Assim, foi com uma certa alegria que ela recebeu, na manhã seguinte, um pequeno bilhete de Chiara convidando-a para passar o São João em casa dela. Com o apoio da amiga, arranjaria a força necessária para reencontrar o embaixador. Mas os seus preparativos foram extremamente minuciosos: para aquele dia de festa, a jovem queria ser a mais bela! Mas não sabia porquê...
O dia que nasceu em Florença proclamou a perfeição da arte do Criador. A uma aurora que parecia reflectir as rosas de todos os jardins nos seus matizes diferentes mas harmoniosos, sucedeu a imensa ventura cambiante de um céu de um azul inefável que o Sol, no solstício, acariciava sem lhe quebrara cor profunda. Sob aquele dossel fabuloso, Florença, lavada de fresco e vestida como uma mulher recém-casada, parecia-se, no guarda-jóias verde das suas colinas sarapintadas de villas brancas, de ciprestes negros e da musse prateada dos olivais, com um cofre aberto exibindo o tesouro de um imperador.
A festa apoderou-se da cidade às primeiras horas do dia. Todas as casas, mesmo as mais pobres, estavam ornamentadas com tudo o que possuíam, nem que fossem simples ramos de folhagem, ou uma grinalda de amores-perfeitos rodeando a efígie do santo.
No palácio Albizzi, Chiara fizera uma obra de arte: das janelas do primeiro andar caíam grandes peças de cendal vermelho e branco, separadas por grandes galões dourados e no rés-do-chão, de um lado e de outro da porta, quadros religiosos cujas personagens davam mostras de um orgulho e de um fausto dignos de uma corte real, representando, no entanto, cenas da vida de São João, ao lado de estatuetas de marfim com a efígie dos santos protectores da família, prestando homenagem ao herói do dia. Tudo enfeitado com grinaldas de rosas e jasmins exalando um odor requintado e trepando até ao grande tecto plano, onde o estandarte dos Albizzi flutuava sobre as telhas redondas de um rosa delicado. Estava soberbo.
Assim, foi com alguma surpresa que Chiara, tendo saído à rua de madrugada para dar uma última vista de olhos ao conjunto, viu o seu tio, vestido com um bibe de grossa tela verde, um velho chapéu na cabeça e provido dos seus apetrechos para a caça às borboletas, transpor a soleira da casa puxando atrás de si a sua mula. A jovem lançou-se, literalmente, sobre ele:
Onde é que tu vais vestido dessa maneira?
Ao Mugello. Olha para este céu! É um dia ideal para as borboletas. Tenho a certeza que vou fazer uma boa recolha e...
Segurando-lhe no braço, Chiara fê-lo dar meia volta para lhe mostrar a fachada da casa:
Olha para a casa! Isto não te diz nada?
Sim, minha filha: está muito bonito... Estás à espera de convidados?
Mas, meu tio, francamente, é dia de São João e tu deves ocupar o lugar que te pertence nas cerimónias!
Achas? O São João...
E, de repente, o ancião compreendeu:
Ah! O São João! Onde tinha eu a cabeça, meu Deus? É verdade, eu tenho de... Tens a certeza que é preciso estar lá?
Absoluta, tio Lodovico! Tu és um dos primeiros notáveis desta cidade. Não podias lembrar-te disso de vez em quando?
Claro... sim, claro! Mas é uma pena sacrificar um dia tão bonito por causa de uma festa! Bem, vamos ataviar-nos!
E reentrou no palácio seguido por Chiara, que achou mais prudente acompanhá-lo até aos seus aposentos, receosa de o ver fugir para a cozinha. A jovem ria-se quando entrou no seu quarto, onde Khatoun acabava de vestir Fiora. O riso cessou de imediato ao ver a amiga:
Por todos os santos do Paraíso! Como estás bela!
Nada mais simples, de facto, do que aquele grande vestido de tafetá espesso de um belo vermelho-escuro que sussurrava a cada gesto e que, sem o decote onde sobressaía o longo e esbelto pescoço da jovem, se assemelhava a uma samarra cardinalícia. Nem um bordado, nem um ornamento naquele vestido de linhas puras cuja única audácia residia nas mangas amplas e tufadas que se detinham na harmonia do ombro meio descoberto. A jovem só tinha uma jóia: um rubi no meio da testa. A massa de cabelos negros e lustrosos estava fechada numa longa rede dourada que lhe descia abaixo da cintura.
De joelhos no tapete entre uma caixa de alfinetes e um nécessaire de costura, Khatoun contemplava aquilo que era um pouco obra sua:
O Lis vermelho de Florença! declarou ela, encantada.
Tens razão suspirou Chiara e o povo vai pensar a mesma coisa. Que procuras tu demonstrar, Fiora? Que a cidade pertence a Lourenço, tal como tu?
Sim e não. Quero surpreender o embaixador francês. Ele é demasiado fino de espírito para não compreender o que significa este vestido vermelho: eu sou filha de Florença e tenciono continuar a sê-lo.
Ah!... Nesse caso, tomaste a tua decisão?
Sim. Commynes é o homem capaz de fazer com que o Rei compreenda as minhas razões. E veremos, com ele, a melhor maneira de mandar vir o meu filho e Léonarde nas melhores condições. Di-lo-ei a Lourenço esta noite... por ocasião do baile, claro, porque de outra maneira será impossível.
Reflectiste bem?
