Meu cordeiro!

No instante seguinte, Fiora estava nos braços de Léonarde, onde se abrigou com uma maravilhosa sensação de libertação e apaziguamento:

Léonarde! Minha Léonarde!... Oh meu Deus!

Ordeno-vos que vos separeis! ordenou Luís XI em voz alta. Mulher, eu não vos fiz vir aqui para assistir a uma cena de ternura, antes para que respondais às minhas perguntas!

E eu quero fazer-vos uma, Sire exclamou Léonarde. Que lhe fizestes, para que esteja neste estado?

Siderado, Luís XI ficou sem voz perante aquela velha solteirona que ousava interrogá-lo no tom que um oficial da guarda teria utilizado para com um ladrão apanhado no meio da rua.

Por Deus, comadre, esqueceis quem sou?

Não... e sois um grande Rei. Mas ela, esta pobre pequena, a quem a felicidade neste mundo parece ser recusada, representa mais para mim do que se fosse carne da minha carne! E agora fazei as perguntas que quiserdes... mas não nos separeis mais!

Como hei-de chegar à verdade? resmungou o Rei. Enfim! Tentemos!... Primeiro, que sabeis da criança nascida em Suresnes no princípio da Primavera?

O que é possível saber, Sire. Chama-se Lorenza. Isso diz tudo.

Seja, seja. Passemos a outra coisa! Tendes conhecimento de uma carta, escrita há cerca de um ano por madame de Selongey a donna Catarina Sforza e por ela confiada a Sua Eminência o cardeal-núncio...

A monsenhor della Rovere? Tenho! Essa carta deu muito trabalho a este pobre anjo...

Nesse caso, sois capaz de a reconhecer. Ei-la! Léonarde, obrigada a largar Fiora, pegou respeitosamente na carta que lhe estendiam, leu-a e atirou-a, enojada, aos pés do Rei...

Pua! Que coisa tão feia! Espero, Sire, que não acrediteis que donna Fiora é responsável por esse papel desonroso?

É a letra dela, é o selo dela e...

E é, sobretudo, obra de um grande falsário! Se o encontrardes, sire, mandai-o para o patíbulo mais próximo. Quanto àquele que vos entregou essa porcaria, aconselho-vos a que o junteis a ele.

É um dos meus mais fiéis conselheiros!

Sem o menor receio e para grande pavor de Fiora, a velha solteirona desatou a rir:

Aposto que esse grande conselheiro é o vosso Olivier le Daim... ou o Diabo, como dizem as pessoas daqui?

O... Diabo? disse o Rei, persignando-se precipitadamente duas ou três vezes antes de beijar a medalha que lhe pendia do pescoço.

É preciso dizer que a palavra lhe assenta que nem uma luva. Além disso, faria não importa o quê para ficar com aquela bela Casa das Pervincas, onde nós fomos tão felizes. Até tentou matar-nos!

Deixemos isso, por agora. Pretendeis que esta letra é falsa?

Ponho as mãos no fogo, Sire! Aliás... se me permitirdes, regresso dentro de instantes.

E, pegando nas longas saias de veludo púrpura, Léonarde abandonou os aposentos reais tão depressa quanto lho permitiam as pernas que há muito tinham perdido a juventude, deixando o Rei e Fiora estupefactos.

Mas... onde é que ela vai? murmurou a jovem, falando mais para si própria.

E Luís XI respondeu com um ar muito natural:

Ao sítio onde a pus com o vosso filho: aos aposentos que as minhas filhas utilizam quando vêm a Plessis, o que é raro.

Depois, subitamente furioso:

Espero que não tenhais pensado que sou cruel ao ponto de atirar com uma criança de dois anos para a prisão?

Uma grande alegria inundou Fiora, fazendo-a esquecer o que a sua própria situação tinha de incerto e até de perigoso, com um homem com o carácter daquele estranho soberano. O seu querido Philippe estava ali perto, talvez até conseguisse permissão para o abraçar, ao menos uma vez?

Faltou-lhe o tempo para o perguntar. Léonarde estava de regresso com uma pilha de papéis. Desembaraçando-os da fita que os atava, a velha solteirona entregou-os ao Rei com uma reverência talvez um pouco tardia.

Eu, Sire explicou ela nunca deito nada fora. Sobretudo papéis escritos.

O que é isto? Dir-se-ia um rascunho?

É um rascunho Sire! Da maldita carta que donna Fiora escreveu naquela noite. Santo Deus! Ela não conseguia escrevê-la, mas o Rei pode ver que não há aí nada de ofensivo para Sua Majestade! Vede, Sire! Sobretudo este aqui! Só lhe falta a parte final... mas caiu-lhe uma mancha de tinta! Então, foi preciso escrever outra.

Cuidadosamente, o Rei examinou o que lhe tinham dado, voltou a pegar na carta, comparou e enrolou tudo:

Fico com isto... mas dissestes há pouco, dame Léonarde, que messire lê Daim tentou matar-vos?

Sem Messire Mortimer e o messire grande preboste teria acontecido e a esta hora estaríamos a apodrecer por baixo de alguns palmos de terra na floresta de Loches.

Como é possível Tristan L’Hermite não nos ter dito nada? perguntou o Rei com severidade.

Léonarde encolheu os ombros:

Porque está na mesma posição que nós, Sire: não tem provas. Nada, senão as confissões de um bandido que ignorava o nome do seu cliente.

- Estou a ver! Bem... podeis retirar-vos, dame Léonarde. O Rei agradece-vos...

