Sim, aquela capela era bem um quadro digno de receber o corpo do jovem príncipe e Fiora lamentou não poder ir lá rezar, porque não tinha a certeza se as mulheres da casa, Lucrécia, a mãe dos Médicis, e Clarissa, a mulher de Lourenço, estariam dispostas a encontrar-se com uma mulher que fora, em tempos, objecto de escândalo. Teria gostado de oferecer o seu tributo de lágrimas àquele que fora o seu primeiro amor, como o havia sido de Catarina Sforza. Como receberia a mulher de Girolamo Riario a notícia daquela morte que tanto desejara evitar? Conseguiria esconder o seu desgosto? No fim de contas, o próprio Riario faria má cara, porque a conspiração fracassara no seu objectivo principal: abater o senhor de Florença. O senhor de Florença continuava vivo, mais poderoso e mais amado do que nunca!
Subitamente, Fiora apurou o ouvido. O galope de um cavalo ressoava na noite, aproximava-se, aproximava-se mais... Ela ouviu um ruído de vozes: a de Esteban e uma outra, mais surda, que não identificou. Quem poderia ser àquela hora?
Rapidamente, Fiora enfiou por cima da camisa uma espécie de dalmática aberta e sem mangas que usara em tempos e que, por uma espécie de milagre, Samia encontrara, com mais algumas roupas, no celeiro, dentro de uma arca. Com a vela que ardia por detrás das cortinas do seu leito, ela acendeu um candelabro, saiu para a galeria e foi até à escadaria. Ali, deteve-se, erguendo por cima da cabeça o ramo de chamas.
Ao fundo dos degraus, um homem, todo vestido de negro, sem gorro e de mãos nuas, olhava para ela sem dizer uma palavra e esse homem era Lourenço...
A jovem nunca lhe vira aquele rosto enraivecido, sulcado pelas lágrimas e pelo sofrimento, nem aquele olhar ardente, que suplicava e exigia tudo ao mesmo tempo. Na sombra do vestíbulo, por trás dele, o traje sombrio de Demétrios deslizou sem ruído nas lajes de mármore e desapareceu.
Num passo lento, como se temesse que um movimento brusco fizesse desaparecer a aparição, ou a assustasse, Lourenço subiu na direcção de Fiora. Ela podia sentir a sua respiração, podia ver, sob o gibão negro e a camisa aberta deixando ver a brancura de uma ligadura, erguer-se o peito magro. Quando ele chegou diante dela, dominando-a com a sua alta estatura, ela não fez um gesto, não disse uma palavra, levantando apenas a cabeça para ele, oferecendo apenas os seus lábios entreabertos sobre os quais, docemente e fechando os olhos como que para melhor saborear um prazer raro há muito esperado, ele pousou os seus sem a tocar. Foi um beijo longo mas leve, delicado, quase tímido, como se ele bebesse uma flor de um cálice...
Depois, Fiora sentiu as mãos de Lourenço nos seus ombros e essas mãos tremiam. Então, ela repeliu-o com doçura, mas sorriu-lhe ternamente ao ver o seu rosto crispar-se de dor. A jovem segurou-lhe numa das mãos, pegou no candelabro e caminhou na direcção da porta do seu quarto.
Vem! disse ela apenas.
Enquanto, com um gesto maquinal, ele fechava a porta, Fiora foi colocar a luz sobre uma arca e, uma após outra, apagou as velas. O quarto ficou apenas iluminado pela luz da vela que mal dourava o interior das cortinas brancas. Imóvel, Lourenço seguia com os olhos cada um dos gestos da jovem. Então, ela deixou cair por terra o manto sem mangas e desatou a fita da sua camisa, que deslizou até aos seus tornozelos. Um instante depois, ela estava nos braços dele e ele levava-a para o leito onde se deixou cair com ela...
Fizeram amor em silêncio, porque não necessitavam de palavras. O vocabulário da paixão não era para ali chamado, sabiam ambos que a sua união tinha raízes num passado de grande admiração mútua, sem dúvida, mas também numa espécie de instinto, que os levara a unir-se. Lourenço fora ter com Fiora como o viajante perdido que descobre, subitamente, uma estrela no céu negro e Fiora acolheu-o porque sentira, ao vê-lo que, entregando-se, era o único meio de apaziguar aquele desespero mesclado de cólera que lhe envenenava a alma. Além disso, vestida com o nome execrável dos Pazzi, sentia um deleite secreto em dar ao Magnífico aquela noite de núpcias que nunca aceitara ter.
Próximos um do outro em tais condições e sem o socorro de um verdadeiro amor, Lourenço e Fiora poderiam ter conhecido o desaire, ou, pelo menos, uma decepção, mas descobriram, maravilhados, que os seus corpos unidos vibravam em uníssono, realizando um acordo perfeito, tão raro entre amantes. Cada um sabia, por instinto, o que podia agradar ao outro e foi em conjunto que atingiram a voluptuosidade suprema, um prazer de uma intensidade tal que, no fim, cada um foi atirado, ofegante, para o seu lado da seda amarrotada dos lençóis. Após o que, simultaneamente, mas nos braços um do outro, caíram no sono de que ambos tinham tanta necessidade e que não tinham conseguido encontrar na sua solidão.
