De amor?

Claro. Se o que nos une não é isso, parece-se terrivelmente. Florença vai viver dias sombrios, Fiora. Eu vou precisar, mais do que nunca, das horas incomparáveis que tu me dás. Quanto a ti, desempenharás, no coração dos meus súbditos, o papel que pertencia a Simonetta, porque a sua natureza profunda é atraída pela beleza perfeita. A eles, parece-lhes que Florença não pode brilhar se não estiver encarnada numa mulher deslumbrante... Não te preocupes com nada! Deixa-me agir! Juntos, ganharemos a batalha contra este Papa indigno, que quer o nosso extermínio.

Sisto IV abrira as hostilidades. Uma breve, datada de 1 de Junho de 1478, excomungava ao mesmo tempo Lourenço, ”filho da iniquidade”, cujo maior defeito, aos seus olhos, era estar ainda vivo e os priores da Senhoria, ”possuídos de sugestão diabólica e dominados, como cães, por uma raiva delirante”, por terem ousado enforcar um arcebispo nas suas janelas.

Lourenço recebeu a notícia sem pestanejar. As cóleras de um Papa indigno não o interessavam. Contentou-se a reenviar para Siena, sob uma boa escolta, o jovem cardeal Rafaele Riario que, após o assassínio cometido na catedral, vivia num estado de estupor profundo. O que não acalmou, de modo nenhum, o pontífice ulcerado. Os Florentinos receberam ordem de entregar Lourenço de Médicis a um tribunal eclesiástico, diante do qual ele responderia pelos seus crimes. Uma ordem que não teve sucesso. O povo recusou todo e qualquer convite à revolta: não aceitava nenhuma ordem do Papa de carácter temporal. E fechou-se de corpo e alma em redor do príncipe a quem se entregara, partilhando o desgosto que lhe causava a morte do irmão, aquele Giuliano em quem todos os Florentinos viam a imagem acabada do encanto e arte de viver da sua cidade.

O Papa preparou-se, então, para a ”guerra santa”. Ao mesmo tempo que recrutava condottieri e reforçava a sua aliança com Nápoles e Siena, escrevia a toda a Europa, convidando os príncipes cristãos a tomar parte no cerco final.

O resultado desse fulminante correio pontifício foi muito diferente do que o seu autor esperava. Os soberanos da Europa não viam qualquer motivo para se lançarem ao ataque de Florença apenas para agradar a um papa que queria punir, através do extermínio de uma cidade, um atentado sacrílego cometido numa igreja. As mensagens chegadas ao Vaticano, plenas de reverência e fórmulas atenciosas, demonstravam uma vulgaridade desencorajante. Um só destinatário não respondeu: o Rei de França, decidido a dar a conhecer, assim, a sua opinião.

Numa tarde de meados de Junho, Fiora, sabendo que Lourenço, retido pelos negócios, não iria ter consigo nessa noite, passeava-se no jardim com Demétrios e Carlo, este sustido por ambos, um de cada lado. Admiravelmente tratado pelo grego, livre dos impiedosos constrangimentos impostos a si próprio desde a infância a fim de sobreviver, o jovem abandonava-se à simples alegria de viver. Naquele enquadramento, parecido com o que amava, Carlo podia receber cuidados atentos, sentir a amizade e passar os dias entre um homem de espírito profundo e de grande cultura e uma mulher encantadora que lhe testemunhava uma afeição de irmã. O jovem não ignorava, evidentemente, o que acontecia muitas noites na pequena gruta, mas, como nunca se considerara marido de Fiora, limitava-se a sorrir, feliz por, após tanto sofrimento, a sua amiga encontrar, finalmente, um pouco de felicidade. Entretanto, era demasiado fino para não sentir o lado precário daquele romance apaixonado.

Dois solitários que um naufrágio atirou para um mesmo barco! disse ele um dia a Demétrios. Ambos encontraram nele víveres e, porque o mar acalmou, porque o céu ficou azul, esperam chegar a uma qualquer costa encantada para ali viverem um amor e uma juventude eternos.

Crês, na verdade, que o amor deles está ameaçado?

Não pode deixar de estar; são demasiado diferentes um do outro. Fiora é demasiado nobre, demasiado orgulhosa para este papel de favorita, publicamente declarado, que Lourenço lhe impõe. Além disso... ela não o ama verdadeiramente. Se os seus olhos não brilham quando ouve pronunciar o seu nome, é porque não ecoa no seu coração.

Poderá vir a ecoar, um dia? Por vezes, uma paixão carnal transforma-se em sentimentos profundos.

Enche um tambor de areia e bate depois nele! Nunca vibrará. O coração de Fiora é esse tambor e a recordação de um outro amor enche-o por completo.

Mas esse amor está morto.

Talvez, mas isso não muda nada. Lourenço, apesar de não o saber, limita-se a ajudar Fiora a passar os dias de modo agradável enquanto ela espera reencontrar, no fim do caminho, para a eternidade, a mão que ela escolheu...

A partir desse momento, Demétrios votou ao jovem enfermo uma amizade que se assemelhava a uma verdadeira afeição. Uma vez curado dos seus ferimentos, já que não podia fazer grande coisa por aquele corpo desgraçado, prometeu a si próprio ajudar a desabrochar uma inteligência que conquistara o seu respeito.