Posso levá-la comigo?

A velha solteirona rodeara com os braços os ombros de Fiora que, terrivelmente cansada, apoiava a cabeça contra ela.

Não. Temos de reflectir nisto tudo. Por agora, donna Fiora vai regressar à sua prisão...

Sire! suplicou a jovem deixai-me, ao menos, abraçar o meu filho! Ou então... permiti que Léonarde venha comigo. Khatoun basta para olhar pela criança.

Khatoun desapareceu! disse Léonarde com o rosto subitamente fechado. Não sei para onde foi.

Ah? Nesse caso ide depressa, Léonarde. O meu pequenino precisa mais de vós do que de mim... Ide, estou a dizer-vos! Não se pode contrariar o Rei! Não esqueçais que o meu destino está nas suas mãos!

É assim que o entendemos! Guardas! disse ele com voz forte, o que fez com que a porta se abrisse de imediato.

Fiora saudou profundamente e depois, com a morte na alma, seguiu os soldados que iam reconduzi-la à prisão. A jovem levava consigo a imagem de Luís XI, um cotovelo apoiado no braço da sua cadeira e o queixo apoiado na mão. Jamais Fiora vira rosto tão duro nem olhar tão gelado. Teria ele compreendido alguma coisa do que ela lhe dissera? Não juraria...

E ainda menos quando, na tarde do dia seguinte, os guardas, sob o comando de um sargento a foram, de novo, buscar. Dessa vez, foi para a grande sala de honra do castelo que a conduziram. Quando a jovem transpôs a soleira, parou por um instante, espantada perante o espectáculo que se lhe oferecia.

O Rei, vestido com mais elegância do que de costume, estava sentado no trono coberto pela flor-de-lis e com o grande colar de Saint-Michel ao pescoço. Junto dele a sua corte, a corte exclusivamente masculina que o rodeava quando a Rainha Carlota não estava presente. No entanto, Fiora sentiu uma certa alegria ao reconhecer Philippe de Commynes de pé num dos degraus que sustentavam o trono. Um piquete da Guarda Escocesa postava guarda junto das janelas e, junto à porta, o capitão Crawford mantinha-se a alguns passos do soberano, apoiado na sua grande espada...

Quando a prisioneira entrou, o silêncio foi completo e ter-se-ia ouvido uma mosca enquanto, lentamente, ela avançava para o Rei, parando apenas a três ou quatro passos do estrado real para saudar como convinha. O coração batia-lhe no peito com toda a força. Fiora estava certa de que se ia desenrolar, no meio daquele aparato todo, o seu julgamento. Uma audiência tão solene só podia ter um significado ameaçador...

No entanto, um pequeno incidente distendeu um pouco a atmosfera tão pesada. Cher Ami, o grande galgo branco, o cão favorito de Luís XI, que se deitava habitualmente aos seus pés sobre uma almofada, levantou-se e, num passo indolente, acercou-se de Fiora e lambeu-lhe docemente a mão.

Tocada por aquele sinal de amizade, ela acariciou a cabeça sedosa, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe subiam aos olhos. Aquele belo cão era, portanto, o seu último, o seu único amigo naquela assembleia? O próprio Commynes olhava obstinadamente para a ponta dos seus sapatos...

Aqui, Cher Ami! ordenou Luís XI, mas, em vez de obedecer, o grande galgo, como se tencionasse fazer de advogado da jovem, sentou-se tranquilamente a seu lado.

O Rei não renovou a sua ordem. Com um gesto, fez sinal a Fiora para que se levantasse, tossicou para aclarar a voz e, por fim:

Meus senhores, reunimos-vos aqui, nesta nobre assembleia, para serdes testemunhas do valor que damos à nossa justiça. A senhora condessa de Selongey, nascida sob o nome de Fiora Beltrami e aqui presente, foi acusada de traição à nossa coroa e de querer matar a nossa pessoa. A principal prova de acusação é uma carta, que a dame de Selongey nega em absoluto ter escrito. Outros elementos foram-nos fornecidos por uma terceira pessoa e esses ditos elementos tenderiam a inocentar a dita dama.

O soberano fez uma pausa, tirou um lenço e assoou-se ruidosamente, o que provocou um som de tempestade na assembleia silenciosa. Ninguém disse palavra. Então, ele continuou:

Dados os sinais de amizade que tínhamos dado à dame de Selongey, dado também o facto de o seu marido, cavaleiro do Tosão d’Ouro, ter agido sempre como um rebelde obstinado ao nosso governo, o nosso espírito encontra-se extremamente perturbado e não pode decidir capazmente num assunto tão delicado. Assim, resolvemos apelar ao julgamento de Deus!

Aquilo foi de tal modo inesperado que o silêncio se transformou em diversos murmúrios e Commynes, erguendo a cabeça, exclamou:

Sire! O Rei vai remeter-se a práticas de uma outra era?

Se quereis dizer, messire de Commynes, que Deus Todo-Poderoso passou de moda, não fareis parte durante muito mais tempo do meu séquito! disse Luís XI com um olhar assassino. Paz, portanto, e não interrompais mais! Pelo julgamento de Deus não entendemos o juízo de Deus. A dama condessa não será atirada à água, convidada a caminhar com um ferro em brasa nas mãos nem entregue a qualquer uma dessas práticas, das quais nunca pensámos bem. Mas as acusações que pendem sobre ela foram-nos entregues por duas personagens... Messire embaixador de Florença, dignai-vos comparecer perante nós!