Isso não tem lógica disse Fiora friamente. Se tivesses conseguido, ter-te-ias batido por aquele alemão. Seria a ele que terias entregado a Borgonha. O grande bastardo não suportou ver a águia negra a esmagar a flor-de-lis. Os teus grandes príncipes, até aquele que dorme aqui, eram Valois, assim como o Rei Luís, e até a mãe da tua duquesa Maria era francesa. Não conseguirás escrever a História à tua maneira, Philippe de Selongey. Agora tens de pensar no teu filho, que está a começar a vida! Como Philippe guardasse silêncio, Fiora, sentindo que tocara numa corda sensível, quis forçar a vantagem que conseguira:

Achas que o próprio irmão do Temerário e seu mais fiel capitão, que homens como Philippe de Crèvecoeur, como os Croy e tantos outros se aliavam ao Rei Luís se não vissem nele um soberano digno de ser servido? Eu não te peço tanto, mas regressa para junto de nós, Philippe! Eu não te obrigarei a viver em Touraine. Iremos para Selongey e viveremos lá os dias que nos restam!

Tinham dado a volta à colegial e tinham regressado ao túmulo, junto do qual não havia ninguém. Maquinalmente, Philippe reacendeu um círio que se tinha apagado...

Eu sinto-me bem perto dele, Fiora! Quando saí de Bruges, agoniado com aquele casal preocupado com a vida familiar e que só pensava na caça e em festas, quis vir rezar a este túmulo para pedir a monsenhor Carlos que me indicasse o caminho. Tinha sede de grandeza, de sacrifício. E vi Battista com o hábito de noviço. Compreendi que era essa a resposta que esperava. Fiquei...

Tu não me amas! Nunca me amaste! exclamou Fiora com as lágrimas a correrem-lhe de novo pelas faces. Se me amasses...

Então, pela primeira vez após longos minutos, ele olhou para ela e Fiora, meio estrangulada de emoção, compreendeu que se enganava, que o amor não morrera. Lentamente, Philippe estendeu sobre a laje a sua grande mão nervosa:

Sobre o túmulo daquele que aqui dorme e pela fidelidade que lhe tinha te juro que nunca amei ninguém senão tu!

Então vem comigo, suplico-te! Regressa comigo! Eu ia para Selongey. Vamos juntos e depois mandamos buscar o nosso filho! Eu não volto a la Rabaudière, mas vem comigo, suplico-te! Não nos condenes a ambos! Ainda podemos ser felizes...

Achas?

Tenho a certeza, meu amor...

Seguiu-se, entre os dois, um daqueles silêncios mais eloquentes do que quaisquer palavras, porque saram as feridas e fazem nascer a esperança. Fiora não ousava mexer-se, esperando um gesto, um sorriso do seu marido.

Então, é a tua vez de jurar ordenou Philippe. Vais jurar sobre este mesmo túmulo e perante Deus que nunca foste amante de Lourenço de Médicis!

Aquelas palavras atingiram de tal maneira a jovem que ela vacilou, ao mesmo tempo que o sangue lhe fugia do coração. A luz que acabava de se acender, apagara-se. A esperança desvanecia-se... A tentação de um juramento falso nem sequer lhe passou pela cabeça: ela sabia que o segredo do nascimento de Lorenza podia escapar-lhe e que até os rumores vindos da longínqua Florença podiam chegar, um dia, aos ouvidos do marido.

Então? impacientou-se Philippe.

Ela não respondeu e desviou o olhar para não ver aqueles olhos que, agora, chamejavam ao mesmo tempo de cólera e desgosto.

Eu... eu não posso! Mas...

Não quero nenhum ”mas”! Adeus, Fiora!

Não!

Foi um grito dilacerante, mas Philippe não quis ouvi-lo. Com um gesto que atirava a jovem para as trevas do desespero, ele meteu a correr pela porta da colegial, que se fechou tão pesadamente como uma pedra tumular.

Só, Fiora deixou-se cair por terra, primeiro de joelhos e depois ao comprido, uma imagem desesperada do seu coração crucificado, como se quisesse integrar-se naquela pedra fria, naquele túmulo sobre o qual acabava de se destruir a sua vida.

Foi ali que, um pouco depois, Florent e Battista a encontraram...

CAPÍTULO XI

A CASA VAZIA

Fiora nunca imaginara que fosse possível tanto sofrimento. Inerte no seu leito enquanto as lágrimas não paravam de correr, ensopando-lhe os cabelos e a almofada, incapaz de dormir ou de se alimentar, apenas um pensamento lhe inflamava a cabeça e a destruía lentamente.- Philippe rejeitava-a para sempre. Preferia um convento miserável e o túmulo junto do qual tencionava viver o resto dos seus dias. O pecado demasiado doce cometido com Lourenço impunha à culpada uma penitência impiedosa, afastando para sempre o homem que amava.

Não imaginando por um só instante do fundo da sua humilhação que Philippe lutava, talvez, contra os demónios de um ciúme furioso, ela não quis ouvir as consolações dos seus amigos, recusando sair daquele quarto e, sobretudo, daquela cidade onde, pelo menos, ele estava, a dois passos da casa onde ela vivia uma agonia.

