Quando Grégoire regressou com os diversos objectos anunciados, Fiora pediu-lhe se aceitaria mandar dizer ao Rei que ela lhe suplicava que a recebesse logo que possível. Mas o carcereiro também não podia fazer aquilo: o Rei não estava em Plessis, estava em Amboise, junto da Rainha, que estava preocupada com a saúde do delfim.

Achais que ele vai ficar lá muito tempo?

Geralmente não, mas quem sabe? Não se sabe se a doença do príncipe é grave! Tende paciência, senhora condessa. Espantar-me-ei muito se, assim que regressar, o Rei não vos mandar chamar...

Paciência! A virtude tão gabada por Demétrios e que Fiora nunca conseguira dominar, sobretudo quando se encontrava numa situação desagradável! Ela gostava que as coisas andassem depressa depois de tomar uma decisão. Os nove meses de gravidez sempre lhe tinham parecido nove séculos. Uma atitude que divertia Léonarde. Desta vez, a paciência era mais uma provação. Que mãe era capaz de suportar por muito tempo a ignorância do local onde se encontrava o seu filho? No entanto, foi preciso esperar. As horas pareciam intermináveis àquela jovem cheia de vida e reduzida à inacção total, já que Grégoire era incapaz de lhe arranjar livros, a única coisa que lhe tornaria o tempo de espera mais agradável. Na verdade, não era a primeira vez que se encontrava cativa, mas nunca sofrera àquele ponto, porque então as suas angústias diziam respeito a si própria, não aos seus. Onde estariam Léonarde, Khatoun e o pequeno Philippe? O Rei sabia que, separando-a deles sem lhe dizer onde estavam, infligia-lhe a provação mais penosa, o que tornava inúteis as sevícias corporais e explicava, em parte, pelo menos, a cela decente, a boa alimentação e até a roupa que ela deixara em la Rabaudière e que encontrara na arca da sua prisão. Uma única consolação: Luís gostava de crianças e respeitava-as o suficiente para não fazer mal ao seu filho. Philippe era, certamente, mais bem tratado do que a sua mãe. Mas como as horas lhe pareceram lentas durante os oito dias que teve de passar na única companhia do seu carcereiro!

Fiora obrigava-se a uma apresentação irrepreensível, a uma toillette minuciosa todas as manhãs, a usar roupa branca e um vestido limpo. A mulher de Grégoire encarregava-se de lavar a roupa e de a passar. Era uma maneira como outra qualquer de manter a dignidade; depois, não queria ser apanhada de surpresa em trajos menores quando, finalmente, a fossem buscar para a conduzirem perante o seu juiz... ou juizes...

Grégoire apareceu, na noite do nono dia, todo esbaforido:

O Rei senhora condessa! O Rei! Está a chegar!...

Fiora já o sabia. A jovem ouvira o rufar dos tambores, as trombetas de prata e todo o barulho produzido por um grande grupo de cavaleiros, sobretudo quando escoltado por cães. E o seu coração bateu com mais força. Enfim, enfim, ia saber de que a acusavam!

No entanto, dois dias, dois dias ainda mais intermináveis do que os outros se passaram sem que ela pudesse saber se tinham intenção de se ocupar dela, ou se iam, simplesmente, abandoná-la no fundo da sua prisão.

Naquela noite, após uma curta toillette e as orações, ela deitou-se com o coração infinitamente pesado, não sabendo que mais pensar. O seu espírito tenso recusava-lhe o sono. Deitada no leito, triturando nervosamente a longa trança negra que lhe deslizava pelo peito, ouvia o bater das horas no pequeno convento que, no primeiro pátio, estava encostado às paredes do palácio propriamente dito. Como todos os prisioneiros, a jovem vivia segundo o que os seus ouvidos lhe diziam... Subitamente, sobressaltou-se e sentou-se bruscamente: estavam a abrir a porta, quando devia ser quase meia-noite.

Com efeito, Grégoire apareceu armado com uma lanterna e antes que ele tivesse podido empurrar o batente, Fiora pôde ver que, no exterior, estavam, pelo menos, dois alabardeiros iluminados por archotes...

Depressa depressa! exclamou Grégoire. Vesti qualquer coisa, Madame, o Rei quer ver-vos!

Fiora, saltando da cama, viu-se perante a figura sobressaltada do carcereiro, a lanterna que ele segurava iluminando os dois rostos.

A esta hora? perguntou ela.

Sim. Graças a Deus, ainda não dormíeis! Suplico-vos, apressai-vos!

Fiora enfiou um vestido à pressa, calçou-se e, renunciando a pentear-se, envolveu a cabeça num véu. Tudo aquilo não lhe exigiu mais de dois minutos e a jovem dirigiu-se para a porta onde, de facto, a esperava um piquete de soldados. Dois marcharam na sua frente, dois seguiram-na e, daquele modo, desceu os dois andares que separavam a prisão do nível do solo antes de desembocar no pátio de honra, vazio e silencioso àquela hora tardia. Só se ouvia o passo cadenciado das sentinelas de guarda sobre as muralhas e os sons dos campos próximos. A noite estava linda, clara, cheia de estrelas e Fiora, após a sua reclusão, respirou os seus odores frescos com um prazer inesperado. Como cheirava bem a tília e a madressilva!

