Preveniram-me ontem à noite disse Lourenço, cujos olhos escuros brilhavam de excitação e prometi ir lá esta manhã. E não voltarei a sair de lá, compreendes, antes de o conjunto ser totalmente descoberto.
Compreender? Seria preciso não conhecer Lourenço, a sua busca incessante da beleza, da raridade e o seu amor pelos vestígios dos tempos antigos, para não compreender. Demétrios tinha razão ao comparar Fiora com a flor preciosa roubada do jardim do Magnífico antes de ele a ter podido cheirar, e regressada por uma espécie de milagre. Não era o amor que unia os dois amantes, antes um desejo violento, exaltado pelo orgulho de possuir, um, uma mulher de uma beleza excepcional durante muito tempo cobiçada, a outra um homem prodigioso, que qualquer rainha gostaria de ver a seus pés. Ambos amavam o amor, e os abraços que uniam os seus corpos podiam atingir a perfeição de um poema, mas o coração de Fiora não batia apressadamente à aproximação do Magnífico, mesmo quando o seu corpo se abria às suas carícias na expectativa deliciosa de uma realização que a faria atingir o cúmulo do prazer. Quanto a Lourenço, como conhecer os pensamentos que se agitavam no interior da sua grande fronte abaulada?
Ele escrevia poemas dedicados a Fiora; enchia-a de presentes e divertia-se a ornamentá-la, mas raramente ficava satisfeito com as jóias sumptuosas nas quais se esforçava por engastar a sua beleza, porque ela triunfava sempre. Uma noite, não aparecera só: Sandro Botticelli, com uma cartolina debaixo do braço, acompanhava-o e Fiora, corada de confusão, teve de posar para aquele jovem pintor, nua e de pé sobre um pequeno tamborete, em redor do qual Lourenço acendera umas velas para que a luz dourasse a sua pele e a fizesse brilhar com mais intensidade. Depois, mal o pintor se eclipsara, amara-a com um ardor esfomeado que assustara, até, um pouco a jovem. E como ela lho dissesse docemente, ele suspirara:
Que homem não sonhou em possuir uma deusa na esperança insensata de conseguir chegar à fonte da sua beleza e conseguir roubar-lhe uma parcela? Infelizmente, Vénus não é generosa e guarda tudo para ela.
Não me digas que o lamentas? Tu não precisas de ser belo. O que tu possuis é muito mais poderoso. Elas são muitas, não são, as que desejam atrair o teu olhar?
Porque eu sou o senhor? Mas, se eu não passasse de um moço de fretes, ou de um barqueiro do Arno, quantas delas me concederiam a sua atenção?
Mais do que pensas. Ou então, seria preciso não serem mulheres.
Ele agradecera-lhe com um beijo e acrescentara:
No entanto, sei que a sede de beleza que tenho na alma nunca se extinguirá.
Agora, a sua busca incessante levara-o até uma estátua e se Fiora não se sentira surpreendida, sentira-se, mesmo assim, um pouco vexada. O convite de Chiara vinha mesmo a propósito. A jovem começava a sentir a necessidade de colocar uma certa distância entre si e aquela aventura apaixonante que a invadia e lhe ocupava demasiado o espírito; e que esperava o momento certo, talvez, para se instalar no seu coração. Fiora não queria ligar-se a Lourenço: sabia que sofreria, mais tarde ou mais cedo. Além disso, a sua vida, a sua verdadeira vida, esperava-a algures, junto do seu pequeno Philippe, e o seu dever era fazer dele um homem. E isso não era compatível com a existência de favorita oficial que vislumbrava no horizonte.
De braço dado, as duas jovens amigas saíram da igreja com Colomba nos seus calcanhares. Fiora procurou Esteban com os olhos, que fora fazer umas compras no bairro e que deveria regressar para a esperar. Não o vendo, pensou, com um pouco de aborrecimento, que devia ter ficado numa das suas amadas tabernas. Não devia estar longe, porque as duas mulas continuavam presas no telheiro onde ele as tinha abrigado. Fiora não queria ir à procura dele, mas era preciso dar-lhe a saber que ia para casa dos Albizzi em vez de regressar a Fiesole.
A chuva cessara, mas as nuvens que sobrevoavam a rua estreita prometiam outro aguaceiro e seria uma pena não aproveitar aquela aberta:
Talvez possamos dizer uma palavra aos rapazes que trabalham aqui? segredou Colomba, apontando para uma casa situada em frente do adro da igreja e onde se viam, por uma janela aberta, as cabeças dos empregados inclinadas sobre os grandes registos. Era o palácio em forma de torre, sede da Arte della Lana a arte da lã cujo prior, messer Buonaccòrsi, era amigo dos Albizzi.
As duas jovens iam, em consequência, subir os degraus que iam dar à porta encimada pelas armas da corporação, quando viram chegar Esteban. O servo vinha dos entrepostos de tinturaria, que eram junto d’Or San Michele. Uma ruela, pouco mais larga do que uma passagem estreita separava ambos, escavada ao meio por um ribeiro por onde corriam os restos dos banhos de cor das meadas de lã penduradas de travessas e dentro de uma espécie de jaulas providas de tecto. O ribeiro era de uma cor violeta, encarnada ou azul-escura, segundo os girassóis, a ruiva-dos-tintureiros ou o pastel-dos-tintureiros utilizados pelos operários. Naquele dia era de um vermelho-profundo de rubi quando o castelhano o atravessou de um salto para se reunir às duas damas.
Perdoai-me! disse ele e o seu rosto perturbado estava branco como a cal. Fiz-vos esperar e sinto-me desolado.
Que se passa, Esteban? perguntou Fiora. Sentis-vos mal?
