Desta vez, Fiora não desviou o olhar. O destino daquele homem cuja mão, alguns dias antes, tocara na sua para a levar para a câmara nupcial, era-lhe indiferente. Ao vê-lo suportar o seu suplício, só tinha um pensamento: onde estaria Hieronyma?

A jovem ouviu, atrás de si, Demétrios perguntar ao escultor o que era feito do velho Jacopo, o patriarca dos Pazzi, se também ele fora preso.

Não. Conseguiu fugir com alguns homens, mas Petrucci mandou outros em sua perseguição. Bem, e vão vinte e seis, se contei bem! São horas de regressar ao meu atelier.

O que me espanta disse Demétrios, rindo é que o tenhas abandonado!

Que havia de fazer? Todos os meus alunos fugiram como um bando de pardais aos primeiros acordes da Vacca e eu vi-me só com a minha argila e os meus pincéis. Fiz como eles, mas, agora, tenho de regressar, porque tenho que fazer.

Ainda a estátua de Colleone?

Claro. Creio, no entanto, que já tenho o tema definitivo, mas acrescentou ele virando-se para Fiora sou capaz de arranjar algum tempo para ti, bela Fiora. Tenho na cabeça um bronze representando Artemisa e nenhum dos meus modelos é digno de me inspirar a deusa. Tenho de falar com monsenhor Lourenço acerca deste assunto.

O artista afastou-se, fendendo a multidão como um pequeno barco teimoso que decidiu atravessar uma barra perigosa. Os outros três seguiram-no com os olhos e depois Demétrios meteu o seu braço no de Fiora. Já te tinhas esquecido de como é Florença, não é verdade? perguntou ele, adivinhando o que lhe ia na cabeça. As piores cenas de um massacre não impedem um artista de pensar na sua obra. Quanto a ti, apesar do que se passou, nunca deixaste de lhe pertencer. Para Verrocchio, estes três anos não se passaram.

Acho que tens razão. Ele falou-me como se nos tivéssemos visto ontem. No entanto, no meio deste drama... A população de Florença gosta do drama, sobretudo quando pode desempenhar um papel. Mal o sangue e os corpos desaparecem, regressa, como se nada tivesse acontecido, ao seu comércio, aos seus amores, aos seus livros, às suas colecções

e canta a doçura da vida com o mesmo entusiasmo sincero que pôs ao transformar-se numa alcateia de lobos para uivar à morte...

Desta vez, talvez dure mais tempo disse Esteban. Florença não vai esquecer, tão cedo, Giuliano.

Sem dúvida, mas amará Lourenço ainda mais ardentemente. Um momento mais tarde, cavalgando tranquilamente as mulas que tinham reencontrado na pequena estrebaria da taberna dos marinheiros em direcção a Fiesole, Fiora pensava que Demétrios não estava totalmente certo. Que as gentes de Florença eram versáteis, descuidadas e se entregavam levianamente a excessos de entusiasmo ou de crueldade, já ela sabia há muito, mas naquele dia procurara, em vão, no meio daquele mesmo furor que em tempos quase a vitimizara, o rosto familiar da cidade de que tanto gostava.

Talvez a idealizasse demasiado no decurso dos grandes desgostos que ela lhe causara? Talvez, também, ela tivesse envelhecido durante aqueles três anos que a tinham marcado indelevelmente? Ou seria porque, simplesmente, apesar de ter sempre querido ser florentina, não o fosse verdadeiramente?

No entanto, uma coisa era certa: o sangue dos Pazzi e dos seus aliados, que ela vira derramar-se, não era suficiente, porque lhe faltava um: o de Hieronyma. Enquanto aquele monstro respirasse sob o mesmo sol, Fiora sabia que não teria tréguas nem repouso.

Então? Não era tipicamente florentino aquele gosto pela vingança, um gosto que sempre transportara em si?

CAPÍTULO XIII

LOURENÇO

De pé por trás da janela do seu antigo quarto de onde admirara, tantas vezes, os seus jardins em terraço e, mais abaixo, o panorama cativante da sua cidade que se parecia com um ramo de rosas atado pela fita de prata do Arno, Fiora procurava reencontrar a sua alma de então. Geralmente, e quando chegava a noite, o ramo transformava-se num tapete cinzento e azul, picado aqui e ali por uma minúscula estrela, uma das raras luzes acesas nas ruas.

Naquela noite, tudo tinha mudado. Naquela noite, Florença, que se recusava a adormecer, enrubescia com uma vida violenta e instintiva, como se fosse um cadinho de fundidor. Em tempos, do alto da torre de Demétrios, Fiora vira-a com o seu rosto mau e inchando de cólera, mas fora pouca coisa em comparação com o que vira naquele dia, porque, na pessoa de Giuliano, Florença acabava de perder, com o seu Príncipe Encantado, uma parte do seu coração: a mais terna. E na espécie de grunhido abafado pela distância que subia até Fiesole, a jovem pensava distinguir os gritos de morte, as maldições e os gemidos de mulheres em pranto. Queimavam-se, pilhavam-se as casas dos Pazzi e dos seus aliados, das quais, de madrugada, provavelmente, não restaria nada. Era um holocausto de amor que a cidade, furiosa e desesperada, oferecia ao seu filho querido.

Naquele dia, Giuliano juntara-se a Simonetta e talvez tivesse sido melhor? Talvez que, de mão na mão, ambos contemplassem do céu o cenário dos seus amores, mas uma coisa era certa e Fiora sentia-a em todas as fibras do seu ser: Florença nunca mais seria o que fora nos tempos em que eles se tinham amado contra a lei dos homens e contra a da Igreja, visto que a Estrela de Génova era casada mas protegidos pela sua beleza, pela sua juventude deslumbrante e por toda a alegria que faziam nascer à sua passagem. O povo adorava-os como símbolos da graça e alegria de viver de uma cidade excepcional.

Nada seria como antes. Fiora sentira-o ao penetrar naquela casa onde conhecera a maior das felicidades nos braços de Philippe. E isso devia-se menos à decoração, que não era a mesma pilhada no momento do drama, a villa fora mobilada de novo ao gosto de Lourenço do que a uma questão de atmosfera e à qualidade do silêncio.

Aquilo que Francesco Beltrami reclamava muitas vezes, quando se retirava para o seu studiolo, estava vivo, feito de palavras sussurradas, de passos em surdina, de gestos medidos por parte das vinte pessoas preocupadas em não perturbar o mestre no seu trabalho ou no seu repouso. Agora, era o vazio do silêncio... Demétrios ocupava, entretanto, aquela casa com Esteban, mas o que faltava, para além do próprio Francesco, era Léonarde, cuja presença chegava para dar alma a uma cabana de carvoeiro, era Khatoun, a gatinha sempre a ronronar e eram, também, todos os servos, que pareciam, tal como a própria casa, ter ganho raízes na terra de Fiesole, mas que a tempestade dispersara. Agora, era a negra e discreta Samia que reinava na cozinha e na casa com a ajuda de duas escravas, a Samia dos passos discretos que, outrora, fora a governanta do castelo do médico e que, muito naturalmente, retomara o seu lugar.

Fiora gostava muito de Samia, que era doce e ordenada e que a tratara bem quando Demétrios a levara para sua casa no fim do pesadelo, mas a negra nunca pertencera ao seu universo de adolescente feliz e plenamente satisfeita. Só aparecera nos tempos difíceis.

Era quase meia-noite. Porém, a despeito do dia estafante que acabava de viver, consecutivo de outros que o tinham sido menos, Fiora não conseguia dormir. Nem conseguia ficar estendida naquele leito vestido de seda branca como o leito de uma virgem, mas que nunca fora o seu. Preferiu ficar ali, de pés nus em cima de um tapete, olhando, esperando não sabia o quê.

Demétrios, depois de a ter levado a Fiesole, regressara, como prometera, para tentar falar a Lourenço. Regressara ao crepúsculo, trazendo com ele um Rocco meio-morto de fadiga que Samia alimentara abundantemente antes de o mandar deitar-se. Agora, dormia num quarto próximo do de Fiora e, no corredor, podiam ouvir-se, ao passar diante da sua porta, os seus roncos poderosos de homem cansado.

À pergunta de Fiora a propósito do Magnífico, o grego respondera:

Vê-lo-ás em breve... Reencontrar-te foi, para ele, o único conforto para a sua dor, que é profunda. A morte de Giuliano amputou-o de uma parte de si mesmo.

Em seguida, o médico falou dos cuidados com que tinham rodeado o corpo do jovem. Lavado, perfumado, vestido de negro sob a sua armadura de cerimónia, Giuliano, de mãos juntas e olhos fechados, repousava àquela hora na capela do palácio familiar num extraordinário leito fúnebre onde os lençóis eram da mesma cor, semeados de enormes ramos de violetas, das violetas que eram as flores preferidas do seu irmão e que este fazia questão de cultivar nos seus jardins. Aos pés do jovem defunto, o seu elmo emplumado de branco, as suas luvas e as suas esporas de ouro jaziam em cima de uma grande almofada de veludo púrpura.

A capela, em si, era uma obra de arte e Fiora só tinha que fechar os olhos para a rever. Ao longo das suas paredes, um grande fresco, representando o cortejo dos Reis Magos seguindo a Estrela, desenrolava-se, num fausto inaudito de cores de um brilho raro, numa deliciosa paisagem toscana semeada de castelos, ciprestes e arbustos floridos. Cavalos ricamente ajaezados, trajes bordados a ouro, coroas de pedrarias, servos adornados e alegres levando à trela leopardos, galgos da Caramânia, ou transportando presentes. O próprio Lourenço aparecia no fresco, mas sob a forma de um belo adolescente louro e de cabelos encaracolados que muito divertira Fiora, porque ninguém acreditaria

Região da Ásia Menor Meridional


que o belo Rei Mago representava, supostamente, o mais velho dos Médícis. Lourenço fora o primeiro a divertir-se e gostava de dizer que Benozzo Gozzoli, o pintor, gostava tanto da sua pessoa que se obstinava em ver nele o anjo que nunca seria...

Uma outra maravilha enriquecia aquela rica capela: uma adorável Natividade, colocada por cima do altar, obra de um monge despadrado cuja vida tumultuosa escandalizara Florença vinte anos antes. Mas Filippo Lippi tinha tanto talento que lhe tinham perdoado... até o facto de ter dado à Madonna o rosto encantador da jovem freira por quem estava apaixonado.