Falaremos disso mais tarde. Não há pressa, de facto...

Temos muito tempo pela frente disse ele ternamente, inclinando-se para a boca da jovem.

Quando ele ia a sair, ela chamou-o:

É melhor não vires esta noite disse ela.

Porquê? perguntou ele, subitamente com um olhar sombrio. Já estás cansada de mim?

Como podes dizer uma tolice dessas? Não, Lourenço mio, não estou cansada de ti, mas, na vida de uma mulher, há noites que ela deve passar sozinha. Compreendes?

Ele riu-se e tomou-a nos braços para lhe cobrir o rosto e o pescoço de beijos.

Seja, criatura impura! Pelo menos, poderás dormir. E a minha mãe também. Por causa do que se passou, ela preocupa-se com as minhas saídas nocturnas. Mas não penses que me manténs à distância durante muito tempo!

Uma hora após a sua partida, Fiora foi ter com Demétrios para lhe dar parte da ideia que lhe viera à mente. Ele escutou-a sem dizer uma palavra e quando ela acabou, perguntou:

Sabes que dia é hoje?

28 de Abril, creio... oh meu Deus! É o mesmo dia!

Sim. Há três anos, saímos daqui para punir um assassino. Crês que Hieronyma se foi esconder na velha propriedade?

É claro! Não há melhor esconderijo do que a casa do seu cúmplice. Sobretudo uma casa defendida pelo terror. Esse demónio nunca teve medo de nada e ainda menos de fantasmas.

Pode ser que tenhas razão, Fiora!... Sim, acho que sim. Em todo o caso, não custa muito ir lá ver.

Se o dia era o mesmo, a noite era bem diferente. Não havia estrelas no céu e a terra não cheirava a perfume! Um céu negro, que deixava cair trombas de água, caminhos alagados, perigosos para quem não os conhecia. Mas Fiora teria reconhecido o caminho de olhos fechados e debaixo de um tremor de terra, de tal modo ele lhe era familiar. A passo na sua mula, cavalgava bota com bota com Demétrios, curvando o dorso sob a grande manta negra com capuz que a protegia do dilúvio, mas a jovem não sentia a chuva e teria atravessado um mar de chamas para atingir o seu objectivo, tal era a certeza de que aquele caminho a levaria, enfim, à sua vingança.

A seguir a ela cavalgavam Esteban e Rocco, armados até aos dentes. O antigo salteador de estradas quisera participar na expedição depois de saber de quem se tratava:

Fico a dever-te dissera ele a Fiora. Graças a ti, vou voltar a ser um verdadeiro soldado e vou servir um patrão que me agrada.

No dia seguinte partira para a sua gruta de San Quirico d’Orcia para ali recuperar os seus homens, que Lourenço incluiria no seu serviço e sob as suas ordens. Era mais do que certo, de facto, que a guerra com o Papa estalaria em breve e o Magnífico dava o justo valor a um grupo de homens bem treinado. Além disso, Rocco recebera dele uma bela soma por se ter batido a seu lado na catedral. Assim, o homem sentia o coração pleno de alegria e, de tempos a tempos, Fiora podia ouvi-lo a assobiar uma ária.

Chegada ao seu destino, encontrou sem dificuldade a vereda bordejada de hera, mais longe a massa sombria dos edifícios da propriedade e o grande pinheiro cuja copa imensa cobria os pilares de pedra à entrada do pátio. O grande pinheiro onde o corpo martirizado de Marino Betti fora enforcado...

Tal como então, os cavaleiros puseram pé em terra a alguma distância e prenderam as montadas aos ciprestes plantados como barreira contra o vento e depois, abafando os passos o melhor possível, subiram na direcção da propriedade.

É grande! sussurrou Rocco. Se queremos explorar tudo, talvez fosse melhor separarmo-nos, mas, à primeira vista, não há ninguém.

Os edifícios abandonados mal se viam na noite escura e não se ouvia nada senão o ranger de uma porta mal fechada, que batia sob a borrasca. Sem responder, os outros três continuaram a avançar, perscrutando aquelas sombras densas que, em tempos, tinham tido tanta vida: o gado, os criados, os cães de guarda, e onde agora só reinava o silêncio.

Subitamente, Esteban agarrou o braço de Fiora:

Olha! sussurrou ele. Ali!... na ponta da casa do intendente! Uma chaminé a fumegar!

Como também já estavam habituados à escuridão, os olhos de Fiora distinguiram rapidamente a delgada espiral cinzenta. O coração bateu-lhe com mais força: uma lareira acesa significava uma presença humana...

Talvez seja um pastor que veio em busca de abrigo disse Demétrios. Ou talvez um viajante perdido? As pessoas são capazes de se abrigar em casa do diabo com um tempo destes.

Não disse Fiora. É ela! Tenho a certeza que é ela... Sem esperar pelos outros, a jovem dirigiu-se para aquela parte da casa, tomando cuidado para não fazer barulho. Ao aproximar-se, distinguiu um débil raio de luz por baixo de uma persiana corrida. Ao lado havia uma porta cuja parte de baixo estava escondida sob a hera que disfarçava qualquer vestígio de passagem...