O médico pensava nessa conversa enquanto os três desciam lentamente os degraus largos e suaves que ligavam os diferentes terraços do jardim. Entretanto, Fiora parecia feliz. Sustendo o braço esquerdo de Carlo, falava alegremente, explicando os melhoramentos que contava fazer na sua casa e arredores. O seu perfil fino, velado por um ligeiro e frágil véu azul, destacava-se com a nitidez de uma antiga cinzelagem nas longínquas colinas cor de malva e o grego interrogou-se: Carlo teria razão ao crê-la ainda habitada pelo amor de outros tempos? A jovem parecia de tal modo viver a hora presente! Era como se tivesse esquecido aqueles de quem estava afastada há meses: a sua casa de Touraine, a sua velha Léonarde e, sobretudo, o seu filho. Aquela que se regozijava em segredo a chamar de filha tornara-se naquela criatura superficial, unicamente preocupada com as suas noites ardentes com Lourenço, não esperando outra coisa da vida?

Estou a ficar velho, pensou Demétrios com alguma tristeza, já não sou capaz de ler o seu coração e, sobretudo, os olhos do meu espírito perderam o poder de perfurar as brumas do futuro. No entanto.

Um som de passos rápidos no cascalho do jardim acordou-o da sua meditação. Descendo a alameda onde umas laranjeiras envasadas, recentemente saídas da sala da villa onde tinham passado o Inverno, alternavam com loureiros metidos em altos vasos de barro vermelho, Esteban, que vinha da cidade, acorria a toda a pressa.

Trago notícias! gritou ele de longe assim que viu os passeantes. O Rei de França enviou um embaixador a monsenhor Lourenço!

O castelhano vinha esbaforido e as últimas palavras perderam-se um pouco no vento da tarde, mas Fiora tinha percebido o principal: Isso é bom, ou mau? perguntou ela sem procurar dissimular uma certa inquietação.

Muito bom, certamente! E melhor ainda porque se trata de um dos vossos amigos!

Um amigo? Quem? Falai, Esteban, fazeis-nos morrer de ansiedade!

Messire Philippe de Commynes, donna Fiora! Não ides dizer-me que não é um amigo! Chega pelo São João. Monsenhor Lourenço, com quem estive há uma hora na Badia, foi avisado por um cavaleiro rápido logo a seguir ao meio-dia.

Quem é esse Philippe de Commynes? perguntou Carlo, que se interessava cada vez mais, a cada dia que passava, pela vida exterior.

É o melhor conselheiro do Rei Luís a despeito da sua pouca idade, porque ainda não chegou aos trinta. Durante muito tempo ao lado do defunto duque de Borgonha, abandonou-o ao perceber a política rígida que este queria exercer. Conheço-o bem, com efeito e creio poder afirmar, como Esteban, que é para mim um excelente amigo.

A sua visita dá-vos prazer, então?

Evidentemente. Espero ter, através dele, notícias recentes do meu filho...

Não quero diminuir a tua alegria, Fiora cortou Demétrios mas, como pode messire de Commynes trazer-te notícias? Ele ignora, certamente, que tu estás aqui.

Demétrios tinha razão e o olhar da jovem encheu-se de sombras. As últimas notícias dela chegadas a França deviam ter sido levadas por Douglas Mortimer. Mortimer, que assistiu, na capela papal, ao seu casamento com Carlo Pazzi...

Demétrios seguira o fio do pensamento no rosto móvel da jovem. O médico sorriu e segurou-lhe numa das mãos.

Não fiques triste! Eu procuro, apenas, poupar-te a uma desilusão. Mas o teu rapto de Plessis-les-Tours deve ter feito algum barulho e o nosso amigo Commynes poderá, pelo menos, dizer-te o que se passou depois.

Não estou muito certa. Ele estava, então, exilado em Poitou por ter ousado criticar a crise de violência que o Rei Luís atravessava. No entanto, o facto de ser ele o embaixador já é, em si, uma boa notícia. Isso prova que ele reencontrou a confiança daquele a quem ele gosta de chamar o ”nosso sir. E que chegue pelo São João, a nossa grande festa, é um bom augúrio.

De regresso ao seu quarto onde Khatoun, curada dos seus pavores e escoriações, a esperava comendo pistácio, Fiora sentiu-se estranhamente sobreexcitada. A ideia de rever Commynes sorria-lhe: não era ele um dos de quem mais gostava entre os que deixara para lá dos montes? Graças a ele, podia conhecer as disposições actuais do Rei para com ela. Que Luís fizera muito para a tirar da má situação para a qual a cupidez de Riario e de Hieronyma a tinham atirado era um facto, mas ela sabia-o inconstante e, sobretudo, exigente: como teria reagido ao seu casamento com Carlo?

Para Florença, fosse como fosse, a notícia não podia deixar de ser boa. Fiel há muito à aliança com os Médícis e pouco dado a indulgências para com um Papa que não cessava de o ofender, Luís XI, ao enviar o seu melhor conselheiro, procurava, certamente, tranquilizar os seus amigos florentinos...

Enquanto Khatoun a ajudava a despir-se, Fiora pensou que Lourenço não teria oportunidade de se encontrar de novo com ela antes do São João. Os preparativos da festa mais importante já que se tratava da festa do santo patrono da cidade, aquele a quem esta fora dedicada com o Baptistério, a sua jóia mais preciosa açambarcariam o Magnífico, sobretudo depois de ele saber da chegada de um embaixador amigo. A jovem não sentiu qualquer pena. Pelo contrário, coisa curiosa, sentiu, mesmo, uma espécie de alívio e, nessa noite, só sob as cortinas cor de neve do seu grande leito, prometeu a si própria mandar um bilhete no dia seguinte a Lourenço, pedindo-lhe que não aparecesse antes da festa. Precisava de reencontrar a serenidade, porque o pensamento de enfrentar o olhar perspicaz de Commynes ainda quente dos beijos do amante era-lhe penoso. A sua posição de favorita oficial, de que ela se orgulhara até então, começava a envergonhá-la a despeito do precedente estrepitoso constituído pelos amores de Simonetta Vespucci com Giuliano sob os olhares do próprio marido.