Apesar da sua fraqueza, Fiora esbugalhou uns olhos surpreendidos e dolorosos:
Que quereis dizer?
É evidente, parece-me? Eu recebi, há uns dias, uma amiga com todo o prazer. Ora, essa amiga manifesta, agora, a vontade de se deixar morrer sob o meu tecto e eu não posso aceitar. O orgulho que sinto na minha hospitalidade não vai ao ponto de permitir que decidam suicidar-se em minha casa. Existem muitas maneiras de morrer neste mundo, mas nenhuma delas em casa de Georges Marqueiz. Portanto, se quereis mesmo sacrificar-vos por causa de um homem obtuso, ide executar essa decisão para outro lado qualquer!
Quereis que eu me vá embora? Oh, Nicole!...
Escutai, Fiora, a escolha é simples: ou aceitais alimentar-vos e dou-vos o tempo necessário para que recupereis as vossas forças, ou nós damos-vos de comer à força, estes rapazes e eu, para que possais aguentar algumas léguas de viagem.
Como podeis ser tão cruel?
Cruel, eu? Mas, olhai para vós!
Nicole foi buscar um espelho, que colocou em frente do nariz de Fiora:
Olhai para o vosso rosto após quatro dias só a água! Qual é o homem que merece essa destruição voluntária? Estais a fazer um farrapo da mulher mais bonita que eu conheço. E se pensásseis um pouco no vosso filho? Ele já não tem pai e quereis agora tirar-lhe a mãe?
Um pai ser-lhe-ia bem mais útil do que eu!
Livrai-vos de pensar assim! Pela minha parte, acho que já chorastes de mais messire de Selongey. Se ele quer desculpar-se com a sua dignidade e continuar a chorar um príncipe cuja morte muitos consideram uma libertação, é com ele! Mas vós, vós sois jovem... e bela apesar de estardes a agir como uma imbecil e tendes a vida toda diante de vós. E se escutásseis aquilo que Battista tem para vos dizer?
Vós falastes com ele, Battista? Viste-lo?
Vi-o. Falei-lhe... mas não vos direi nada enquanto não tiverdes comido qualquer coisa consistente! declarou o pajem, firmemente decidido a seguir o caminho aberto por dame Nicole.
Quereis mesmo obrigar-me a viver?
Exactamente! E agora, comei! Falamos depois. Amparada por um Florent transbordando de piedade e que, não sabendo que fazer, preferira guardar silêncio, Fiora comeu algumas colheres de uma açorda açucarada com mel à qual Nicole juntara dois ovos batidos, bebeu alguns goles de um vinho de Nuits singularmente caloroso, rilhou uns damascos de conserva e deixou-se cair nas almofadas, sem forças. As suas faces tinham, agora, um pouco de cor:
Obedeci-vos suspirou ela. Falai agora, Battista. Fazendo os possíveis para suprimir o que não podia ser ouvido, o jovem entregou a mensagem de Philippe e concluiu:
Deveis obedecer-lhe, donna Fiora, mas, sobretudo, deveis pensar em vós e no vosso filho! Deus é testemunha de que tenho pelo vosso marido um respeito e uma admiração absolutos, mas ele é um homem de outra era e vós sois jovem. Deveis viver! Podem, ainda, florir tantos dias sob os vossos passos!
Fiora guardou silêncio por um momento, enquanto ouvia dentro de si o eco das sábias palavras do seu antigo pajem. Depois:
Que conselho me dais, nesse caso?
Primeiro, deveis regressar a casa. Por mais generosa que seja a hospitalidade de dame Nicole, nunca recuperareis em sua casa! Estais demasiado... perto dele. Parti! Quando estiverdes longe, tornareis a ser vós própria e isso é o que todos nós, que estamos convosco nesta aflição, desejamos.
Pela primeira vez, um sorriso débil distendeu os lábios brancos:
Já devíeis ir longe, Battista! Não foi para tratardes de mim que vos exortei a abandonar aquele priorado.
Eu sei, mas só vos abandonarei quando vos vir a caminho da vossa casa, em Touraine.
Com o olhar, a jovem abraçou os três rostos ansiosos que rodeavam o seu leito e procurou a mão de dame Nicole para a atrair a si:
Vós sois uns amigos terríveis! suspirou ela. Nunca agradecerei suficientemente aos céus por vos ter encontrado...
Dois dias mais tarde, depois de ter agradecido calorosamente aos Marqueiz a sua hospitalidade e amizade, Fiora e os seus dois amigos deixavam Nancy. Como os rapazes se tinham firmemente oposto a que a sua companheira efectuasse uma última visita à colegial de Saint-Georges, contornaram o mercado para, pela rue du Four Sacré, passarem pelo palácio ducal e pela comprida rue Neuve que terminava na porta de la Craffe. Corajosamente, Fiora impôs a si própria não virar a cabeça quando transpuseram o Fosso dos Cavalos, para o qual davam as paredes do priorado de Notre-Dame. Tinha de tentar esquecer Philippe apesar de saber que era impossível, mas achava que, com o tempo, a imagem tão querida e tão cruel consentiria, talvez, em esfumar-se.
