Portanto, tenho razão. Uma sombra guardada por outras sombras, ao passo que em Roma...

Roma não passa de uma cloaca! lançou o jovem com uma violência súbita. E agora deixai-me, donna Fiora! Tenho de voltar para os meus deveres...

Mas...

A jovem não teve tempo de dizer mais nada: erguendo o hábito, Battista desatou a correr através da igreja e desapareceu como se o diabo lhe fosse no encalço. Estupefacta com aquela súbita reacção, Fiora ficou a ver aquela fuga desvairada, quase se lançou em sua perseguição, mas renunciou. A jovem ajoelhou-se por sua vez diante da laje e rezou pelo repouso daquele que tanto odiara, mas a cujo encanto, como tantos outros, se submetera, ao ponto de ter aceitado a sua amizade e chorado a sua morte com o coração vazio de qualquer rancor. Via-o tal como lhe aparecera pela última vez, na manhã do último combate: um cavaleiro dourado em cujo elmo assentava um leão erguido nas patas traseiras, desaparecendo lentamente na bruma gelada de Inverno e erguendo o braço num gesto de adeus. O denso nevoeiro não se rasgara para ele senão no momento de entrar nas trevas da morte...

Fiora perguntara muitas vezes a si mesma qual teria sido o futuro do duque Carlos se ele tivesse sobrevivido. Teria ele conseguido encontrar os meios para prosseguir as suas guerras incessantes com uma Borgonha exangue e uma Flandres exasperada?

Certamente que não, mas com os seus últimos recursos teria continuado a bater-se, prosseguindo os seus sonhos de hegemonia até que a morte o apanhasse e, com ele, os seus últimos fiéis cavaleiros. No fundo tudo estava bem assim e a grandeza trágica da sua morte devia satisfazê-lo. Mas não era justo que uma criança ficasse prisioneira daquele drama e da auréola fascinante conferida pelas lendas.

Fiora decidiu que ainda não tinha acabado com Battista. Saindo da igreja, dirigiu-se à praça de la Halle e, detendo um passante, perguntou-lhe o caminho do priorado de Notre-Dame. O homem contentou-se em indicar-lhe uma rua ao fundo da qual, de facto, se via uma capela cujo campanário fora reduzido a metade por uma bala de canhão.

A entrada do convento fazia-se pela abside da igreja e Fiora tocou a uma campainha que pendia de uma velha e rude porta couraçada e cravada de ferro como a entrada de uma prisão e com um postigo gradeado a meio. À figura gorda que apareceu, a jovem disse que implorava ao padre prior daquela santa casa o favor de uma curta entrevista. O postigo fechou-se e ela teve de esperar longos minutos antes que a porta se entreabrisse para lhe oferecer uma pequena passagem. Do outro lado, o irmão porteiro, tão amplo de corpo como de rosto, fez-lhe sinal para que o seguisse e, sem uma palavra, conduziu-a até uma pequena sala de tecto baixo, húmida e desprovida de qualquer móvel. Apenas um crucifixo de madeira negra indicava que não se encontravam numa cave. Toda a casa cheirava a salitre e a mofo, mas aquela divisão, à qual se ia dar descendo alguns degraus, tinha um aspecto miserável, que apertou o coração da jovem. O encantador Battista, prisioneiro daquele túmulo há mais de dois anos, pareceu-lhe um perfeito disparate! Era preciso ter amado muito o Temerário para se condenar a si próprio àquela lenta destruição!

Ao monge vestido de negro e branco bruscamente surgido sem que ela ouvisse os seus passos, ela expôs o seu pedido: desejava ter uma conversa, durante alguns instantes, com o jovem noviço que, no mundo exterior se chamara Battista Colonna:

Eu venho de Roma disse ela com aprumo e trago para ele uma mensagem da família.

A mentira viera-lhe aos lábios muito naturalmente, pela simples razão de que estava pronta a empregar todas as armas para tirar aquela criança de um universo sem esperança, para o qual não podia ter sido criada. Aliás, seria uma mentira? Antónia, que lha entregara, era realmente prima de Battista e pelo amor que lhe votava era-lhe ainda mais chegada...

Não me podeis confiar essa mensagem? perguntou o prior, fixando a visitante com uma insistência que esta achou desagradável.

Não se trata de uma carta, antes de uma mensagem verbal que deixaria de ter o seu significado se passasse pela vossa voz, Reverência. Perdoai-me a franqueza.

Mas o religioso não tencionava render-se facilmente.

Uma família pode ser uma coisa muito vasta. Suponho que, na ocorrência, se trata de um único dos seus membros. Dir-me-eis, ao menos, quem é? Compreendeis, minha filha, eu sou o contabilista da alma desse rapaz e não desejo ver perturbada uma paz que ele conseguiu com alguma dificuldade apressou-se ele a acrescentar ao ver as sobrancelhas franzidas da jovem.

Temeis que essa paz seja frágil? Se, porém, é real, profunda, nenhum sinal vindo do mundo dos vivos a poderá ferir. Posso dizer-vos o seguinte: ninguém, entre os Colonna e digo-vos que a família é muito grande ninguém, dizia eu, compreende por que razão uma criança de quinze anos preferiu ficar aqui, longe dos seus...

