Continuas a ter a tua villa de Fiesole, que Médicis te guardou. Falámos muitas vezes de ti, sabes? E eu creio que, a despeito do que sofreste, ele sempre esperou que regressasses, um dia.

E a gente lá do alto, acolheu-te bem?

Acolheu, ainda por cima porque uma pequena epidemia de peste, no Verão passado, permitiu-me devotar-me a eles. Os de Fiesole só me querem a mim e também alguns outros, em Florença... mas, peço-te, chega de falar de mim. É a tua história que eu quero ouvir.

Não tiveste nenhuma visão acerca de mim? Tu, que eras capaz de ver através do tempo e do espaço?

Sim, por vezes. Mas era sempre tudo muito vago, porque estavas longe e a minha amizade por ti interpretava mal o que eu via. Fala, por favor!

O silêncio rodeava os refugiados da Cantoria. Os assaltantes da sacristia já só eram alguns, andando em frente da porta fechada e falando em voz baixa, como lobos procurando como atacar. Não havia mais ninguém na nave, senão os raios crus do sol do meio-dia penetrando profundamente. Do alto do seu refúgio e indo encostar-se à balaustrada, Fiora lançou um olhar para o trágico espectáculo dos corpos abandonados sobre o mármore negro em redor de duas grandes manchas púrpuras: o cadáver de Giuliano já hirto pela morte no seu traje de festa e, ao fundo, a forma quase tão rígida do jovem cardeal aterrorizado, junto da cruz cintilante a que continuava agarrado... Fiora suspirou.

Até este dia, em que tudo vai, talvez, desabar no teu universo, tu, ao menos, encontraste a paz. Eu, por outro lado, quase só conheci espinhos, mas também uma grande alegria: o nascimento do meu filho Philippe.

Uma chama, parecida em tudo com a de outros tempos, acendeu-se nos olhos enternecidos do grego e o seu rosto iluminou-se:

Um filho? Tu tens um filho? Oh, Deus... que maravilha!

Sim. Mas talvez não o torne a ver.

Deixando-se cair de encontro à balaustrada, Fiora relatou tão sucintamente quanto possível o que fora a sua vida desde que, em Nancy, tinham desabado o poder e as armas do último grande duque do Ocidente.

Quando acabou, Demétrios não disse nada: parecia transformado em pedra e como estava, sentado muito direito no seu traje negro sujo de pó, as pernas cruzadas, parecia um daqueles velhos sábios que, acocorados na terra vermelha dos mercados do Oriente, cantam a glória do Profeta, os grandes feitos dos califas ou dos seus cavaleiros lendários e deixam, por vezes, sair palavras vindas de uma antiga sabedoria ou de uma visão do futuro. Parecia tão longe, de repente, que Fiora, inquieta, se debruçou e, pousando-lhe uma mão no ombro, abanou-o docemente.

Demétrios! Ouviste o que eu disse?

Ele não se mexeu e os seus olhos permaneceram fixos num ponto qualquer das paredes brilhantes de Santa Maria del Fiore.

Sim... Mas, Fiora... não creio que o teu marido tenha morrido.

O coração da jovem parou, ao mesmo tempo que a sua garganta se apertava e a sua boca secava:

O que é que tu estás a dizer?

Ele teve um longo arrepio que o sacudiu por inteiro e o arrancou à espécie de transe em que estivera mergulhado. Olhou para ela e teve um sorriso débil:

Crês que estou louco?

Não... Eu conheço a tua clarividência, mas, desta vez, estás enganado, Demétrios! Philippe subiu para o cadafalso sob os olhares de uma cidade inteira, o mesmo cadafalso onde morreram o meu pai e a minha mãe. Dali ninguém desce e Mathieu de Frame sabia o que estava a dizer quando me anunciou a sua execução.

Sim, eu vi o gládio erguido... mas não vi o sangue. Com uma profunda tristeza, Fiora pensou que, na verdade,

Demétrios tinha envelhecido e que o seu espírito, tão brilhante noutros tempos, envelhecia ao mesmo tempo que o seu corpo. Os velhos tempos tinham morrido, perigosos, sem dúvida, ofegantes e apaixonados, mas que encanto tinham tido. Mortos com Philippe.

A voz de bronze da Vacca continuava a ouvir-se e, no exterior, ouviram-se gritos, cavalos a galope e a grande nave de Santa Maria del Fiora encheu-se com o barulho característico de um grupo de soldados em marcha. Ouviu-se uma voz que precipitou Fiora e, mais lentamente, Demétrios à balaustrada:

Abre, Monsenhor! Sou eu, Savaglio! Não tens mais nada a temer e a cidade é tua!

Era, efectivamente, o capitão da guarda de Lourenço à cabeça de uma companhia cujas armaduras vinham cobertas com as cotas de armas bordadas com a flor-de-lis vermelha. Atrás deles regressava a multidão, metade tranquilizada, a outra metade, talvez, arrependida.

A porta de bronze abriu-se. Ao ver aparecer a alta silhueta magra e o rosto sombrio daquele senhor que fora sempre seu amigo, o povo lançou um grito de alegria que agitou os lustres de cobre e entoou como uma tempestade, Um empurrão brusco, vindo dos que estavam no adro e que tentavam entrar, fez avançar alguns guardas e Savaglio teve de mandar intervir as lanças para salvar o seu senhor da morte por sufocação:

Recuai! berrou ele. Recuai todos ou carrego sobre vós! Se não obedeceis, é porque ainda há assassinos entre vós. Portanto, cuidado!