Fiora conhecia aquela casa de cor por nela ter brincado milhares de vezes quando era criança. Conhecia todas as saídas e todos os desvios. Sabia que a porta daquela divisão, que fora a cozinha do intendente, só tinha um trinco, mas que, do interior, podia ser reforçada com uma barra. Se fosse o caso, a única hipótese de entrar seria arrancar a persiana.

Suavemente, muito suavemente, ela fez força na lingueta, que se abriu sem ruído. Retendo a respiração, a jovem empurrou o batente com medo de sentir a resistência da barra, mas a pessoa que se encontrava no interior devia pensar que estava completamente a salvo devido ao terror que a propriedade abandonada inspirava. E a porta abriu-se...

Sentada num escabelo junto de uma pequena fogueira, uma mulher, envolta numa manta negra com bordados prateados, que Fiora reconheceu imediatamente, comia, com os cotovelos apoiados numa mesa, uma espécie de caldo. A mulher estava de costas para a porta e não a viu abrir-se.

Boa noite, Hieronyma! disse simplesmente Fiora.

A mulher sobressaltou-se tão violentamente que a mesa, cambada, virou-se entornando a escudela. Quando ela se virou, Fiora sorriu, saboreando já o prazer violento da vingança. Era o próprio rosto do medo que tinha diante de si. Hieronyma devia ter sofrido bastante durante aqueles três dias. A sua pele estava cinzenta, as pálpebras cor de chumbo e as olheiras eram enormes. Não restava nada da beleza copiosa que ela expunha tão insolentemente não havia muito tempo, e as suas mãos tremiam. Mas o ódio dava-lhe coragem e Fiora viu retraírem-se as suas pupilas quando ela lançou:

Que fazes aqui?... Não estás em Roma?

É evidente, não te parece? Parti algumas horas depois de ti.

Como fizeste isso?

Não imaginas, certamente, que te vou fazer confidências? Chegou a hora de pagares pelos teus crimes! Demasiados homens morreram por tua causa, mas é sobretudo o sangue do meu pai que clama por vingança. Estou aqui para te matar!

Hieronyma riu-se, trocista.

Matar-me? Com quê?... Ah, estou a ver! Não vieste só? Não tiveste coragem de me defrontar sem testemunhas!

Por que razão havia ela de o fazer? grunhiu Demétrios. Tu és mais forte do que ela e, sobretudo, és mais hábil a manejar uma faca. Além disso, não é ela quem te vai matar. O teu sangue sujar-lhe-ia as mãos!

Não, Demétrios! Eu é que a vou matar! Ela sabe que não nos pode escapar. Eu tenho aqui o necessário.

Fiora tirou da sua cintura uma pequena cabaça e uma taça. O frasco tinha um pouco de vinho e o veneno que Ana, a judia, lhe dera. A jovem encheu a taça e estendeu-a à sua inimiga:

Bebe! O veneno sempre foi a tua arma favorita e é justo que morras pelo veneno...

Nunca! Nunca beberei isso!

Os meus companheiros podem forçar-te. Se te resta a recordação de uma oração qualquer, di-la, mas di-la depressa! Já não tenho paciência para ti! Bebe!

Vai para o diabo!

Antes que Demétrios e Esteban pudessem segurá-la, Hieronyma, com as costas da mão, entornara a taça.

Fizeste mal disse Fiora. O veneno não era de acção rápida. Ter-te-ia concedido tempo para te arrependeres.

Mas já Hieronyma, levada pelo seu ódio furioso, se atirara a ela de garras abertas, visando-lhe o pescoço, no qual os seus dedos se fechariam. Fiora caiu para trás, meio sufocada pelo peso da sua inimiga, que começava a estrangulá-la. Muito perto do seu rosto, ela via aquela figura convulsa, demoníaca, que continuava a escarrar o seu ódio:

Tu é que vais rebentar! Estás a ouvir?... Sua putazinha... Vais reb...

Subitamente, o corpo de Hieronyma inteirou-se, tetanizado, ao mesmo tempo que a sua boca se abria num estertor e os seus olhos se arregalavam. As mãos assassinas abrandaram o aperto. Fiora afastou-se a tempo de não receber o sangue que escorria dos lábios distendidos. A jovem ergueu-se com a ajuda de Demétrios e agarrou-se ao seu ombro para não cair. Hieronyma, de rosto virado para o solo, no seu traje de veludo sujo, não se mexia. Por entre os seus ombros saía a lâmina de uma adaga.

Esteban pôs um joelho em terra para a retirar, mas Rocco deteve-o.

Eu sei que o carrasco recupera sempre o seu machado disse ele mas, depois de ter mergulhado num sangue tão podre, a minha adaga nunca mais ficaria limpa!

Eu dou-te a minha! disse Esteban. Foste mais rápido do que eu.

Com uma infinita ternura, Demétrios puxou Fiora para si, envolvendo-a no seu próprio manto:

Vem, minha filha, regressemos ao mundo dos vivos! Ficaste livre para sempre do veneno da vingança...

Esteban apagou o fogo com o tacão da sua bota e foi o último a sair, deixando a porta aberta. Lá fora, a chuva cessara. As nuvens afastaram-se o suficiente para que uma estrela, uma só, virasse para a terra um olhar curioso. Um momento mais tarde, os cavaleiros afastavam-se. A propriedade abandonada regressava ao silêncio...