Sem falsa vergonha, o jovem escondeu o rosto nas mãos. Pelo movimento dos seus ombros, Fiora compreendeu que chorava e aproximou-se lentamente dele. A jovem tinha vontade de o apertar contra si, mas não ousou: ele já não era o mesmo que conhecera e teve receio de o chocar.

Se bem compreendi murmurou ela foi um terrível mal-entendido que vos levou a entrar para aqui? Tínheis muito amor por ela?

Já não sei nada. O que sei é que naquele maldito mês de Janeiro vi morrer o meu príncipe enquanto eu próprio fiquei vivo e... também vos perdi. Foi de mais para mim e a ideia de regressar a Roma horrorizou-me.

Por que não quisestes receber o vosso pai?

Pela mesma razão. Regressar àquela cidade infame... para fazer o quê?

Talvez para vos baterdes ao lado dos vossos disse severamente Fiora, decidida a ir até às últimas consequências. A guerra sempiterna entre os Colonna e os Orsini chegou a uma fase de tal modo perigosa que os últimos conseguiram o apoio total do Papa. Põe-se a vida em perigo ao matar um Orsini, mas não se arrisca grande coisa se se abater um Colonna. O vosso palácio del Vaso foi dado, com desprezo por todo o direito, a um sobrinho de Sisto IV, e eu ouvi dizer que este está decidido a fazer desaparecer o vosso tio, o protonotário, que se permite aborrecê-lo...

Meu Deus! Ignorava tudo isso.

Tê-lo-íeis sabido se tivésseis consentido em ouvir o vosso pai. Amais Deus ao ponto de vos consagrar a Ele neste buraco de ratos? Nunca mais podereis sair daqui se pronunciardes os vossos votos... e sereis obrigado a fazê-lo, um dia. Então, acabar-se-ão as vossas visitas românticas ao túmulo do duque Carlos. De resto, ele vai ficar aqui para sempre?

Sabeis alguma coisa acerca disso? balbuciou Battista, subitamente lívido.

Sei o que se diz nas ruas e albergues de Bruges, de onde venho. A duquesa Maria quer que o duque Renato lhe entregue o corpo do pai para o sepultar no convento de Campmol, perto de Dijon.

Estáveis em Bruges? Viajais muito, donna Fiora!

Mais do que gostaria! Estava em Bruges, de facto, porque, tendo encontrado o grande bastardo Antoine, soube por ele que o meu marido tinha sido visto, no último Natal, no palácio da duquesa. Há meses que corro atrás de Philippe. Procurei-o perto de Avinhão e agora, sem saber o que fazer mais, vou a Selongey na esperança de encontrar lá o rasto dele... Mas deixemos isso! Eu não vim aqui para falar de mim, vim para falar de vós. Compreendestes o que vos disse? Os Colonna precisam de todas as forças e Antónia precisa de vós. Ela ama-vos, não me canso de vo-lo repetir.

Battista ergueu para Fiora um olhar onde brilhava qualquer coisa que devolveu a esperança à jovem, sobretudo quando ele perguntou:

Ela... continua a cantar?

Apenas louvores a Deus. A sua voz é o encanto de Santo Sisto, mas eu acho que ela era capaz de preferir mil vezes trautear para adormecer... os vossos filhos!

O noviço ficou vermelho como uma papoila e desviou o olhar.

Agradeço-vos por vos terdes dado ao cuidado de me vir dizer isso tudo, donna Fiora. E agora, quereis ter a bondade de me deixar? Eu gostava de... rezar, de reflectir um pouco.

É natural. Eu também vou rezar a Deus para que vos ilumine e vos guie pelo melhor caminho. Talvez não nos voltemos a ver, mas... eu gosto muito de vós, Battista Colonna!

Começo a acreditar. Ah, já me esquecia! Onde estais hospedada?

1 De facto, o duque foi sepultado na igreja de Notre-Dame de Bruges, onde continua, junto da filha.


No mesmo sítio. Em casa de George Marqueiz. Penso ficar lá ainda dois ou três dias.

Está bem...

Sem acrescentar mais nada, o jovem foi ajoelhar-se diante do grande crucifixo e, escondendo o rosto nas mãos, mergulhou numa profunda prece. Fiora contemplou-o por um instante, antes de abandonar a sala na ponta dos pés.

Chegada a noite, quando os habitantes da casa Marqueiz iam para a mesa, um criado apareceu com um bilhete para Fiora:

”Estáveis, esta manhã, na primeira missa na colegial, escrevia Battista. Quereis fazer amanhã o mesmo para vos encontrardes comigo no mesmo local? Ficar-vos-ia infinitamente grato...

Nada mais, mas naquela noite Fiora teve as maiores dificuldades para conseguir repousar, de tal modo receava faltar ao encontro marcado pelo seu jovem amigo. Assim, já o dia começava a clarear a leste quando, escoltada por Florent, que se recusava a deixá-la percorrer sozinha as ruas na obscuridade, ela subiu os degraus da igreja de Saint-Georges. O ar estava mais do que fresco, uma chuva fina e persistente gotejava dos telhados e fazia brilhar ligeiramente o pavimento sob a luz amarela de uma lanterna. A jovem teve, mesmo, de esperar que um sacristão mal acordado abrisse o velho batente, enquanto se repetiam, através dos campos vizinhos, os apelos roucos da nova geração de galos, já que todos os seus predecessores tinham conhecido um fim trágico dentro das marmitas borgonhesas.