Depois de a tirarem da igreja quase inconsciente, Battista e Florent não sabiam que fazer, assim como Nicole Marqueiz, a quem, em poucas palavras, tinham posto ao corrente. Mal Fiora se refugiara no seu quarto, o jovem Colonna precipitara-se para o convento para contar a Selongey o que se passava e tentar comovê-lo, mas chocara com um verdadeiro muro.

Essa mulher está morta para mim lançou Philippe com uma violência que surpreendeu o jovem. Ela fez com que tudo entre nós se tornasse irreparável. Perdoei uma vez, não perdoo segunda.

Ela pensava que estáveis morto e, se bem compreendi, acabava de passar por duras provações...

Ela sabia que eu estava vivo quando se entregou a Campobasso. O facto de pensar que eu estava morto não é desculpa. Se eu aceitasse viver com ela, durante quanto tempo me seria fiel? A sua beleza atrai os homens e ela deixa-se atrair pelo amor deles.

Ela só vos ama a vós.

Talvez porque nunca me teve, verdadeiramente, à sua mercê. Que aconteceria quando sobreviesse a monotonia da vida quotidiana? Como se distrairia? Que homem teria eu de matar... a menos que não a matasse a ela? Não, Colonna, recuso-me a suportar isso! Não quero enlouquecer...

Não enlouqueceis aqui? Vós não fostes feito para a vida monástica... eu também não, aliás, e agora sei que estava enganado.

Vós escolhestes o único refúgio digno de um cavaleiro, mas agora tendes uma razão para viver. Eu vou continuar a minha guarda silenciosa junto do único senhor que jamais aceitei. Se não encontrar a paz, parto e vou, como foi minha intenção, durante algum tempo, procurar a morte combatendo os Turcos.

E... o vosso filho? Resignais-vos a nunca o conhecer? Subitamente, o olhar de Philippe brilhou, mas logo a seguir apagou-se:

Morro de desejo de o conhecer! grunhiu ele. Mas, se o conhecer, se lhe tocar, não terei coragem de me afastar. Teria, então, de o privar da própria mãe. Prefiro não correr esse risco... Ide-vos, Colonna! Ide ao encontro do vosso destino, deixai-me com a minha solidão...

Não me dais uma única palavra para lhe levar? murmurou Battista, magoado.

Dizei-lhe... que lhe confio o meu filho e que conto com ela para fazer dele um homem digno dos seus antepassados. Sei que ela tem um coração nobre e que é corajosa. Não é culpa sua se o seu corpo é fraco. Dizei-lhe, enfim, que rezarei por ela... por eles!

Foi tudo. Um instante depois, Philippe de Selongey transpunha a porta que ia dar ao claustro e desaparecia. Battista, desencorajado, regressou para junto de Fiora, mas não teve coragem de lhe entregar a mensagem austera e desoladora de que era portador. No dia seguinte, por sua vez, Florent, levado por uma cólera furiosa, correu ao priorado, decidido a fazer com que o obstinado ouvisse a voz da razão e a dizer-lhe o que pensava dele. Mas não foi recebido e regressou de mãos vazias. Georges Marqueiz, que tentou a experiência por amizade para com Fiora, também não teve mais sorte. Philippe parecia ter decidido emparedar-se por trás do silêncio.

Na manhã do quarto dia de reclusão de Fiora, dame Nicole, Battista e Florent decidiram de comum acordo que era preciso intervir. A jovem estava decidida a deixar-se morrer de fome.

Recuso-me declarou a mulher do almotacé a vê-la morrer em minha casa. Vinde comigo, os dois, e não vos zangueis se a minha linguagem vos parecer um pouco rude.

Armada com um tabuleiro de comida ligeira e um jarro de vinho, ela subiu as escadas que iam dar ao quarto da desesperada seguida pelos dois rapazes.

A despeito do fogo aceso na chaminé para lutar contra a humidade de um mês de Maio chuvoso, o quarto estava na obscuridade. Dame Nicole fez sinal a Florent para que abrisse as pesadas cortinas. A luz cinzenta e triste que entrou não era muito encorajadora, mas era a luz do dia e iluminou o leito onde Fiora estava estendida, tão inerte como se estivesse morta. Com sulcos profundos provocados pelas lágrimas incessantes, a jovem parecia mais velha e os dois rapazes sentiram apertar-se os seus corações.

Eu era capaz de estrangular aquele carrasco! grunhiu Florent. Quando penso que ela não bebe senão água há mais de quatro dias! É de dar com a cabeça nas paredes!

Matar messire Philippe não resolvia nada. Ela não ficava menos infeliz.

Entretanto, Nicole pousou o tabuleiro em cima do leito e começou a endireitar Fiora, colocando-lhe as almofadas atrás das costas.

Já chorastes o suficiente! decretou ela. Agora ides comer, mesmo que vos tenha de alimentar como a um bebé.

A voz que se ouviu pareceu surgida das profundezas do leito. Era uma voz fraca, mas obstinada:

Deixai-me, Nicole!... Eu não quero comer! Eu... nunca mais quero comer.

A sério? Nesse caso, escutai bem o que vos vou dizer! Vós quereis morrer, não é verdade? Simplesmente, eu recuso-me a ter, um destes dias, o vosso cadáver nos braços. Ide morrer onde quiserdes, mas em minha casa, não!