Com excepção de uma luz brilhando nos aposentos do Rei e dois archotes acesos à entrada da pequena torre octogonal que encerrava a escada, Plessis estava mergulhado na escuridão. Um cão ladrou, algures para os lados do Loire e no interior do castelo um outro cão, depois dois, e depois três, responderam-lhe.

Alguns instantes mais tarde, a porta do quarto real, guardada por dois escoceses, abriu-se pela mão de um criado, que convidou Fiora a entrar e se eclipsou logo a seguir, fechando atrás de si o batente de carvalho trabalhado.

Agasalhado, apesar da temperatura doce, com um casaco preto forrado de pele de marta e com um capuz de lã enfiado até às espessas sobrancelhas, Luís XI estava sentado na sua grande cadeira guarnecida com almofadas, ao canto da monumental chaminé onde ardia um fogo brilhante. Juntamente com o candelabro de ferro forjado de cinco braços pousado perto do Rei, aquelas chamas iluminavam a vasta divisão que, assim mergulhada em três quartos da sua dimensão nas trevas, pareceu imensa à prisioneira.

O Rei não olhou para ela. O soberano olhava para o fogo e o seu terrível perfil de nariz pontiagudo queixo pesado obstinado e boca desdenhosa recortava-se no fundo flamejante que lhe fazia sobressair as maçãs ossudas do rosto e as pálpebras pesadas, enrugadas como as das tartarugas, por entre as quais se filtrava o brilho sombrio do olhar. Estendia para o fogo as mãos nervosas, miraculosamente poupadas pela idade e, de tempos a tempos, esfregava-as uma na outra.

Como ele continuasse a não virar o olhar para ela, Fiora deu alguns passos abafados pela espessura dos tapetes, nos quais estavam deitados os cães. Todos eles tinham virado as cabeças; farejando o ar modificado por aquela presença estranha, esperando, talvez, uma ordem que não surgiu, ao mesmo tempo que Fiora esperava uma palavra que, também ela, não surgiu.

Sabendo como a sua cólera podia ser terrível, ela não ousou romper aquele silêncio sufocante. A jovem saudou profundamente e esperou, com um joelho em terra, que lhe fosse permitido levantar-se. O Rei continuava calado. Então, meio estrangulada pela angústia, ela murmurou, a despeito da tempestade que lhe podia cair sobre a cabeça:

Sire... Ignoro por que razão o Rei desvia de mim o olhar e que falta terei cometido para incorrer na sua cólera, mas suplico-lhe humildemente que me diga... pelo menos, o que é feito do meu filho?

De novo o silêncio assustador. A jovem sentiu um nó na garganta e as lágrimas, que se esforçou por reter, subirem-lhe aos olhos. Então, bruscamente, Luís XI virou a cabeça e ela recebeu em pleno rosto o olhar agudo, cintilante, de uma cólera que apenas a vontade reprimia:

O vosso filho? grunhiu o Rei com um desprezo que esbofeteou a jovem. Já é tempo de vos preocupardes com ele! Desde que ele nasceu, há quase dois anos, quantos dias passastes junto dele?

Muito poucos, mas o Rei sabe...

Absolutamente nada! E levantai-vos! Pareceis-vos demasiado com a condenada que ainda não sois!

E devo sê-lo? Em que é que ofendi o Rei?

Ele desviou de novo o olhar daquela delgada silhueta negra, demasiado graciosa, talvez, e daqueles grandes olhos cinzentos, demasiado brilhantes para não estarem molhados.

Ofender? A palavra é fraca, Madame! Vós insultastes-me, traístes-me tanto quanto o pode ser um soberano, tramastes a minha morte!

Eu?

O grito fora tão espontâneo que o Rei estremeceu. Um tique nervoso repuxou-lhe a boca e agitou-lhe as narinas sensíveis, de homem nervoso.

Sim, vós! Vós, que eu acolhi quando Florença vos rejeitava, vós, que eu recebi nos meus domínios, quis na minha vizinhança e a quem, Deus me perdoe, concedi alguma amizade! Como se um homem são de espírito pudesse conceder uma coisa parecida com amizade a uma mulher!

O soberano escarrara a palavra com tanto desprezo que Fiora que sentiu que um princípio de cólera lhe secava as lágrimas.

Sire! O ventre que transportou o Rei não era o de uma mulher?

O olhar que ele virou para ela era pesado de rancor e talvez, também, de desgosto:

A Senhora Rainha, minha mãe, era uma santa e nobre mulher que não conheceu a felicidade atrás da qual vós todas correis por uma simples razão: era feia. Mas a minha avó, Ysabeau la Bavaroise, não era outra coisa senão o que vós chamais, na vossa língua italiana unagrandputana e, não contente com isso, vendeu, no seu tempo, a França à Inglaterra! E eu, que não queria mulheres no meu séquito, agi como um louco, permitindo-vos que entrásseis nele. Foi por isso que vos tirei la Rabaudière...

Mas o meu filho, o meu filho?

Será educado como convém ao nome que tem. Confiá-lo-ei ao grande bastardo Antoine, que saberá fazer dele um homem...

Respeito profundamente monsenhor Antoine, mas nego-lhe o direito, comigo viva, de educar o meu filho!