Isto tem de acabar! resmungou ele. Ajudando Fiora a pôr pé em terra, o jovem chamou um palafreneiro, ordenou-lhe que tratasse dos animais e depois, segurando no braço da jovem que não opôs resistência e que parecia entorpecida, conduziu-a até ao quarto, entrou, fê-la sentar-se, foi fechar a porta e regressou para se ajoelhar perante ela, segurando entre as suas as duas mãos que lhe pareceram frias como gelo:
Donna Fiora! pediu ele. Pensava que tínheis confiança em mim.
Como que saindo de um sonho, ela pousou no jovem um olhar que não via:
Eu tenho confiança em vós, Florent disse ela com voz neutra. Por que me perguntais isso?
Porque me parece ter-me tornado para vós, não só um estranho, mas também uma espécie de móvel. Desde que saímos de Beaugency que parece que não me vedes. Fartámo-nos de correr, corremos perdidamente para chegar aqui, sem que vos dignásseis explicar-me as vossas intenções.
E tem mesmo de ser?
Não, se não passo, para vós, de um criado, mas vós sabeis a que ponto vos sou dedicado e recuso-me a deixar-vos sofrer sozinha e em silêncio. Se a sra Léonarde estivesse aqui nunca lamentei tanto que não esteja! também teria direito a esse mutismo? Não, não é verdade? Dir-lhe-íeis tudo... Oh! Eu sei que não a posso substituir, mas dizei-me, ao menos, como posso ajudar-vos, como tornar-vos menos infeliz, porque é evidente que vos sentis muito infeliz!
Fiora acenou com a cabeça e, com um dedo, acariciou levemente a face do jovem:
Que vos poderia dizer, quando eu própria não sei o que hei-de fazer? Levantai-vos, Florent. e ide buscar-me qualquer coisa para eu beber, mas cerveja não, peço-vos. Trazei-me vinho e depois, juntos, tentaremos arranjar um plano, tomar uma decisão...
Não vamos regressar a casa?
Não me parece. Pelo menos para já.
Para onde vamos?
Para a Borgonha. Já é tempo, talvez, de eu ir a Selongey. Passei por lá... oh, só por instantes, quando vim de Florença, há quatro anos.
Nunca mais lá voltastes?
Não. É estranho, não é, ter um nome, um título, e não saber nada, ou quase nada do que eles escondem?
Uma hora mais tarde, estimulados pelo calor de um excelente vinho de Beaune, Fiora e Florent decidiam, de comum acordo, que se impunha uma visita a Selongey.
É o único sítio onde ir afirmou o jovem porque é, creio, o último refúgio possível para o vosso marido.
Os homens do Rei vigiam, sem dúvida, o castelo!
Talvez, mas resta a aldeia e toda a região em redor. Se messire Philippe é amado lá...
Creio que sim. Pelo menos, foi o que me disse Léonarde, que é daquelas bandas...
Confesso-vos que não compreendo por que razão ainda não estamos a caminho! Nem por que pareceis tão desamparada!
É difícil de explicar, Florent, mas tenho a impressão de correr atrás de uma sombra...
A jovem não acrescentou que estava cansada daqueles caminhos, pequenos ou grandes, nos quais hipotecava a esperança e que não iam dar a parte nenhuma, senão a um pouco mais de decepção, a um pouco mais de desgosto; de todos aqueles caminhos sem saída que lhe tinham marcado a vida. Tinha de seguir ainda mais um, mas para saber o quê, à chegada? Que Philippe nunca a amara e que a sua vida de mulher terminava antes mesmo de ter começado?
Terceira parte
A JUSTIÇA DO REI
CAPÍTULO X
O TÚMULO DO TEMERÁRIO
Foi em Saint-Dizier que Fiora decidiu mudar de caminho.
No albergue onde ela e Florent faziam etapa e onde tomavam a refeição da noite na grande cozinha como os simples companheiros de viagem que eram, tendo decidido usar de novo o fato masculino, a jovem interessou-se pela conversa de uns mercadores da Lorena que iam a caminho de Troyes. Aqueles homens, enquanto satisfaziam as exigências dos seus robustos apetites, cobriam de louvores o jovem duque Renato II de Lorena que, depois da batalha de Janeiro de 1477, onde o Temerário encontrara a morte, se esforçava por reconstruir Nancy, por relançar o comércio e por promulgar as melhores leis no sentido de tentar curar os cruéis ferimentos sofridos pela cidade
Nunca nenhum príncipe dizia um deles foi mais esmoler e mais generoso, enquanto vive com a família num palácio do qual só resta uma parte. Mas a cidade está antes do palácio. O príncipe também se esforça por ajudar os conventos, dos quais alguns sofreram muito, a recomeçar a vida.
Não tem de se preocupar muito com os cónegos da colegial de Saint-Georges. Esses continuam gordos disse o outro.
Mas preocupa-se com os beneditinos que continuam no priorado de Notre-Dame. Eles estão encarregues de rezar pelos mortos das guerras borgonhesas, o que não dá de comer a ninguém.
