Vem! disse Demétrios para Fiora. Chegou a hora de repousares um pouco.
Para onde me levas? Para o palácio dos Médícis?
Não. Nem sequer nos poderíamos aproximar dele no estado em que as coisas estão. Aliás, Esteban está à minha espera com as nossas mulas naquela taberna de marinheiros de que ele tanto gosta, perto da Senhoria.
E o meu companheiro? Não posso abandoná-lo.
Partiu com Lourenço e os amigos dele. Depois de te levar para Fiesole, regressarei ao palácio e perguntarei por ele. Ao mesmo tempo, direi que regressaste.
Lourenço já sabe. Ele viu-me quando lhe dei a minha espada.
Mais uma razão para lhe falar esta noite. E agora, vamos!
Quando saíram da igreja, semicerrando os olhos por causa da luz cegante, a praça estava vazia, mas quando se dirigiram para a Senhoria, viram que nem toda a cidade seguira o cortejo dos Médicis, já que uma multidão numerosa se acotovelava na vizinhança do velho palácio.
Nunca poderemos passar gemeu Demétrios. No entanto, temos de o fazer se quisermos ir ter com Esteban.
Com efeito, um mar humano, um mar em fúria, uivante e excitado, percorria as poderosas paredes da Senhoria. Alguns tentavam, tolamente, escalar as pedras ciclópicas que constituíam a sua base, na esperança insensata de chegar às janelas lá no alto. Outros agarravam-se aos grandes pregos da porta chapeada a ferro, diante da qual os guardas dos priores, vestidos de verde, faziam os possíveis para os repelir. Todas as bocas se abriam em gritos ferozes e, empoleirado no Marzocco, o leão de pedra símbolo da república, um energúmeno desgrenhado lançava clamores selvagens enquanto agitava o seu gorro. Naturalmente, a Vacca tocava sobre toda aquela algazarra do alto da sua torre vertiginosa, no topo da qual flutuava o estandarte da flor-de-lis vermelha.
É extraordinário! disse Demétrios, que olhava sem compreender. Que faz esta gente aqui aos gritos?
O fim da sua pergunta perdeu-se sob um enorme clamor de alegria: a janela principal do palácio, a que dava para um balcão de ferro, acabava de se abrir e dois soldados, vestidos com túnicas verdes, apareceram, arrastando um homem amarrado que uivava de terror. A multidão calou-se, aguardando o que se seguiria. Foi rápido. Um dos homens de armas mergulhou uma adaga no peito da vítima e depois, enquanto retirava a arma, o seu companheiro agarrou no corpo dobrado, ergueu-o acima da cabeça num esforço hercúleo e atirou-o para a praça, onde ele se esmagou. A multidão afastou-se com uma espécie de suspiro de voluptuosidade...
No balcão, a cena renovou-se e um outro corpo apunhalado foi atirado à multidão, ao mesmo tempo que, entre as seteiras, o estandarte de Cesare Petrucci, magistrado da justiça, era desfraldado para indicar que a força estava do lado da Lei e que chegara a hora das represálias...
Demétrios não teve tempo de perguntar de novo o que significava aquilo, ocupado como estava a desembaraçar-se de um garoto que, a pretexto de se içar para uma janela da casa à qual ele estava apoiado com Fiora, a escalava corajosamente. A ajuda veio-lhe na pessoa de Esteban que, tendo-o visto, usara os cotovelos e os pés para se lhe juntar. Pendurando o rapaz, que berrava e esperneava, num dos porta-archotes da dita casa, o castelhano ia puxar o seu senhor para junto de si para o tirar dali quando viu Fiora.
Oh! Não é verdade!... Estou a sonhar!
Não, meu caro Esteban, sou eu mesma!
Por Dios!
Levado pela alegria, Esteban tomou a jovem nos braços e beijou-a nas duas faces. Mas já o movimento da multidão os empurrava contra a parede, tapando a frágil passagem que ele conseguira abrir para se juntar ao seu patrão.
Não conseguimos mexer-nos, meu rapaz! suspirou o grego. Temos de ficar aqui. Se, ao menos, soubéssemos porquê?
Oh, eu sei... É uma verdadeira história de loucos.
O castelhano deu o seu melhor para explicar o que se passava. Enquanto uma parte dos conjurados assaltava os Médícis na catedral, uma outra, com o arcebispo Salviati de Pisa à cabeça, recebera como missão apoderar-se da Senhoria. Quando os sinos tocaram para a Elevação, essa gente pensou que os dois irmãos estavam mortos e correu a fechar-se no palácio dos priores, ignorando que as portas em questão não se podiam abrir senão do exterior para quem não possuía as chaves. Viram-se, portanto, fechados juntamente com todos aqueles que estavam dentro do palácio. Então, Salviati mandou chamar Petrucci, que estava à mesa e que não gostou nada daquela visita. Este recebeu muito mal o prelado guerreiro, que se embrulhou num discurso confuso. Parecendo não conseguir manter-se de pé, tossia frequentemente, como que para dar um sinal qualquer.