Nós sabemos isso há muito tempo, Madame. O príncipe Colonna veio aqui em pessoa e Battista recusou-se a vê-lo... Mas suponho que sabeis isso?

Não foi ele que me mandou.

Então, quem foi?

Com vossa licença, Reverência, di-lo-ei a Battista disse Fiora, que começava a perder a paciência. Quero falar-lhe e não lhe servirá de nada esconder-se por trás destas paredes, ou

Ver Fiora e o Papa Sisto IV


fugir, como fez há pouco. Ou, então, é porque já não é aquele que conheci e porque perdeu toda a coragem e, sobretudo, aquela que consiste em olhar a verdade de frente!

A imponente silhueta do prior pareceu desdobrar-se para deixar ver uma sombra branca: o próprio Battista, que devia ter entrado sem que ela se apercebesse e sem fazer mais barulho do que o seu superior.

É verdade que já não sou o mesmo, donna Fiora, mas não aceitarei nunca que me acusem de falta de coragem...

A despeito da profunda tristeza que reinava naquela pequena sala, Fiora reteve um sorriso. Se conservara o hábito são de escutar às portas, o jovem Colonna tinha mudado muito menos do que imaginava e talvez ainda houvesse esperança.

Por que fugistes de mim, há pouco, na igreja? Nós fomos amigos, há pouco tempo...

Devíeis dizer em tempos. Parece-me que foi há muito tempo...

Dois anos, Battista. Dois anos contam pouco na vida humana.

A jovem calou-se, fixando o prior com uma insistência que lhe fez surgir nas faces cavadas duas manchas vermelhas. Compreendendo que ela não diria mais nada na sua presença, ele decidiu, por fim, retirar-se:

Estarei na capela, meu filho murmurou ele. Eu vou lá rezar para que o Senhor afaste de vós as armadilhas do mundo.

Agradeço-vos, meu pai, mas espero ter as forças necessárias, com a ajuda de Deus, para as combater sozinho!

Que coisa tão bonita! observou Fiora, azeda. Não me parece que vos tenha, alguma vez, estendido uma armadilha?

Eu sei, donna Fiora, e peço-vos perdão se vos magoei... mas também nunca vos ouvi mentir.

Mentir, eu? E quando é que vos menti?

Mas... ainda agora. Não dissestes que vínheis de Roma? Vós, em Roma? E para fazer o quê?

Tereis que pedir desculpa novamente, Battista! Eu não venho directamente de Roma, confesso, mas estive lá, aliás involuntariamente, durante alguns meses. Senão, como poderia ter conhecido a vossa prima Antónia?

Um súbito acesso de sangue devolveu por um instante, ao jovem noviço, o bom aspecto de antigamente e os seus olhos negros puseram-se a brilhar, mas foi só por um instante...

Antónia! suspirou ele. Ela ainda se lembra de mim?

Mais do que supondes.

Eis uma afirmação difícil de acreditar. Soube que a iam casar.

As vossas notícias são muito antigas. Antónia usa agora o nome de irmã Serafina no convento de Santo Sisto, onde nos tornámos amigas.

Religiosa? Antónia? Mas isso é extraordinário!

Quase tanto como eu ver-vos aqui com esse burel monástico. Acrescento que, se ela entrou para o convento, não foi por sua própria vontade. O Papa queria forçá-la a casar-se com um dos seus sobrinhos, Leonardo, o menos bem sucedido do bando. Ela preferiu fazer-se freira. Apesar de o seu pai ter tido, para apaziguar a cólera papal, de ceder a maior parte do seu dote. Acrescento que ela não tomou o véu nesse dia... e que depende de vós ela fazê-lo algum dia. Foi a seu pedido que vim aqui.

Afastando-se de Fiora, Battista foi encostar-se à parede de onde pendia o grande crucifixo, como que para se pôr sob a sua protecção. O jovem ficara ainda mais pálido e a jovem sentiu-se invadida por uma piedade infinita.

Vós escrevíeis-lhe! disse ela docemente. Por que parastes?

Deixei de escrever quando soube que ela se ia casar. Eu amava-a... muito e preferi romper com todos os laços entre nós. Parecia-me que seria mais fácil e, realmente, assim aconteceu, com o tempo. Junto de monsenhor Carlos as coisas eram diferentes, com ele tudo era possível, sobretudo os sonhos de cavalaria. Gostava daquela vida, sentia-me quase feliz. E depois aparecestes vós e junto de vós vivi os dias mais doces da minha vida...

Mas ainda lhe escrevíeis, nessa época, porque lhe falastes de mim! disse Fiora com severidade...

É verdade. Deixei de lhe escrever pouco depois da vossa chegada. Já não tenho notícias há algum tempo e pensei que já estava casada. Por que não me disse nada?

Talvez por lhe terdes falado de mim com demasiado entusiasmo. Foi uma grande tolice, meu amigo!

Mas eu pensava cada palavra que escrevia. Vós inflamastes a minha imaginação... e também o meu coração. Um pouquinho.

Antónia achou que foi muito e a vossa asneira foi essa: porque ela ama-vos, ama-vos com toda a sua alma e uma alma como a dela não se recupera nunca mais!