Informados por Georges Marqueiz, que viajara muito, os três companheiros deveriam fazer caminho comum até Joinville, onde os seus destinos divergiriam. Battista, reequipado e provido de uma bolsa que deveria ser suficiente para o fazer chegar a Roma, viraria a sul e, por Chaumont, Langres, Dijon, Lyon e Vale do Ródano iria embarcar a Marselha. Fiora e Florent virariam para oeste e, por Troyes, Sens, Montargis e Orleães reencontrariam o grande caminho do Loire, que ambos conheciam tão bem.
Para não fatigar demasiado Fiora, mal refeita ainda do seu jejum voluntário, levaram dois dias a percorrer as vinte e quatro léguas que separavam a capital da Lorena das colinas de Joinville. As grandes chuvas tinham cessado e o tempo, se bem que ainda não radioso, estava quase agradável.
Ides encontrar o azul do mar e o Sol de Roma suspirou Fiora quando, aos pés do castelo dos príncipes de Vaudémont, se despediram, esperando que não fosse para sempre...
Há tanto tempo que estou fora disse o jovem. É natural que não os consiga suportar.
Nesse caso, lembrai-vos que tendes amigos em França e se, depois de casardes com Antónia, quiserdes viver num clima mais fresco... ou se precisardes de escapar aos esbirros do Papa, não hesiteis em ir ter connosco.
Podeis estar certa de que não me esqueço. Deixai-me abraçar-vos por Antónia e por mim! Deus vos abençoe, donna Fiora e vos conceda, por fim, a felicidade que mereceis!
Teria de se dar a muito trabalho. Creio que não fui feita para ser feliz. Mas tentarei...
De pé no cruzamento e segurando no seu cavalo pela brida, ela ficou a ver o jovem partir a galope ao longo do Marne, cuja água límpida reflectia as nuvens esbranquiçadas do céu. A jovem pensava que os desígnios do Senhor eram mesmo insondáveis, porque lhe tinham permitido devolver a Battista o gosto pela vida, ao mesmo tempo que destruíam a sua irremediavelmente.
Então? perguntou Florent, que se mantivera a alguma distância por discrição. Que fazemos agora?
Mas... regressamos a casa, Florent.
Isso sei eu, mas depois?
Depois? Não sei, a sério que não sei... Tenho de reflectir e, sobretudo, de repousar. Nunca me senti tão cansada...
É natural. Vamos por pequenas etapas, já que não temos pressa...
Fiora era sincera quando dizia que ignorava como iria conduzir doravante a sua vida. À sua dor misturava-se, agora, alguma cólera contra aquele que a abandonava às suas responsabilidades com uma única recomendação: fazer do seu filho um homem digno dos seus antepassados, o que, no seu espírito, devia excluir o bom Francesco Beltrami, que nunca tivera qualquer título de nobreza. Mas, reflectindo bem, Fiora ignorava o passado dos Selongey e apesar de amar apaixonadamente o único espécime dessa família que jamais conhecera, reconhecia que ele não era um modelo de caridade cristã, nem de simples humanidade para além dos deveres de cavaleiro, que respeitava à letra. Quanto aos seus ancestrais, os verdadeiros, os Brévailles, o exemplo do velho Pierre não era das mais encorajantes.
Por outro lado, não estaria nos planos de Philippe, certamente, que o seu filho entrasse para o serviço do Rei de França. Que fazer, então? Que decidir? Que escolher?
Ao longo do caminho que a levaria a casa através do brilho caloroso da Primavera, Fiora começou, pouco a pouco, a esboçar um projecto para o futuro. Pouco importava o que Philippe pensava do seu sogro florentino, pouco importava o desprezo mal disfarçado que ele sentia por uma nobreza que considerava o negócio como uma das belas-artes! A jovem sentia renascer dentro dela a florentina e pensou que seria agradável, se Lourenço de Médicis ganhasse a sua guerra contra o Papa, regressar a Florença com os ”seus” filhos, com Léonarde e com aqueles que a quisessem seguir. A ideia de poder ficar com sua pequena Lorenza enchia-a de alegria. Uma voz secreta dizia-lhe que tirá-la aos bons dos Nardi seria uma crueldade, mas ela mandava-a calar-se, argumentando que, no fim de contas, Agnolo poderia muito bem terminar os seus dias na sua cidade natal e que, muito certamente, Agnelle também gostaria. Iria ser preciso estudar o problema. De qualquer maneira, a guerra, de que ela não sabia nada, estaria, provavelmente, longe de estar acabada.
Assim meditava Fiora enquanto as léguas deslizavam por baixo dos cascos do seu cavalo, mas à medida que se aproximava do Loire a pressa era cada vez maior de ver a sua pequena mansão cujo jardim devia estar todo florido, perfumado, de se enroscar efeminadamente naquele paraíso pessoal e, sobretudo, de não se mexer dali durante longos, longos meses...
Assim, quando, transposta a porta oriental de Tours, saiu do ”Pavê” que ia dar ao castelo real de Plessis-lès-Tours para entrar no caminho que ia dar a sua casa, Fiora, como se respondesse a um grito de à carga, lançou um grito que fez voar as gralhas que estavam pousadas numa seara e lançou o seu cavalo a
1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.
galope. Por cima do verde das árvores viu os telhados de ardósia e a guarita que cobria o pequeno torreão da escadaria. Sem abrandar, entrou pela alameda ladeada de carvalhos cheios de musgo e foi somente à vista da ”sua” porta que deteve o cavalo, que escoiceou o ar com os anteriores.
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