No mesmo momento, o velho Jacopo Pazzi, pensando que os seus assuntos decorriam pelo melhor, desembocou na praça com alguns homens gritando ”Liberdade! Liberdade!”. O magistrado, que já olhava para Salviati com olhos desconfiados, compreendeu o que se passava e como um dos conjurados se aproximasse dele tranquilamente para lhe dar a notícia, agarrou-o pelos cabelos e fê-lo dar várias voltas sobre si mesmo sob o olhar pasmado do arcebispo, antes de o atirar para os braços de um guarda, ordenando a este que o prendesse. Em seguida, gritou ”Às armas! Ajuda!” com tanta força, que os oito priores e todo o pessoal da Senhoria acorreu. Depois, como só os guardas tinham armas e Petrucci acreditava estar perante uma revolução, toda a gente se precipitou para as cozinhas em busca de facas, espetos e picadores, antes de regressar à torre para ali se entrincheirar e esperar os acontecimentos.
Entretanto, os poucos conjurados fechados na Senhoria andavam de um lado para o outro à procura de uma saída. Compreenderam que estava tudo perdido quando chegaram os arqueiros e os servidores dos Médicis que escoltavam os prisioneiros feitos na catedral. Os priores, aliviados, desceram da torre para constituírem um tribunal.
E agora, Petrucci acerta as suas contas, ao mesmo tempo que as de monsenhor Lourenço! concluiu Esteban, apontando para o que se passava no balcão.
Dir-se-ia que a sua justiça era expedita e Fiora teve um arrepio ao recordar-se do ódio com que o magistrado a tratara no momento do escândalo causado por Hieronyma. Em seguida, a jovem desviou o rosto para não ver mais nada, enjoada com o espectáculo.
Mal os homens precipitados do balcão tocavam o solo, a multidão desfazia-os e erguia espetados em chuços, em forquilhas, ou até em paus, aqueles despojos terríveis para os passear pela cidade...
Vamo-nos daqui! suplicou Fiora. É insuportável!
Bem gostaria disse Esteban mas temos de ficar aqui. Como vedes, não podemos passar por esta populaça, que está ébria de sangue e que, dentro de pouco tempo, também o vai estar de vinho!
Na verdade, uns picheis a pingar já começavam a passar por cima das cabeças. Passavam-nos de uns para os outros para encorajar aqueles que decepavam os corpos, não sem antes beberem uma golada ou duas.
Preparava-se um novo acto do drama. Três homens, fortemente amarrados, acabavam de aparecer no balcão. Um deles estava vestido com um longo traje violeta.
O arcebispo Salviati! murmurou Demétrios. Também vão matá-lo sem julgamento?
Mas não estava nenhum punhal à vista. Os três condenados os dois outros eram o irmão do arcebispo e um tal Bracciolini foram pendurados pelos pés no balcão de ferro. Era, então, um modo de execução muito em voga em Florença, porque permitia que o povo gozasse uma longa agonia. E a multidão berrou de alegria ao ver o traje do prelado cair, mostrando as suas pernas e envolvendo-lhe o resto do corpo. Mas como, justamente, lhe escondia o rosto, a multidão avançou um pouco para ver melhor, ao mesmo tempo que alguns reclamavam que içassem Salviati para o pendurar pelo pescoço...
Esteban decidiu aproveitar a ocasião. Agarrou em Fiora pelos braços e arrastou-a consigo. Demétrios fechava a marcha. Na pressa de subtrair Fiora àquela perigosa barafunda, Esteban chocou violentamente contra um homem de uns quarenta anos que, com a sua estatura curta e entroncada, a grande cabeça coberta de cabelos negros, curtos e encaracolados, tinha todo o ar de camponês. Mas possuía uma testa alta, inteligente, uns olhos escuros particularmente penetrantes e o seu traje, se bem que cheio de numerosas nódoas, era de bom tecido. De braços cruzados, observava o espectáculo perfeitamente impassível quando Esteban quase o atirou por terra e este recebeu, em troca, um murro desferido com uma rapidez fulgurante. Rufião malcriado! começou ele pronto a prosseguir o combate, mas Demétrios reconheceu-o: Desculpa o meu servidor, ser Andréa! Se ele te empurrou foi porque temos pressa de abandonar este local. Porquê? Achas, por acaso, médico, que o tratamento é demasiado rude para aqueles assassinos? Pela minha parte... O homem não terminou a frase. O seu olhar acabava de se deter em Fiora e encheu-se de uma doçura inesperada. A jovem também o reconhecera. Era Verrochio, o escultor mais célebre de Florença, um pintor de talento, também, e um fervoroso amigo dos Médicis. Não mudara nada desde a famosa giostra de 23 de Janeiro de 1475, obra-prima do seu talento genial... e onde ela, pela primeira vez, vira Philippe de Selongey. Este dia devia alegrar-te, Fiora Beltrami, porque são os inimigos do teu pai que estão a executar. No entanto, vejo-te muito pálida?
Acabo de chegar, ser Andréa, e não esperava cair no meio de um banho de sangue...
Nunca será suficiente para pagar o de Giuliano! Repara! É a vez de Francesco Pazzi. Apanharam-no em camisa na cama de uma mulher...
Era ele, na verdade. Sob as cordas que o amarravam e os vestígios de sangue dos ferimentos, estava nu, mas não perdera nada da sua impertinência. A gritaria da multidão cobria as imprecações com que ele enchia os carrascos. O povo, exasperado, sabendo que fora ele o primeiro a ferir Giuliano, pedia que lhe fosse entregue. Um instante mais tarde, atado pelos tornozelos, balouçava ao lado de Salviati, demasiado alto para ser atingido por outra coisa que não projécteis. Então, as pedras começaram a chover sobre ele...
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