tanto...

Fiora soube o que se passara pela boca de Colomba, enquanto a obrigava a beber umas gotas de aguardente. Enquanto velava pela preparação da primeira refeição, a governanta de Chiara ouvira, na rua, um bando de rapazes a cantar. Um instante depois, a aldraba da porta era vigorosamente agitada. Colomba fora abrir e fora então que lançara o grito que acordara uma parte da casa: preso na corrente da campainha, balouçava um cadáver meio decomposto, ao mesmo tempo que, em redor, os rapazes riam e gritavam:

Bate à porta, ser Jacopo! Bate à porta! Abri a messer Jacopo di Pazzi!

A chegada intempestiva do elegante jovem a cavalo pô-los em fuga. Apressaram-se a retirar o seu trofeu odioso e levaram-no, arrastando-o, mas o odor pavoroso parecia ter ficado colado às pedras da soleira e Fiora, por sua vez, sentiu-se empalidecer:

Não poderemos levar donna Colomba para dentro? perguntou ela, ao mesmo tempo que Chiara se esforçava por fazer com que o seu tio entrasse também, obstinado em continuar a gesticular e em chamar a Milícia.

Evidentemente exclamou o jovem, que puxou o criado por um dos braços. É para já!

Fiora afastou-se e os dois, entre eles, transportaram Colomba, cujas pernas trémulas pareciam incapazes, para o interior da casa. Mas, ao erguê-la, o seu olhar encontrou o da jovem e não conseguiu suster a doente:

Madona Santíssima! És tu?... Tinham-me dito que tinhas regressado, mas não acreditei.

Porquê? Pensavas que tinha morrido? Seria, evidentemente, mais cómodo para a tua tranquilidade de espírito.

O olhar irónico de Fiora media, com mais divertimento do que rancor, o seu antigo apaixonado. Luca Tornabuoni continuava tão belo como nos tempos em que lutava ardentemente pela mão de Fiora; talvez estivesse, ainda, mais belo, porque, em três anos, perdera aquele aspecto um pouco frágil da juventude e, ao mesmo tempo, o seu lado ternurento. No entanto, Fiora sabia da cobardia que se escondia por trás daquele rosto cujo perfil era digno de ser esculpido em bronze. No dia da catástrofe em que mergulhara a sua vida, Luca apressara-se a desaparecer no meio da multidão sem tentar socorrer aquela de quem, entretanto, se dizia tão apaixonado.

Então, que esperais? exclamou Albizzi, que se decidira a entrar. Um pouco de nervo, que diabo! Ainda deixais cair a pobre mulher. E vós, as raparigas, que estais aí a fazer? acrescentou ele na direcção da sobrinha e de Fiora. Talvez seja distraído, mas não ao ponto de não reparar que estais ambas em camisa! Em camisa! E na rua! Toca a andar! Para dentro!

De mãos dadas, as duas jovens voltaram a subir a escadaria a correr e a rir, ao mesmo tempo que Luca gritava: