- Convosco viva? Tendes a certeza de que o sereis ainda por muito tempo?

Ah!... O Rei está a pensar... mandar matar-me?

Vós tramastes a minha morte, Madame!

Nunca! Juro pela minha alma que nunca vos desejei, sequer, a morte. Seria preciso que fosse louca!

Ou demasiado hábil! Vós não nascestes em Florença, Madame, mas tornastes-vos florentina e parece que a intriga não tem segredo para vós. Negais ter escrito, o Verão passado, uma carta que tereis confiado ao núncio do Papa em Avinhão?

Ao cardeal della Rovere? Sem dúvida, Sire e não tenho razão nenhuma para o negar.

A quem se destinava essa carta?

A uma amiga querida, que me permitiu sair de Roma viva, chegar a Florença e, de certa maneira, salvar a vida a monsenhor Lourenço, entregando-lhe a espada de que tinha grande necessidade: a madonna Catarina Sforza, condessa Riario...

Que tínheis de tão urgente para lhe transmitir?

O meu reconhecimento tardio. Aliás, foi a pedido do cardeal que escrevi essa carta.

Muito verosímil disse o Rei, encolhendo os ombros. Por que vos teria della Rovere pedido isso?

É muito simples. Ele tem pela prima uma profunda afeição e parece que esta sofreu muito por causa da ajuda que me prestou. O cardeal desejava que, como prova da minha profunda afeição por donna Catarina, lhe prometesse intervir junto do Rei para que ele fizesse cessar a guerra entre Roma e Florença...

E de uma maneira muito simples: assassinando o ”velho diabo!” porque é assim que a vossa pena me trata o que privará Florença de uma ajuda preciosa em ouro e canhões...

Eu nunca escrevi nada de semelhante! gritou Fiora fora de si. E por que razão teria eu imaginado esse horror?

Na esperança de que o Papa vos desse mais do que o que o pobre Beltrami vos fez perder! Aqui tendes!

De uma das suas grandes mangas, ele tirou um grande papel desdobrado que devia ter viajado muito, porque os vincos estavam sujos e o selo de cera quebrado. O soberano entregou-o a Fiora:

Esta carta é vossa? É a vossa letra, não é? E também é o vosso selo: cera verde com essas três pervincas que escolhestes como emblema pessoal?

A carta, com efeito, parecia-se, até ao mais ínfimo pormenor, com a que entregara a Giuliano della Rovere. Era, de facto, a sua letra, o seu pequeno selo verde, mas o texto estava longe de ser o mesmo e Fiora, ao lê-lo, sentiu-se empalidecer, porque era a sua própria perda que tinha nas mãos. A jovem leu e releu várias vezes as terríveis frases para se convencer de que os seus olhos não estavam a traí-la e que não estava a enlouquecer:

”... e posso assegurar a Vossa Santidade e a Vossa Excelência a minha dedicação total, com a qual podeis contar absolutamente. Dentro de alguns meses porque preciso de falar com alguns elementos rebeldes à ocupação francesa das nossas terras da Borgonha farei com que o velho diabo, que merece as chamas do inferno, deixe de prejudicar a alta reputação do Mui Santo Padre. Então, a França, nas mãos de uma criança, deixará de importunar os príncipes de quem esse Rei miserável não passa de uma grotesca cópia...

Seguia-se, evidentemente, um pedido de recompensa por um tão grande serviço. Fiora ergueu para o Rei um olhar espantado mas límpido, e entregou-lhe a carta com uma mão que não tremia.

O Rei crê-me capaz de escrever uma tal infâmia? Eu, que odeio o Papa e o seu séquito, com excepção de donna Catarina?

Vós sois mulher, e uma mulher muito bela. As mulheres da vossa espécie são capazes de tudo para obter a fortuna que lhes permita cuidar dessa beleza entretanto tão ilusória e assegurar-lhe uma moldura digna.

Eu sou rica, não preciso das benesses do Papa. Monsenhor Lourenço devolveu-me a quase totalidade da minha fortuna. E ia pactuar com aqueles que querem a sua perda?

A guerra entre o Papa e Florença está longe do fim. Escaramuça-se muito, sem dúvida, mas a cidade da flor-de-lis vermelha perde forças, ao passo que Roma as adquire. Aliás, a balança não estava equilibrada à partida e eu receio muito...

Então exclamou Fiora, levada por uma cólera brutal que esperais para os ajudar? Enviai tropas, enviai mais ouro ainda, mas não deixeis perecer Florença!

Um leve sorriso esticou os lábios espessos de Luís XI, ao mesmo tempo que as suas mãos aplaudiam vigorosamente:

Bravo! Que comediante me saístes, donna Fiora! Na verdade, quase me convenceis. É tentador.

Aquele desdém desarmou Fiora, mais do que o teria feito uma cólera violenta. A jovem deixou-se cair de joelhos:

Então matai-me, Sire!Matai-me agora mesmo... mas não me insulteis! Pelo meu filho vos juro que essa carta não é minha!

Esqueceis que já me escrevestes? A comparação é fácil...

É uma falsificação, não? O Papa e a corja que o rodeia são capazes de tudo e os copistas não faltam... Com... com que palavras, em que língua posso jurar-vos que nunca escrevi essa... esse lixo?

Subitamente, veio-lhe uma ideia surgida das profundezas da sua memória:

Sire! Estava uma pessoa junto de mim quando me pediram que escrevesse essa carta...

Quem?

Dame Léonarde, que me criou, sem dúvida, mas que não vejo há várias semanas e cujo paradeiro desconheço. Confesso, tive bastante dificuldade para redigir essa epístola, não por causa dos sentimentos de amizade e reconhecimento que menciono nela, mas porque sabia que incitar-vos a pôr fim à guerra estava para além dos meus poderes. Como me teríeis recebido se eu tentasse intervir na vossa política?

Muito mal. Ter-vos-ia dito que vos metêsseis no que vos diz respeito... Dame Léonarde, dizeis vós?

Sim, Sire!

O Rei bateu as palmas, o que acordou os cães e fez aparecer o criado que introduzira Fiora. Fazendo-o aproximar-se com um gesto imperioso, o soberano murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. O homem fez sinal de que compreendera e saiu tão depressa como tinha entrado. O Rei parecia ter-se acalmado um pouco, mas mordia o lábio inferior enquanto olhava para a jovem sempre ajoelhada entre um épagneul louro e uma cadela galga branca, que formavam com ela uma figura heráldica de uma beleza surpreendente:

Em todo o caso disse ele ao cabo de um instante já vos aconteceu enviar-me, pelo menos, uma carta mentirosa. Lembrais-vos da que escrevestes antes de partir para Paris? Que me enforquem se não é um chorrilho de mentiras!

Fiora baixou a cabeça sem responder, lembrando-se das palavras de Olivier lê Daim. Se o barbeiro sabia que ela dera à luz uma rapariga, também o Rei sabia.

Confesso, Sire. Menti.

Ah! disse ele com ar de triunfo. Admitis? Então, dizei-me onde estivestes durante esse longo Inverno!

Fiora levantou a cabeça: não ia renegar as suas entranhas, mesmo que isso lhe custasse a vida.

Primeiro em Paris, e nisso não menti. Depois, em Suresnes, numa pequena casa pertencente ao meu velho amigo Agnolo Nardi, o irmão de leite do meu pai... Dei lá à luz uma filha, que entreguei a Agnolo e à sua mulher.

Ah! Finalmente! exclamou o Rei, que saltou da sua cadeira como se impulsionado por uma mola e se pôs a andar de um lado para o outro diante da chaminé. Uma filha! E de quem é essa criança? Não vos deis ao cuidado de mo dizer, fá-lo-ei por vós: é do vosso marido, Philippe de Selongey que, a despeito do que me dizíeis, foi ter convosco secretamente. E é nisso que essa maldita carta não mente! Tínheis razão quando faláveis em ”elementos rebeldes”, por outras palavras no vosso marido, mas, evidentemente, era difícil anunciar-me que estáveis grávida, quando eu não sabia onde se encontrava esse demónio do Selongey. Foi por isso que vos fostes esconder... Como vedes, sei tudo! Atordoada, Fiora deixou-se cair sentada nos calcanhares, com desprezo por todo o protocolo:

Que estupidez é essa? exclamou ela com mais sinceridade do que cortesia. Eu ter-me-ia dado ao trabalho de esconder o nascimento de uma filha do meu marido? De uma filha a quem dei o nome de Lorenza Maria?

Lorenza?

É claro. Os que me são próximos poderão dizer-vo-lo: não só essa criança não é fruto da minha união com um rebelde, como é desse rebelde que eu quero ardentemente escondê-la... porque é fruto dos meus amores com Lourenço de Médicis. Escondi-vos que fui amante dele?

De facto não, mas...

A esta hora, o meu marido não ignora nada das minhas relações com Lourenço e, como o perdi para sempre, não tenho razões para me privar do amor da minha filha. É minha intenção reavê-la.

Portanto, é verdade que encontrastes o conde de Selongey? Onde? Quando?

Mais ou menos há três semanas, em Nancy, no priorado de Notre-Dame...

Santo Deus! Então, é lá que ele está escondido?

Fiora pôs-se de pé num salto, impulsionada por uma manifestação de orgulho.

Se o disse ao Rei, é porque ele não está escondido! Ele escolheu viver lá para poder, todos os dias, rezar no túmulo de monsenhor Carlos duque de Borgonha e único senhor que ele alguma vez aceitou servir. Um dia, talvez não muito longínquo, pronunciará lá os votos perpétuos.

Lentamente, Luís XI regressou à sua cadeira e ficou meio deitado, meio sentado nela, cobrindo com as duas mãos os dois leões esculpidos nos braços de madeira de carvalho. O soberano parecia mergulhado em profunda meditação. Depois:

Ele quer fazer-se monge, ele? Portanto, já não vos ama? acrescentou ele com uma ironia cruel que feriu a jovem.

Eu podia tê-lo trazido comigo suspirou ela. Mas... à custa de um perjúrio.

Qual?

Ele pediu-me que jurasse... perante Deus, que nunca pertenci a Lourenço. Não pude...

Gelada pela recordação daquele instante cruel, Fiora nem sequer virou a cabeça quando a porta se abriu de novo com um ligeiro ranger, mas logo se ouviu um grito: