Quase. Eu sou a condessa de Selongey e monsenhor Renato conheceu bem o meu marido. A mim também, aliás, mas não pretendo obrigá-lo a receber-me. Desejo, apenas, ir rezar ao túmulo...

Onde contais ficar?

Não sei. Não havia muitos albergues quando o duque Renato reconquistou a cidade, mas suponho que exista um ou dois?

Sim. Mas, se estivestes aqui por ocasião do cerco, conheceis alguém?

Aquele interrogatório começava a irritar Fiora, já fatigada, da viagem. Ainda por cima porque, enquanto a interrogavam, outras pessoas, que parecia terem percorrido um longo caminho, entravam sem que ninguém lhes perguntasse fosse o que fosse.

Que significam todas essas perguntas? perguntou ela com altivez. Se vos inspiro qualquer dúvida, mandai um daqueles homens que estão além a jogar tranquilamente aos dados ao palácio para perguntar se posso ir à colegial de Saint-Georges! Disse-vos o meu nome e isso já é uma grande concessão.

O problema é que é difícil acreditar em vós. Pareceis um rapaz e dizeis que sois... como dissestes?

A condessa de Selongey Viajo vestida de homem porque é mais cómodo, mas se não acreditais em mim...

A jovem tirou o capuz que lhe tapava a cabeça, deixando cair sobre os ombros uma grande massa de cabelos negros e brilhantes, para a qual o homem olhou com interesse.

Chega-vos? Poucos homens possuem, parece-me, cabelos assim tão longos?

Sim, sim disse o outro, teimoso mas é justamente o assunto que vos traz aqui que é cada vez menos claro! Uma mulher vestida de homem! Onde já se viu?

Em muitos sítios, mas, aparentemente, vós não sois loreno?

Não sou loreno, eu, que nasci em Toul?

Nunca ouvistes falar de Jehanne Ia Pucelle? Domrémy não fica assim tão longe... A essa nunca a viram de saias!

Sim, sim! disse o soldado, que devia gostar muito daquele advérbio mas ela andava na guerra, ela... ao passo que vós podíeis ser uma espia, o que não me espantaria muito!

Nunca mais acabamos com isto! soprou Florent, farto. Fiora não tencionava deixar-se deter por um militar de ideias curtas. Entrando na casa da guarda, a jovem avistou papel e um tinteiro com uma pena em cima de uma mesa. Sentando-se de través num tamborete, escreveu algumas linhas que assinou antes de as entregar ao porteiro:

Fazeis-me o favor disse ela suavemente de levar isto ao palácio que está a dois passos e que eu conheço bem por lá ter vivido? Espero aqui a resposta!

Indeciso, o guarda virava e revirava a folha de papel nos dedos quando um homem já idoso, elegantemente vestido com um traje vermelho-escuro por baixo de uma grande capa atirada negligentemente para cima dos ombros, entrou na casa da guarda:

Sargento Gachet disse ele venho prevenir-vos de que estou à espera de um carregamento de ardósia que encomendei a meias com messire de Gerbevillers, bailio da Lorena, e que espero que o deixeis passar com mais facilidade do que as minhas farinhas da semana passada.

Mas é claro, messire Marqueiz, mas é claro! disse o outro já todo sorrisos e que, não fora a armadura, se teria dobrado em dois. Eu estou, bem o sabeis, inteiramente às vossas ordens...

Mas o recém-chegado já não o ouvia. Olhava para o falso rapaz e, com um grande sorriso no rosto sulcado por pequenas rugas muito finas, estendia os braços num gesto de boas-vindas:

Donna Fiora! Sois mesmo vós, não é verdade?

Sou mesmo eu, messire Marqueiz exclamou ela, respondendo espontaneamente, também com os dois braços, àquele acolhimento caloroso. Sinto-me muito feliz por vos ver...

Ides a nossa casa, não?

Não me atrevo. Já vos estorvei o suficiente, a vós e a dame Nicole.

De facto, fora para casa do almotacé e da sua mulher que a jovem fora transportada após o ferimento recebido por ocasião do duelo entre Philippe de Selongey e Campobasso. A jovem conhecera ali a melhor das hospitalidades e fora naquela casa que, um ano depois, vivera com Philippe aqueles três dias tão profundamente arreigados na sua memória. Enquanto isso, o almotacé abria a sua residência, uma das poucas que tinham ficado de pé, aos despojos do Temerário, cujo cadáver desfigurado e meio devorado pelos lobos fora encontrado nos caniços gelados do lago de Saint-Jean.

Sobretudo, não digais isso a Nicole! disse o almotacé. Naturalmente, levo-vos comigo! Não vos esqueçais do meu carregamento, sargento Gachet!

Certamente, certamente, messire Marqueiz! Será como desejais!

Um instante mais tarde, Fiora subia a rue Neuve pelo braço do seu antigo amigo seguida de Florent, que levava os cavalos pela brida. Talvez a jovem tivesse preferido passar despercebida numa cidade que desempenhara um papel tão grande na sua vida, mas aquele encontro pareceu-lhe mais do que bem-vindo, inesperado, quando soube que o duque Renato estava ausente e que tinha ido a Neufchâteau. A sua carta nunca teria chegado ao seu destinatário e teria, provavelmente, ficado indefinidamente na casa da guarda, a menos que o sargento Gachet, ingenuamente, a expulsasse.

