Sem responder, Lourenço debruçou-se na balaustrada e ordenou ao seu capitão que levassem o prisioneiro até ele. Em seguida, levou Fiora pelo braço até à biblioteca, onde a fez sentar perto de um grande vaso de ametista incrustado de pérolas, a principal maravilha daquela divisão.

De onde conheces tu Carlo Pazzi? perguntou ele, por fim, e a sua voz incisiva tinha aquela ressonância metálica de que Fiora aprendera a desconfiar.

De Roma. Foi ele que me ajudou a fugir a meias com a condessa Riario. Tenho de te lembrar a carta que te trouxe? Ambos desejavam ardentemente que o atentado falhasse.

Donna Catarina tinha uma razão disse o Magnífico com um encolher de ombros. Ela amava o meu irmão. Mas ele, que razão poderia ter?

Tu foste bom para ele, ao ponto de o quereres confiar aos cuidados de Demétrios. Ele estava persuadido de que tu eras o seu único amigo nesta cidade.

A entrada de Savaglio, seguido dos dois guardas segurando Carlo, interrompeu a jovem. Com os olhos fechados, o infeliz respirava com dificuldade e no seu rosto magro o sangue deixara, ao secar, traços negros. Estenderam-no sobre uma espécie de banco guarnecido de almofadas. Com o pescoço torcido que o obrigava a manter a cabeça inclinada e os longos membros franzinos privados de vida, parecia-se com um fantoche desarticulado. Cheia de piedade, Fiora foi ajoelhar-se junto dele reclamando água fresca, ligaduras, sais e um pouco de aguardente. Um criado trouxe o que ela pedira e juntou os seus esforços aos da jovem para tentar reanimar o infeliz. De pé por trás de ambos, Lourenço, com o olhar carregado de nuvens, observava-os. Por fim, quando já começavam a desesperar, o ferido exalou um profundo suspiro e abriu penosamente os olhos. Mas qualquer coisa brilhou nas profundezas azuis ao reconhecer o rosto inclinado sobre si.

Fiora! sussurrou ele. É um milagre! Estais... estais bem?

A pergunta, feita com voz infantil mas comovedora, fê-la sorrir. Apesar de meio-morto, o primeiro pensamento daquele estranho rapaz fora para a sua saúde.

Muito bem, Carlo... e graças a vós. Com efeito, é um milagre estarmos os dois juntos, mas, que viestes aqui fazer? Não sabíeis o perigo que corríeis?

Oh sim! Mas não podia ficar em Roma. O Papa está furioso com os Médicis... e convosco. Só fala de guerra! Quanto a mim, já não era senão um vestígio das suas esperanças defuntas e teria sido morto se donna Catarina não me tivesse escondido. Foi ela que nos deu os meios para que Khatoun e eu pudéssemos sair de Roma. Khatoun queria juntar-se a vós...

E vós? Queríeis assim tanto encontrar-me?

Seguiu-se um pequeno silêncio e o rosto ferido esboçou a sombra de um sorriso tímido.

Não. Eu sabia que não teríeis nenhum prazer em me ver de novo. O que eu esperava... era regressar ao meu jardim de Trespiano. Vivi lá os únicos dias felizes da minha vida. Quanto à comédia que nos fizeram representar, gostaria que a esquecêsseis e que continuásseis a viver como se eu não existisse...

Qual comédia?

Aquela pergunta fora feita pela voz áspera e brutal de Lourenço. Erguendo a cabeça para ele, Fiora viu a prega amarga da sua boca e a luz inquietante acesa pela cólera nos seus olhos negros. A jovem conhecia-o demasiado bem para ignorar que o Magnífico não se contentaria com uma meia verdade. Sem largar a mão de Carlo que, cansado de falar, se abandonava à fadiga, Fiora declarou com uma voz que só o Magnífico poderia ouvir:

Na véspera do dia em que fugi de Roma, o Papa casou-nos na sua capela privada...

Nesse momento, como se o céu estivesse à espera daquelas palavras para manifestar a sua desaprovação, um violento trovão rolou de uma ponta à outra da cidade e uma chuva diluviana abateu-se, saudada de imediato por um clamor rancoroso da multidão aglomerada diante do palácio:

À morte o Pazzi! Que no-lo entreguem! Apavorada, Fiora apertou ainda mais a mão franzina que segurava e murmurou:

Se o entregas, Lourenço, terás de me entregar também...

CAPÍTULO II

O VISITANTE DO DIA DE SÃO JOÃO

O instante que se seguiu foi aterrador. De pé diante do grupo formado pelo ferido estendido e a jovem ajoelhada junto dele, Lourenço, cujo traje negro fazia maior ainda, dominava-o com a sua sombra ameaçadora. Os seus punhos cerrados e o seu rosto crispado traduziam uma cólera muda que se aproximava talvez, até, do desejo de assassínio. Fiora, fazendo apelo a toda a sua coragem, ergueu-se lentamente e fez-lhe frente, consciente de desafiar um potentado desejoso de vingança e já não o homem que, por vezes, delirava de amor nos seus braços.

Decide! disse ela. Mas decide depressa! Estás a ouvi-los?

Os uivos iam-se amplificando. O aguaceiro não dispersara a multidão que, pelo contrário, devia ter engrossado, mas Lourenço parecia não ouvir os gritos de morte. O seu olhar vasculhava o da sua amante, como se procurasse arrancar-lhe uma qualquer verdade escondida.