Eles também rezam pela alma pecadora do Temerário que, esse, bem precisa de orações por todo o mal que fez.
Dizem que monsenhor Renato vai muitas vezes recolher-se à tumba dele, onde ardem velas dia e noite. São os monges de Notre-Dame que estão encarregues da sua manutenção, mas parece que o duque tenciona fundar um convento de franciscanos cuja capela será a sua própria sepultura e a dos seus descendentes. Ele não quer ser enterrado perto do seu inimigo.
Compreendo-o, mas não seria mais simples mandar o borgonhês para Dijon?
Para acordar os entusiasmos? É melhor que, depois de morto, o Temerário fique aqui como prisioneiro!
Não sei se será uma boa solução. Vem gente de toda a parte para ver o túmulo dele. Dentro em pouco será palco de peregrinações.
Os dois homens acabaram a refeição e saíram após uma saudação aos presentes. Fiora seguiu-os com os olhos e depois chamou o estalajadeiro com um gesto:
É longe, daqui a Nancy? perguntou ela.
Umas vinte léguas. Não é grande coisa para as pernas de um cavalo, meu jovem senhor. Também quereis ver a tumba do duque Carlos?
Talvez...
E como Florent, surpreendido, a olhasse de olhos muito abertos, ela sorriu-lhe gentilmente:
Creio disse-lhe ela que vamos fazer um desvio por Nancy No fim de contas, não temos assim tanta pressa.
Quereis mesmo regressar a Nancy? perguntou o jovem, espantado. No entanto, nunca fostes muito feliz, lá.
Na verdade, quando Léonarde e ele próprio, guiados por Mortimer, tinham ido ter com Fiora à capital da Lorena quando ainda nas mãos do Temerário, tinham encontrado Fiora, não apenas prisioneira do duque, mas também ferida e num triste estado.
Quando fostes ter comigo, eu não o era, de facto, mas logo depois da morte do duque, conheci três dias de felicidade. Não é muito, três dias, mas ainda hoje me são infinitamente preciosos. Além disso, vive lá uma pessoa a propósito de quem, em
1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário
Roma, fiz uma promessa. Confesso que me tinha esquecido dessa promessa, mas como estamos perto, seria imperdoável não a cumprir.
A jovem calou-se. Florent compreendeu que ela não diria mais nada e não lhe fez mais perguntas, sabendo que não responderia. O jovem contentou-se em escoltar a jovem até ao seu quarto e em lhe desejar boas-noites. No dia seguinte, em vez de continuarem para Joinville e Chaumont, os dois viajantes viraram para leste e dirigiram-se a Nancy.
Um pouco mais de dois anos não eram suficientes para curar as inumeráveis feridas sofridas pelo ducado da Lorena, e os vestígios eram numerosos ao longo do caminho: aldeias incendiadas onde algumas casas cobertas de colmo novo surgiam corajosamente das ruínas, castelos meio destruídos, abadias ou priorados transformados em estaleiros onde os monges, em cima de escadas e de mangas arregaçadas, trabalhavam com colheres de pedreiro, com picaretas ou plainas; caminhos de tal modo danificados pelas carroças militares que a erva, tal como depois da passagem dos cavalos de Átila, não crescia e, nos campos, demasiadas mulheres substituindo os homens que não regressariam nunca mais. Demasiadas cruzes novas, também, nos cemitérios ou até nos caminhos, onde os soldados sem nome tinham caído, amigos ou inimigos. No entanto, sob o sol da Primavera, toda aquela gente a trabalhar e os campos de novo semeados falavam de esperança e provavam a coragem de um povo.
A vista de Nancy também foi reconfortante. Tinham tapado as trincheiras cavadas pelos Borgonheses e nos bairros que tanto tinham sofrido, assim como nas muralhas, trabalhavam numerosos operários. Apesar dos graves e evidentes danos sofridos por uma cidade que se tinha batido até ao limite das suas forças e até à vitória, sob o céu azul salpicado de pequenas nuvens brancas viam-se brilhar os telhados em tempos arrombados. Sobre as muralhas, os soldados de vigia mostravam as suas armas cintilantes, contrastando com as feições tranquilas de homens que sabem não ter nada a temer: nenhum inimigo voltaria a descer das alturas de Laxou, ou de Maxéville, nenhum acampamento gigantesco estenderia de novo os seus pavilhões sumptuosos, dominados por um grande estandarte violeta, negro e prateado. Os rebanhos, que não voltariam a ser dizimados, pastavam tranquilamente nos prados e o lago de Saint-Jean, perto da sua comendadoria em ruínas, estava purificado dos cadáveres que ali tinham sido semeados.
A cidade estava bem guardada. Os dois viajantes aperceberam-se disso quando, ao passarem pela porta de la Craffe, que se abria para a rua principal de Nancy, foram detidos pelo corpo da guarda. Um grande diabo, armado até aos dentes, perguntou-lhes o que vinham fazer à cidade.
Uma peregrinação respondeu Fiora. Vimos rezar ao túmulo do último duque de Borgonha. É proibido?
Não, não... Mas cada vez vem mais gente como vós. Sois da Borgonha, claro?
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