De madrugada, Lourenço levantou-se. Fiora dormia tão bem que ele hesitou em acordá-la, mas antes de mergulhar de novo no inferno que o esperava, ele precisava de encher os olhos e os lábios com uma força nova. Então, tomou-a de novo nos braços e beijou-lhe o rosto até que ela, por fim, abriu as pálpebras lentamente.
Não queria partir como um ladrão murmurou ele contra a sua boca. E depois... permites-me que regresse... logo à noite?
Ela sorriu-lhe, espreguiçando-se com uma deliciosa sensação de bem-estar:
Precisas de autorização?
Preciso... O que tu me deste foi tão belo que mal posso acreditar.
Desta vez, ela riu-se:
Ao pé de ti, frei Tomás era um crente cego. Ora, diz-me lá como é que aparecemos os dois, nus, neste mesmo leito?
Talvez tenha sido um sonho e eu queira continuar a sonhar? Eu preciso de te amar, Fiora, de receber o teu calor e de te dar o meu. Tu és como uma nascente há muito esperada e que um milagre fez brotar do rochedo mais negro e mais árido. Não beber mais dela seria, para mim, um sofrimento cruel. Continuas a desejar-me?
Ela ajoelhou-se no leito para segurar nas suas mãos aquela cabeça rude, aquele rosto tão feio e tão atraente:
Sim, desejo-te! disse ela numa voz baixa e um pouco rouca, que o fez estremecer. Volta. Estarei à tua espera.
A jovem beijou-o longamente e depois, deslizando rapidamente por entre as mãos ávidas que tentavam agarrá-la, meteu-se debaixo dos lençóis e colocou uma almofada entre os braços...
Mas, por agora, preciso que me deixes dormir!
Quando Fiora voltou a acordar, o céu estava cinzento e a chuva, que fizera tréguas durante dois dias, recomeçara a cair copiosamente. O jardim estava afogado num nevoeiro líquido que diluía os carreiros e desfeava as estátuas, mas a jovem concedeu apenas à paisagem enevoada um suspiro de aborrecimento e um encolher de ombros. Depois de tantos sofrimentos, a noite que acabava de viver provocara-lhe o efeito de um banho de juventude. Lourenço era o amante com que todas as mulheres sonhavam e as suas carícias tinham-lhe lavado o corpo de todas as concupiscências e dores que tivera de suportar. E a jovem nem sequer se interrogou acerca dos sentimentos que ele podia inspirar-lhe: sentia-se bem junto dele e, por agora, era tudo o que contava. No entanto, foi com uma espécie de cólera que repeliu o único pensamento que a importunou: apesar de os móveis não serem os mesmos, fora naquele quarto que Philippe fizera dela uma mulher.
A culpa é tua! gritou ela para aquela sombra que voltava inoportunamente para lhe impor a sua recordação. Não devias ter partido para ir brincar aos grandes cavaleiros junto da tua princesa! Foste tu que instalaste entre nós o irreparável. Eu só tenho vinte anos! Tenho direito à vida!
A jovem esquecera por completo que, pouco tempo antes desejara morrer, de tal modo os encantos do amor podem aprisionar um ser jovem. Com todas as suas forças, queria repelir as contrariedades e a austeridade. Vivera cativa durante meses e eis que a sua prisão acabava de abrir-se para qualquer coisa que se parecia com a felicidade, mesmo que não passasse de uma aparência... E foi com um olhar pleno de desafio que, depois da refeição servida no seu quarto por Samia, foi afrontar o olhar de Demétrios quando se lhe juntou no antigo estúdio do seu pai.
Mas ele conhecia-a demasiado bem para não penetrar nos seus pensamentos e aqueles grandes olhos cinzentos carregados de nuvens de tempestade arrancaram-lhe um sorriso. Fiora, pensou ele, procurava um pretexto para se encolerizar, esperando desembaraçar-se, assim, do constrangimento que sentia. E não se enganou:
Por que esse sorriso? perguntou ela nervosamente e por que me olhas assim? Mudei alguma coisa? Sim, entreguei-me a Lourenço! Até me ofereci a ele! E, logo à noite, ele vai regressar e eu vou-me entregar outra vez a ele!
Tirando as lunetas que usava cada vez mais frequentemente, Demétrios afastou-se da estante sobre a qual abrira um manuscrito hebraico, aproximou-se da jovem e pousou as mãos nos ombros que sentiu ficarem hirtos.
Longe de mim fazer-te qualquer censura, Fiora! O que se passou a noite passada entre Lourenço e tu estava escrito há muito. Ele falou-me muitas vezes de ti, depois do meu regresso e compreendi, sem dificuldade, que tu eras a sua maior dor. Era normal que ele viesse ter contigo do fundo da sua confusão.
Nesse caso, achas que ele me ama?
Tu és como todas as mulheres: simplificas demasiadamente os sentimentos. Lourenço estava como um jardineiro que viu fugir um ladrão com a mais bela flor do seu jardim sem, sequer, lhe dar tempo de respirar. Ontem, a sua flor regressou, mas mais bela do que nunca e exalando um perfume demasiado capitoso para que ele renunciasse a embriagar-se. Quanto a ti...
Quanto a mim?
Cessa de te rebelares assim, Fiora! Tu não cometeste nenhum crime. O amor, simplesmente, devolveu-te o gosto pela vida que tinhas perdido.
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