A partir dos primeiros dias de Março, Philippe estava de regresso à cidade e instalava-se secretamente na sua casa familiar que, aparentemente, permaneceu de portas e janelas fechadas, como se ali não houvesse ninguém. A casa estava fechada há demasiado tempo para que a presença de um cavaleiro do Tosão de Ouro, cuja fidelidade ao duque Carlos era conhecida, não parecesse suspeita. A partir desse refúgio conseguiu reunir Franco Condado boas vontades e corações corajosos entre aqueles que tinham sido mais ou menos aliados da sua família, ou que a tinham servido. Uma correspondência constante com os partidários dos arredores permitiu-lhe planear um ataque nocturno à cidade, cujas portas ele próprio abriu chegado o momento. Mas, para vencer a guarnição francesa era preciso muita gente e a paciência impunha-se. Assim como o segredo. A situação do rebelde era, de algum modo, perigosa, porque uma grande parte dos almotacés e dos grandes burgueses começava a aceitar a ideia de virem a ser súbditos do Rei Luís se esse fosse o preço a pagar pela tranquilidade.

Os aliados de Philippe pertenciam, sobretudo, à juventude, às classes populares e aos antigos exércitos do duque mais ou menos arruinados, mas que não eram fáceis de manipular, já que demasiado ávidos por passar à acção. Foi assim que no dia 1 de Junho estalou uma desordem no bairro de Saint-Nicolas por causa de uma mulher maltratada por um soldado. Gritou-se ”Viva a Borgonha!”, escreveram-se nas paredes injúrias ao Rei de França e atiraram-se pedras aos homens de armas, que ripostaram. Correu um pouco de sangue e a calma foi restabelecida. E Philippe acreditou ter o controlo dos seus partidários, ignorando que alguns deles viam apenas na luta pela independência um bom meio de promover uma espécie de luta de classes.

No dia 26 de Junho, aquando de uma ausência de La Trémoille, o drama estalou por ocasião da eleição do novo vicomte-mayeur2 da cidade, na presença de um arauto de Maria de Borgonha. Os magistrados municipais estavam reunidos nos Cordeliers. Foi então que um grupo de homens, armados com tudo que lhes chegou às mãos, saiu da porta de Saint-Nicolas. À sua cabeça marchava, vestido com um longo traje ”acinzentado”, um certo Chrétiennot Yvon, em tempos um rico merceeiro mas agora arruinado e que morava, em Gevrey, num pequeno solar pertencente aos monges de Cluny.

1 Antigo inspector de pesos e medidas que fixava o preço dos comestíveis.

2 Uma espécie de Presidente da Câmara

3 Franciscanos


Mal entrou na cidade, Yvon obrigou os guardas da torre de Saint-Nicolas a entregarem-lhe as chaves e rasgou o estandarte real que flutuava lá no alto. Em seguida, ele e os seus homens desceram na direcção do coração de Dijon gritando às armas para os partidários da princesa Maria. Na multidão, alguém gritou:

Vamos buscar aqueles mestres almotacés que governam a cidade e que se escondem nos Cordeliers!

Entretanto, o alarme fora dado e os almotacés dispersos sob os cuidados de Selongey, consciente de que se cometia uma loucura. E tinha razão: quando Yvon desembocou na praça dos Cordeliers, só encontrou um idoso, Jean Joard, presidente do parlamento de Borgonha e que, confiante na sua idade e na sua influência, quis fazer frente ao motim, ordenando aos rebeldes que abandonassem as armas e que dispersassem.

Nós estamos aqui para entregar a cidade a Madame Maria exclamou Yvon. Ou prestas homenagem à tua princesa, ou morres!

A nossa duquesa nunca exigiu que Dijon lhe fosse entregue passando por cima dos cadáveres dos velhos servidores do seu pai exclamou Selongey colocando-se, de espada na mão, diante do ancião. Os Franceses é que devem ser mortos, não os nossos!

Ele e os como ele venderam-se, há muito, ao Rei Luís. E tu, também és como eles?

Eu sou Philippe, conde de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro e fiel até à morte a monsenhor Carlos, que Deus guarde na Sua protecção. E não reneguei o meu juramento de fidelidade.

Isso é fácil de dizer disse o outro com uma grande risada. O senhor de Selongey aqui, sem mais nem menos? Quando chegaste?

Há três meses. Alguns, aqui, sabem-no, mas tu, tu queres destruir o que eu arquitectei.

Alguém o conhece, aqui?

O olhar ameaçador do antigo merceeiro percorreu os rostos e reclamou uma resposta, desafiando quem lha quisesse dar. Ninguém se mexeu e Philippe compreendeu que tinha perdido.

Muito bem! concluiu Yvon. Nesse caso, vamos acabar com todos os apoiantes de Luís XI e partilhar os seus bens. Ao ataque, meus amigos!

Um instante mais tarde caía o velho presidente, apunhalado por Chrétiennot Yvon e o próprio Philippe, subjugado por cinco ou seis magarefes que lhe passaram pelo pescoço o lenço de veludo vermelho da vítima, foi obrigado a seguir o bando de energúmenos, que foi, primeiro, pilhar a casa do Singe depois de ter solenemente proclamado a soberania da princesa Maria.