A casa, próxima da igreja de Saint-Epvre que, ao contrário de muitas outras, não sofrera muito com a guerra, ofereceu a Fiora a imagem das suas recordações doces e amargas, sem que

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


ela pudesse dizer se as primeiras eram mais importantes do que as segundas. A jovem convalescera ali de uma ferida no ombro, mas também ali encontrara Léonarde, vinda contra ventos e marés para junto do seu ”cordeiro” Fora ali que vivera o seu radioso encontro com Philippe, mas também, infelizmente, a ruptura, a ruptura que não cessava de censurar a si própria como a maior falta da sua vida.

Dame Nicole acolheu-a com tanta naturalidade como se se tivessem separado há pouco. Aquela grande burguesa, fria e distante, abraçou-a como se a jovem fosse sua própria irmã e Fiora concluiu que era realmente bem-vinda. No entanto, quando a sua anfitriã abriu diante dela a porta do quarto de onde ela tinha saído, numa manhã de Janeiro, envolta num lençol como uma rainha do teatro, ela desatou a soluçar.

Confusa, Nicole Marqueiz passou-lhe um braço em redor dos ombros e quis abraçá-la:

Perdoai-me! murmurou ela. Eu dou-vos outro quarto...

Não... não, peço-vos! Não façais isso! disse Fiora, esforçando-se por reprimir as lágrimas. Isto passa já, é bom para mim recordar assim o passado, mesmo que seja um pouco cruel. De facto, é uma peregrinação ao passado que me traz hoje a Nancy

Não me ides dizer que também vindes em peregrinação ao túmulo do defunto duque Carlos?

Não de todo, mas também um pouco. Lembrais-vos do jovem Battista Colonna, o pajem que me impuseram como guarda?

E que gostava tanto de vós? Lembro-me perfeitamente, tanto mais que ele nunca mais saiu da nossa cidade, tendo entrado para o Priorado de Notre-Dame...

Sabeis se ele pronunciou os votos definitivos?

É difícil saber o que se passa num convento de beneditinos, mas, na ocorrência, não me parece. É verdade que os monges são menos numerosos do que antes da guerra, mas se esse rapaz tivesse recebido a investidura, deixaria de poder sair do priorado, Ora, ele vai rezar todas as manhãs à colegial com dois ou três companheiros, e vela no sentido de que os curiosos que vêm ao túmulo não causem qualquer dano à colegial. Os cónegos, que não gostam muito de fazer esse tipo de guarda, ficaram muito felizes por eles se terem oferecido. Se quiserdes vê-lo, ide a Saint-Georges ouvir a primeira missa. Encontrá-lo-eis de certeza.

No dia seguinte, com a cabeça envolta num véu escuro, Fiora foi à missa da madrugada. Antes de se ajoelhar diante do altar-mor, procurou com os olhos o túmulo ducal e viu-o onde Nicole lhe disse que estaria: uma grande laje gravada e ligeiramente sobrelevada diante da capela de São Sebastião. Alguns

círios, acesos, sem dúvida, pela piedade de antigos soldados, flanqueavam-no como uma guarda brilhante e, sobre o túmulo propriamente dito, ardia uma lâmpada de azeite. Não havia ali ninguém, mas quando, terminada a missa, Fiora se virou de novo naquela direcção, viu uma figura delgada, vestida de burel branco, ajoelhada diante do túmulo e rezando fervorosamente com o rosto entre as mãos. Pousado ao lado do jovem monge estava o frasco de azeite com o qual ele renovara a provisão de azeite da lâmpada.

Fiora aproximou-se sem fazer ruído. Aquele que rezava era maior do que a recordação que tinha do seu antigo pajem, mas Battista devia ter uns dezassete anos e ela não tinha a certeza se seria ele.

Baixando as mãos, ele inclinou-se para beijar a pedra e foi quando ele se endireitou que a jovem lhe pousou uma mão no ombro:

Battista! murmurou ela. Podemos falar por uns instantes?

Ele teve um sobressalto, como se tivesse sido picado por uma vespa e levantou-se tão depressa que prendeu os pés no hábito e quase caiu. Fiora, amparando-o, sentiu o seu coração apertar-se face àquele rosto jovem que ela conhecera tão alegre, tão aberto, também tão belo, mas que dois anos de penitência tinham sulcado, empalidecido, envelhecido. A voz também não era a mesma quando ele exclamou:

Donna Fiora!... Que fazeis aqui?

É a vós, meu amigo, que é preciso fazer essa pergunta. Que vos deu para vos enterrardes vivo aqui, em vez de regressardes a casa, em Roma, onde se encontra toda a vossa família?

Eu decidi dedicar a minha vida ao serviço de monsenhor Carlos e continuo a servi-lo, muito simplesmente.

Ele, onde está, já não precisa de vós.

Que sabeis vós? Aliás, não estou só: olhai para aquele túmulo, ali ao lado! É o de Jean de Rubempré, que foi governador de Nancy ao seu serviço e cujo corpo foi encontrado não muito longe do dele. A piedade do duque Renato, que é um verdadeiro cavaleiro, quis que ele ficasse rodeado pelos seus homens: os outros repousam no cemitério da cidade e alguns até estão no do nosso priorado.