Uma Pazzi! disse ele, por fim. Tu, uma Pazzi e esposa deste miserável dejecto...

A indignação que ela sentiu misturou-se com uma amarga decepção. Que motivo, senão um ciúme primitivo de macho, o mais baixo, já que não tem a desculpa do amor animava aquele espírito geralmente brilhante para a insultar daquela maneira?

Um casamento forçado não vale perante Deus, mesmo que abençoado pelo Papa disse ela. Quanto a Carlo, não me tocou.

Em seguida, com um desdém que fez corar as faces de Lourenço:

Tinhas obrigação de me conhecer melhor, mas apercebo-me de que não sou para ti mais do que um corpo para te satisfazeres, pouco mais do que uma cortesã. Nesse caso, podes entregar-me sem arrependimentos, porque não me submeterei mais aos teus desejos.

Que quer dizer isso? grunhiu ele.

Que partirei amanhã para França... na condição, evidentemente, de não ser massacrada dentro de uma hora com Carlo.

Não me desafies, Fiora! Não ganhas nada com isso.

Eis que reaparece o banqueiro. Alguma vez tentei aproveitar-me de ti? O que me deste, não o levarei, podes ter a certeza! Deixarei tudo com Demétrios. E se és incapaz de reconhecer os teus amigos, se a piedade te é desconhecida, o meu lugar não é junto de ti.

Com um gesto imperioso, a jovem afastou-o do seu caminho e dirigiu-se para a porta. Ele juntou-se-lhe:

Onde vais?

Vou dizer a verdade a Luca Tornabuoni. Vou-lhe dizer que Carlo é meu marido e que, se o quiser matar, terá de me matar também a mim.

Mas, enfim, por que razão queres tanto que ele viva, como pretendes, se foste casada à força? A sua morte libertar-te-ia e tu sabe-lo bem.

A minha liberdade? Foi ele que ma devolveu ao conduzir-me ao palácio Riario e ao regressar para sua casa com Khatoun vestida com as minhas roupas. Quanto a pôr em dúvida a minha palavra, é indigno! Lembra-te do homem que era Philippe de Selongey Eu amava-o, ainda o amo e tu tens o descaramento de dizer que casei de boa vontade?

Oh, não o esqueci!

Agarrando em Fiora por um braço, Lourenço arrastou-a, mais do que a conduziu, até um valioso espelho de Veneza que, colocado perto de uma janela, reflectia sobre a ordem calma e harmoniosa do jardim interior. A sua dupla imagem surgiu:

Olha! Olha bem!... Eu sou feio, Fiora, sou, até, horrendo e Carlo não é mais do que eu. No entanto, deixaste que te pôssuísse vezes sem conta! Melhor ainda, foste tu que te ofereceste na primeira noite. Lembra-te! Foste tu que me conduziste ao teu quarto, foste tu que desataste os cordões da tua camisa. Foi por amor ao teu marido que me revelaste o teu corpo, que me atraíste?

Desejava-te... e esse desejo não está saciado, senão teria partido...

Tu gostas do amor que eu te dou, mas é nele que continuas a pensar, nesse borgonhês insolente, mesmo depois de morto, cuja recordação eu pensava ter exorcizado.

Certas recordações são impossíveis de apagar, Lourenço!

A sério? Somos assim tão parecidos, ao ponto de aceitares as minhas carícias... e até as provocares no mesmo quarto onde ele fez de ti uma mulher? É nele que pensas quando gemes por baixo de mim? No entanto, a tua boca diz o meu nome quando atinges o êxtase...

Então, foi por essa razão que foste ter comigo na noite que se seguiu ao crime? murmurou Fiora com amargura. Pela alegria da vingança, por poderes triunfar de um morto? E eu que pensava que tu precisavas de mim como eu precisava de ti! Isso prova apenas que foi tudo um mal-entendido... Mas, que esperas tu provar ao dizer que Carlo ainda é mais feio do que tu? Que me basta fechar os olhos para acolher qualquer homem a partir do momento em que ele seja mesmo homem?

Uma voz fraca, que parecia sair do próprio chão de madeira preciosa, fez-se ouvir, uma voz que dizia:

Lourenço, Lourenço!... Quando tu respiras o perfume de uma rosa, perguntas-lhe se ela se lembra das mãos que a fizeram desabrochar? Para onde foi a tua filosofia? Agarrar o momento, não é verdade? Parece-me que estás bem longe disso!

Com sincero estupor, Lourenço olhou para o ferido. Apoiado num cotovelo, este endireitara-se e olhava para os dois amantes com, no fundo dos seus olhos azuis, uma pequena chama irónica.

Carlo! murmurou o Magnífico. Eu pensava que eras um idiota!

Eu sei. E eu pensava que tu eras inteligente. Portanto, é preciso ser um deserdado como eu para saber apreciar um presente fabuloso da vida? Nós somos amigos, Fiora e eu e isso dá-me tanta alegria que aceito ser entregue àquela gente que continua a esganiçar-se à chuva, enquanto tu, privilegiado entre os privilegiados, feliz entre os felizes porque ela se te entregou, continuas à procura do que pode estar escondido por trás das tuas noites de felicidade...