A multidão recuou, abrindo uma passagem pela qual Lourenço e os seus amigos avançaram, saudados por vivais frenéticos, aos quais o Magnífico respondeu com um gesto da mão. Mas, subitamente, o senhor de Florença parou:

Giuliano! exclamou ele. Que fizeram do meu irmão?

Está aqui, Monsenhor! disse Savaglio mostrando, com a espada, um grupo de homens que, naquele mesmo instante, erguia sobre os ombros uma padiola coberta por um pano de seda arrancado, sem dúvida, a uma janela da praça. Sob o tecido púrpura desenhava-se a forma do corpo.

Rapidamente, Lourenço aproximou-se deles e, com um gesto brusco, puxou o pano, que deslizou para o chão:

Quero que Florença veja, com os seus olhos, o que fizeram dele! Erguei-o! Erguei-o o mais alto que puderdes, para que a sua morte grite aos céus por vingança! E que seja feita justiça!

O cadáver apareceu, exangue no seu traje de festa, perfurado por trinta golpes de punhal, de tal modo os seus assassinos se tinham encarniçado sobre aquele que fora o feliz amante de Simonetta Vespucci, um pobre despojo sobre a mão pendente do qual Lourenço, de lágrimas nos olhos, pousou os lábios. Mas quando o triste cortejo se ia afastar, ele deteve-o uma vez mais:

Onde está o cardeal Riario? perguntou ele. Savaglio fez um gesto de ignorância, mas um miúdo, que vestia o traje dos cantores da igreja, saiu de detrás de um pilar e avançou:

Os cónegos do Duomo recolheram-no, ilustríssimo Senhor. Encontraram-no meio-morto de medo diante do altar e levaram-no para o reconfortar. Deve estar na sala do capítulo.

Que o vão buscar!

Que vais fazer? perguntou Politien, inclinando-se para o ombro do amigo. Por que não o abandonas ao seu destino? O povo engole-o...

É isso que quero evitar. A multidão é capaz de o retalhar e isso faria dele um mártir, que o Papa se apressaria a canonizar. E esse badameco é um refém demasiado valioso para o abandonar assim ao furor de uma populaça cega.

Mal ele acabou de falar, um grupo lamentável e vagamente grotesco emergiu do lado direito do coro. Era, amparado por dois cónegos gorduchos que rolavam os olhos assustados, o pequeno cardeal, que fazia uma aparição sem glória. O infeliz acreditava, sem dúvida, que chegara a sua última hora. Mas quando reconheceu o Magnífico à cabeça daquele grupo armado, fez um esforço visível para reencontrar um pouco de dignidade.

Sinto-me... sinto-me profundamente magoado... com este drama que ensanguentou o santo dia da Ressurreição e não quero... ficar aqui mais tempo! Quero partir... imediatamente!

Lourenço olhou para ele do alto da sua estatura com um olhar pleno de piedade:

Nem pensar. A presença da Tua Grandeza neste dia terrível mostrou a todos de onde veio o golpe que matou o meu irmão e que quase me matou a mim. Tu vais ficar aqui, na minha própria casa, até me apetecer.

Isso é violar o direito da Igreja! Eu sou núncio do Santo Padre e, como tal, não posso ser retido contra a minha vontade. Não ousarás, penso, erguer a mão para um príncipe da Igreja?

Eu? Nunca... No fim de contas, tu és livre, como dizes. Vai à tua vida! As portas estão abertas...

O jovem prelado olhou alternadamente para o rosto sarcástico de Médicis, para o corpo erguido pelas cariátides humanas, para as máscaras fixas dos guardas vestidos de ferro e, mais longe, para a multidão, a multidão que rugia e que, fora das paredes da igreja, já berrava a sua condenação: À morte os Pazzi! À morte os Riario! E até à morte o Papa!”

Apesar do calor, o badameco estremeceu sob o seu traje púrpura, baixou a cabeça e murmurou, vencido sem ter combatido:

Entrego-me nas tuas mãos, senhor Lourenço!

Sem acrescentar uma palavra, este fez-lhe sinal para o seguir, ao mesmo tempo que tomava o seu lugar à frente do cadáver e caminhava na direcção da saída. A multidão calou-se e abriu-se na sua frente. Sob o portal, quando o corpo de Giuliano apareceu, o Sol fez cintilar o ouro do seu traje e, mais uma vez, fez-se silêncio. Os sinos do campanário começaram a tocar a finados e o batimento fúnebre caiu sobre a cidade, que parecia reter a respiração.

Subitamente, de uma só vez e como se uma palavra de ordem misteriosa a tivesse percorrido, a multidão enfureceu-se: um monstruoso uivo subiu ao assalto do céu. Um clamor imenso, que parecia sair das entranhas da própria terra. O cortejo fúnebre foi erguido, arrastado por uma maré que, na sua fúria, transformou aquela hora de luto numa hora de triunfo, o morto num vencedor loucamente aclamado e o infeliz núncio, sempre apoiado pelos cónegos, num vencido, ao qual apenas faltavam as correntes e os ferros.