Sim. Vê tu, Chiara, eu pertenço a esta cidade. Até à morte do meu pai, fui uma das suas pedras. Uma tempestade arrancou-me a ela e atirou-me para longe. Se Deus permitir que a pedra retome o seu lugar, não vejo qualquer razão para ir contra a Sua vontade...
Portanto, de que serve mentires a ti própria? Tu amas Lourenço, é tudo.
Não, nada mudou desde a última vez que falámos. Repito-o: o meu corpo é que o ama e eu sinto-me bem junto dele, mas não vejo nenhuma razão para virar costas a uma vida, a uma cultura que amo, por uma outra que tem a sua beleza, sem dúvida, mas que é menos doce para o meu coração.
O teu filho não pertence a essa cultura?
Tanto quanto eu lhe pertencia quando o meu pai me trouxe para aqui de Borgonha, com Léonarde e Jeanette. Ainda é um bebé e amará Florença tanto como eu.
Sem responder, Chiara beijou a amiga. Os seus olhos brilhavam de alegria:
É a melhor das novidades disse ela, enfim. Custou-me, sabes, fazer de advogado do diabo, mas o facto de quereres ficar connosco enche-me de alegria. Ficas com Carlo?
Claro! Ele é feliz em Fiesole e entende-se às mil maravilhas com Demétrios. Como todos o supõem morto, é a melhor solução. E se te fosses preparar? Está quase na hora da procissão.
E por nada deste mundo a perderia. Quero ver como é o embaixador francês.
Enquanto Chiara se precipitava para os seus vestidos de cerimónia, Florença festejava o São João. Tudo começara, logo às primeiras horas da manhã, pelo desfile de oferendas que as corporações, as ”artes florentinas”, levavam ao santo patrono da cidade, cada uma delas oferecendo os produtos do seu fabrico: a Calimala com os tecidos finos e sedosos, verdadeiros produtos de luxo saídos das suas oficinas; a arte da Lã com os mais belos fustões e os suaves tecidos de lã cujo segredo fora trazido de Velenciennes; a da Seda dos cendais, dos cetins e dos tafetás cintilantes; os Ourives dos pratos e jarros de prata, e assim por diante até aos pães dourados e pastéis leves dos modestos padeiros. O desfile durou quase até ao meio-dia, tendo-se formado uma grande procissão: o clérigo de Florença e as delegações das cidades vassalas juntaram-se às ”artes”, assim como grandes grupos de rapazes e raparigas que, vestidos de anjos e transportando no dorso grandes asas brancas cuja realização dera grande trabalho a Sandro Botticelli, suportavam nos ombros azulados os relicários dourados da cidade. Em seguida, toda aquela gente se precipitou no Duomo para ali ouvir missa.
Era a primeira grande cerimónia celebrada na catedral profanada pelo assassínio de Giuliano. Na antevéspera, o arcebispo de Florença purificara cerimoniosamente a igreja-mor com grandes quantidades de água benta e incenso.
Depois da missa, toda a gente regressou a suas casas para recobrar forças com vista às cerimónias da tarde e à grande corrida que teria lugar ao fim do dia. Àqueles que não podiam oferecer a si próprios uma refeição digna de um grande dia, uns cabazes, em plena rua, distribuíam graciosamente empadas e pastéis. E, para acompanhar esse festim, os fontanários da cidade deixavam escorrer vinho de Chianti em vez de água. Para ajudar à alegria geral, bandos de músicos, tocando viola, pífaro ou tamborim, percorriam as ruas e detinham-se nos cruzamentos... o mais perto possível dos fontanários.
Da tribuna das damas, onde tinham tomado lugar para apreciar a procissão e seguir o melhor possível o ofício divino através das portas completamente abertas, Fiora viu Lourenço vestido de negro como era seu hábito, mas usando ao pescoço uma cadeia de ouro e rubis que valia um tesouro real. Uma jóia brilhava no seu gorro. Junto dele caminhava um homem louro em cujo capuz brilhava uma flor-de-lis e Fiora não teve qualquer dificuldade em reconhecer Philippe de Commynes. Caminhava com a dignidade própria de um embaixador de França. Logo a seguir a jovem viu, sobre a multidão, um certo gorro vulgar encimado por uma pena de garça-real que lhe acelerou o coração. Seria possível Douglas Mortimer ter feito, também ele, a viagem? Por que não, no fim de contas? Luís XI gostava demasiado do seu conselheiro para o deixar partir sem uma guarda sólida para aquela Itália turbulenta. E que guarda mais sólida, mais eficaz, do que o sargento la Bourrasqué?
Teve vontade, subitamente, de ir ter com os seus amigos, mas não podia imiscuir-se na ordem rigorosa das cerimónias. Era preciso regressar ao palácio Albizzi para a refeição do meio-dia na companhia de ser Lodovico, que não cessava de resmungar contra a futilidade das manifestações mundanas que estragavam um dia que o Criador tinha, forçosamente, destinado especialmente às alegrias austeras da ciência. O ancião ia tanto mais rabugento quanto tivera que trocar o seu bibe de tela verde, tão cómodo, por um soberbo traje de espessa seda escarlate com uma orla de pele de marta negra, a despeito da estação e por um capelo do mesmo tecido, cujo pano se enrolava graciosamente em redor do seu pescoço. Uma pesada corrente de ouro, terminada por quimera, completava um traje que, evidentemente, ele detestava:
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