Não... não, mas acabo de ver uma coisa tão terrível que voltei atrás para ver melhor. Ouvis estes gritos?
Com efeito, chegavam por cima dos telhados, e ao longo das ruas, clamores, indistintos mas ferozes: ódio e uma alegria selvagem, transformados em risos dementes. As três mulheres persignaram-se.
Dir-se-ia que o tumulto vem da Senhoria! disse Chiara. Terão encontrado mais gente para enforcar?
Não. Encontraram melhor do que isso!
E Esteban contou como um bando de homens e de mulheres, chegado do campo na sua maior parte, acabava de violar, na igreja da Santa Croce, o túmulo de Jacopo Pazzi, tirando de lá o corpo do ancião que se dizia ter blasfemado, antes de ser enforcado, e ter vendido a alma ao diabo. Aquela gente considerava um sacrilégio terem confiado à terra cristã os despojos de um apoiante de Satanás e atribuía a isso as violentas intempéries que tinham desabado sobre a região de Florença.
Que vão eles fazer? murmurou Fiora com repugnância.
Não sei. Para já, arrastam aqueles despojos horríveis e malcheirosos pelas ruas e vão levá-los perante os priores. Por isso, se me perdoais que vos apresse, penso que é melhor regressar a casa.
Ide sem mim! Eu fico para passar alguns dias em casa de dona Chiara, no palácio Albizzi. Dizei a Demétrios que não se preocupe e, se não vos importardes de voltar aqui amanhã, dizei também a Samia que me prepare alguma roupa.
O sorriso de Esteban foi um sinal de aprovação para a sua escapadela:
Far-vos-á bem estar algum tempo com outras mulheres declarou ele. Mas, no entanto, vou escoltar-vos até ao palácio Albizzi. Ficarei mais tranquilo.
Oh! Vede! exclamou Colomba, apontando um dedo trémulo de excitação para o céu. O Sol! O Sol regressa!
Com efeito, as nuvens acabavam de se afastar, como que rasgadas por um brusco golpe de vento e um raio luminoso acendeu rutilâncias no fundo do ribeiro dos tintureiros. Na Senhoria ouviu-se um imenso grito de triunfo, saudando aquela aparição inesperada.
Eles vão receber este raio como um sinal dos céus e como um encorajamento grunhiu o castelhano. Até que decidam desenterrar outros, vai um passo...
Quando, a caminho da casa de Chiara, chegaram ao Borgo degli Albizzi, cujo mais belo ornamento fora o palácio Pazzi, Fiora não pôde evitar um movimento de piedade. O magnífico edifício, começado nos meados do século por Brunelleschi e terminado por Giuliano da Maiano, sofrera cruelmente a ira popular. As janelas tinham perdido as vidraças. Por cima da porta esventrada tinham martelado as armas da família e subsistiam, por toda a parte, vestígios do incêndio que devastara o interior. No grande pátio quadrado os destroços amontoavam-se, restos sem interesse de objectos antes preciosos, destruídos por falta de conhecimento. Não passava de uma concha vazia, as viúvas e as crianças tinham fugido, em busca de refúgio, para o campo ou para uma caridosa casa qualquer.
Não te comovas! disse Chiara, que seguira o pensamento da sua amiga. Esta gente destruiu o teu próprio palácio, hoje bem mais arruinado do que este. Além disso, as mulheres deles não serão perseguidas, como tu. Com excepção... pelo menos assim espero, da infernal Hieronyma, que as pessoas dizem ter regressado.
Essa está morta disse Fiora. Apunhalada em casa de Marino Betti por um dos meus amigos quando tentava estrangular-me.
Olha, não sabia! exclamou Colomba, que continuava a ser a comadre mais bem informada de Florença. Por que é que não se fala disso nos mercados?
Porque monsenhor Lourenço assim o quis respondeu Fiora. De acordo com as suas ordens, Savaglio e mais alguns dos seus homens fizeram desabar a casa sobre o seu cadáver, que não terá qualquer outra sepultura. Permanecerá pregado ao chão pelo punhal que a atravessou e que o seu possuidor recusou retirar. Parece que foi colocado um letreiro sobre os escombros.
E que diz ele, esse letreiro? perguntou Colomba, extremamente interessada.
”Aqui foi aplicada a justiça de Florença. Passante, afasta-te!”
É quase demasiado belo para aquela criatura abominável observou Chiara. Em seguida, à guisa de oração fúnebre, concluiu com satisfação: De qualquer maneira, é bom que esteja morta.
Mais do que imaginas! disse a sua amiga.
Ver-se de novo em casa dos Albizzi, naquele quadro familiar onde só conhecera bons momentos, deu a Fiora a impressão deliciosa de que o tempo parara e que o passado regressara. Nada mudara, os objectos continuavam no mesmo sítio e o odor da cera virgem e da resina de pinheiro era o mesmo que respirara em tempos. As compotas, obra de arte de Colomba, que lhe ofereceram à entrada, continuavam deliciosas. Até o tio de Chiara, o velho serLodovico, continuava o mesmo, não envelhecera. De regresso para a refeição da noite, beijou Fiora como se a tivesse visto na véspera, felicitou-a pelo seu bom aspecto e desapareceu no seu studiolo com a pressa de um homem cujo tempo é precioso. Era um naturalista apaixonado, que considerava tempo perdido aquele que não consagrava à botânica, aos minerais e às diferentes famílias de borboletas. Bom e simples, ingénuo como uma criança, nunca se esquecia, antes de se atirar ao trabalho, de rezar a Deus para que lhe desse forças e inteligência. Lourenço gostava muito dele, do mesmo modo que o seu pai e o seu avô, e era em grande parte graças a ele que os outros membros do clã Albizzi, em tempos exilados, tinham podido regressar a Florença.
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