Selongey, que sonhara entregar à sua duquesa as chaves de Dijon, estava agora prisioneiro de gente que pretendia defender as mesmas cores que ele, mas que, na realidade, se limitava a saciar as suas vinganças e apetites pessoais. O bando pilhou, roubou e queimou, durante toda a noite, as casas daqueles que acreditava realistas, como o recebedor-geral Vurry, o mestre Arnolet Macheco e o abade de Fénay. Impotente e aflito, Philippe assistiu àqueles acontecimentos extremos antes de ser levado para a sua própria casa, onde Yvon se instalou na companhia dos seus homens para festejar e contar o seu saque.

Foi ali que, quatro dias mais tarde, La Trémoille em pessoa os prendeu, e Philippe com eles.

Ele é o nosso chefe declarou Yvon com um sorriso zombeteiro o senhor conde de Selongey, um dos íntimos do defunto duque Carlos.

Um nobre à cabeça de um bando de assassinos e ladrões disse o senhor de Craon com ar de desprezo. Que outra coisa seria de esperar de um borgonhês?

Sim, borgonhês e com muito orgulho, mas eu estava aqui prisioneiro e não sou chefe deles protestou Philippe.

A sério? Então, sois daqueles, já bastante numerosos, que estão prontos a jurar fidelidade ao Rei meu senhor? Nesse caso...

Philippe nunca hesitava entre a vida e a honra. Além disso, o antigo merceeiro, que acabava de o engajar sob a sua bandeira contra a sua vontade, lançava-lhe um olhar de desafio.

Não. Nunca prestarei juramento de fidelidade ao Rei de França. Eu sou fiel a Madame Maria, única e verdadeira duquesa de Borgonha.

Essa recusa custar-vos-á a cabeça!

Uma hora mais tarde, Philippe era encarcerado nas prisões da casa do Singe, saindo de lá apenas, acorrentado, para ouvir a sua própria condenação à morte.

Uma semana mais tarde, a sentença ainda não tinha sido executada. Segundo o carcereiro que lhe levava as refeições, o atraso devia-se à qualidade do prisioneiro. Estava guardado para o melhor da festa, seria o atractivo do sangrento espectáculo que o senhor de Craon tencionava dar a Dijon. Furioso com as desordens cometidas durante a sua ausência, o francês vingava-se fazendo reinar o terror. Depois do seu regresso, todos os poderes, que não o seu, ficaram suspensos e os partidários do Rei puderam assistir ao castigo daqueles que se lhe tinham oposto. Acossavam-se os menores suspeitos e tanto o carrasco, como os seus ajudas, não tinham mãos a medir. Jehan du Poix, o ”carniceiro” da cidade, só parava de torturar para enforcar e decepar cabeças. Para variar o espectáculo, até foi encontrado, por acaso, um fabricante de moedas falsas, que meteram num caldeirão com azeite e água a ferver...

Decididamente, era impossível atingir os tufos de erva: as correntes que ligavam o prisioneiro à muralha eram demasiado curtas e, com um suspiro, este sentou-se na enxerga. A noite ia cair. A cidade estava estranhamente silenciosa, como se necessitasse de repousar após tanta violência. Não se ouviam gritos, vociferações, toques de sino anunciando a última hora dos condenados! Philippe pensou que não restava ninguém para matar senão ele. Nesse caso, a sua morte não devia estar longe. Seria aquela a sua última noite?

O barulho dos ferrolhos fê-lo virar a cabeça. Entrou um carcereiro transportando uma bilha de água e um pedaço de pão, mas não era o carcereiro do costume. Aquele era um homem de idade, que arrastava os pés e cuja longa barba, de um cinzento-amarelado, lhe chegava ao estômago.

Quem és tu? perguntou Philippe. É a primeira vez que te vejo.

O homem olhou-o com uns olhos sem cor definida e raiados de vermelho.

E depois? resmungou ele. O tipo que estava encarregue do subsolo partiu uma perna ao descer do telhado para onde tinha subido para ver melhor a execução. Então, foram buscar-me, mas estas escadas não são nada boas para as minhas dores. Os degraus são escorregadios e na minha idade...

Quem é que despacharam hoje? perguntou Selongey, pouco desejoso de ouvir a lista de recriminações do velhote.

O Chrétiennot Yvon. Foi preciso levá-lo para o cadafalso porque a tortura lhe desfez as pernas, mas foi um belo trabalho. Mestre Jehan du Poix despachou-o com um único golpe de machado e depois cortou-o em quatro bocados para serem pendurados nas portas da cidade. A cabeça está em Saint-Nicolas, a perna direita na porta de Ouche, a perna esquerda...

Não me interessa saber mais cortou Philippe, desgostoso e inquieto pela primeira vez, pensando que acabavam, talvez, de lhe descrever a sua própria sorte.

A morte não significa nada para um guerreiro, mas ir para o cadafalso meio morto e ser depois cortado em pedaços como carne de talho revoltava-o e deixava-o com pele-de-galinha. Queria poder olhar o carrasco nos olhos e dominar, do alto da sua estatura, a multidão que apareceria para ver o espectáculo.