Ao entrar na igreja, Fiora procurou o túmulo com os olhos. Entre os círios apagados, parecia dormir numa solidão orgulhosa, pela qual velava a lâmpada que nunca se apagava.

Que fazemos agora? sussurrou Florent, impressionado, contra a sua vontade, com a majestade do local.

Vamos assistir à missa disse Fiora, também contra vontade e só saíreis do vosso lugar se vos disser. Compreendido?

Perfeitamente suspirou ele, resignado. Só me mexo se me disserdes...

O som de uma campainha de prata anunciou o padre, que caminhou na direcção do altar mal iluminado com o Santíssimo resguardado sob a estola verde orlada de um galão dourado. Ao mesmo tempo, Fiora e Florent ajoelharam-se nas próprias lajes e o ofício começou.

Após a Elevação, a jovem tomou consciência de uma presença atrás de si. Virando-se ligeiramente, apercebeu Battista, que quase não reconheceu porque o hábito branco desaparecera e com ele a silhueta do noviço. O jovem que ali estava, modestamente vestido com uma túnica usada de pano cinzento apertada na cintura por um cinto de couro, pareceu-lhe, sob aquela pobre roupagem, mais soberbo do que um príncipe de romance porque príncipe já ele era de nascença. A jovem teve de fazer um enorme esforço de vontade para não lhe saltar ao pescoço. Conseguira! Battista abandonava o convento e talvez, dentro de algumas semanas, as portas de Santo Sisto se abrissem diante de uma Antónia corada de alegria. Essa felicidade seria obra sua, de Fiora, uma felicidade que nunca fora capaz de construir para si própria, e foi com o coração pleno de alegria e reconhecimento que recebeu o corpo de Cristo.

Terminada a missa, ela meteu com toda a naturalidade o braço no do jovem para caminhar com ele na direcção da saída.

Dais-me uma grande alegria, Battista... mas vejo que estais mal equipado para uma viagem longa. Espero que permitais que a vossa irmã mais velha trate disso! Depois, faremos uma parte do caminho juntos... pelo menos até à Borgonha!

Aceito, porque, como vedes, estou bastante desprovido, mas creio que não ireis até à Borgonha, donna Fiora.

Por que não?

Dir-vo-lo-ei daqui a pouco. Por agora, vamos, pela última vez, rezar ao túmulo de monsenhor Carlos?

A jovem aceitou com um sorriso e os dois, seguidos de Florent, dirigiram-se para a capela. As velas já estavam acesas, a lâmpada cintilava com um brilho novo e um outro futuro monge estava no lugar exacto onde Fiora vira, na véspera, Battista. Mas aquele parecia muito maior e os ombros que vestiam o tecido branco grosseiro eram largos e vigorosos. Uns cabelos castanhos, curtos, cobriam uma cabeça cujo porte arrogante fez, sem que ela compreendesse porquê, bater mais depressa o seu coração. Em seguida, tudo se precipitou.

Largando-lhe o braço, Battista aproximou-se do seu antigo companheiro e, sem dizer nada, tocou-lhe no ombro. Então, lentamente, o futuro monge virou-se e a mão trémula de Fiora procurou, às apalpadelas, o apoio de um pilar. Aquele monge era Philippe...

Direito, na sua frente, com aquele hábito que o fazia ainda maior e sublinhava o desenho arrogante do seu rosto cujo tom moreno era demasiado profundo para que a sombra do mosteiro o conseguisse empalidecer, ele olhava para ela, mas nos olhos cor de avelã que as chamas das velas tornavam dourados Fiora não viu qualquer sinal da paixão de outrora. E quando, esquecendo o local em que estava, levada pelo amor, ela quis lançar-se nos seus braços, ele estendeu um braço para a manter à distância:

Não Fiora. Não te aproximes de mim.

Ela ficou como que fulminada por um raio, com a impressão de que o seu coração se despedaçava e que a sua vida se desmoronava.

Mas porquê?... porquê? perguntou ela com a voz já entrecortada pelas lágrimas.

Ele encolheu os ombros e meteu calmamente as mãos nas amplas mangas do hábito:

É evidente, parece-me. Nem este local, nem o hábito que eu visto permitem essas efusões.

Nem sempre disseste isso. Já te esqueceste da igreja de Santa Trinita? Preocupaste-te pouco com a santidade do local, na manhã em que me ensinaste o que é um beijo.

Não, não me esqueci, mas não tinha este hábito e a igreja não passava de uma igreja: esta capela está santificada pela presença daquele que aqui repousa...

O Temerário há-de estar sempre entre nós até ao fim dos tempos? murmurou Fiora com amargura. Ele está morto, Philippe, e o culto irrisório que tu te obstinas em prestar-lhe não fará com que ele ressuscite.

Para mim, está mais vivo do que vós todos. Só respiro livremente quando estou junto dele!

Que loucura! Battista, esse, compreendeu que tinha obrigações para com outros...

Virando-se, a jovem procurou o jovem para o chamar como testemunha, mas ele e Florent tinham-se afastado, compreendendo que a sua presença era inoportuna.