Creio disse Fiora friamente que monsenhor Carlos, que Deus tenha na Sua santa guarda, teria sabido como utilizar um homem da sua qualidade, um homem que, ao serviço de Vossa Alteza, chegou a enfrentar o cadafalso. A Borgonha escapou-se-vos, não é verdade? Penso que não ficareis com nada do que quase foi um reino se não souberdes apreciar os vossos servidores. Alguns merecem-no.
A jovem duquesa, cujo belo rosto ficou vermelho, não teve tempo de lhe responder: um jovem de longas pernas e de rosto bastante rude sob uma floresta de cabelos louros cortados em quadrado, à moda germânica, acabava de fazer a sua entrada impetuosa e dirigia-se para Maria.
Que me dizem, meu coração? Renunciais à caça? Quereis privar-me da vossa companhia? Que capricho é esse?
Não é um capricho, meu querido senhor. Desejava receber a dama que vedes aqui. É a mulher do conde de Selongey.
Compreendendo quem estava na sua frente, Fiora saudou o filho do imperador Frederico como devia ser. Este concedeu-lhe um grande sorriso de apreciação:
Bom dia, Madame. O vosso marido, na verdade, tem mais sorte do que a que merece, porque vós sois muito bela! Mas, se o permitis, levo a duquesa, porque não sei caçar sem ela. Tereis todo o tempo para conversar quando regressarmos...
É inútil, monsenhor disse Fiora. A senhora duquesa disse-me tudo o que eu esperava ouvir dela.
O sorriso de Maximiliano tornou-se maior ainda, se possível. Pegando na mão da sua mulher, ele conduziu-a na direcção da porta.
Óptimo, então! Depois de amanhã damos um baile. Vinde dançar ao palácio nessa noite! Dou-vos as boas-noites, senhora condessa.
O casal desapareceu e Fiora viu-se só na companhia de Mme. d’Hallwyn, reaparecida ao mesmo tempo que o príncipe. A despeito do calor íntimo daquela pequena sala confortável e acolhedora, a jovem sentia-se gelada até aos ossos e permaneceu por um instante imóvel, contemplando as chamas que subiam ao assalto dos cães de ferro forjado. A dama-de-companhia tossicou:
Posso reconduzir-vos, Madame? Pelo menos até ao jardim?
Por que até ao jardim? murmurou Fiora, surpreendida. Por que não até à entrada?
Porque no jardim está alguém que deseja muito falar-vos... e que se encarregará de vos conduzir à porta.
Quem?
Mme. de Schulembourg. Ela viu-vos chegar, há bocado...
Fiora fez sinal de que compreendera. A jovem pensara procurar aquela dama ao chegar a Bruges, mas uma entrevista com a duquesa parecera-lhe mais importante e mais urgente. Perante o resultado medíocre dessa entrevista, talvez fosse bom conhecê-la sem demora. Enquanto, atrás de Mme. d’Hallwyn, a jovem descia na direcção dos canteiros do jardim, chegou-lhe aos ouvidos o eco alegre da partida para a caça: o som das trompas, os latidos dos cães e os gritos dos monteiros que se foram, pouco a pouco, fundindo com o barulho da cidade. Fiora pensou que, na verdade, seria impossível perder um império com mais alegria. Para aquele casal de apaixonados, destinado a usar a coroa de Carlos Magno, não podia haver lugar para a amarga nostalgia dos combatentes do impossível...
Que vos disseram? perguntou uma voz ansiosa e a jovem apercebeu-se que tinha trocado de companhia, encontrando-se ao lado de uma mulher de idade, agasalhada como em pleno Inverno com roupas de veludo e raposa negra, uma mulher que se apoiava numa bengala e cujos olhos claros a envolveram num olhar de compaixão.
A jovem esforçou-se por lhe sorrir sem o conseguir.
Nada que monsenhor Antoine não saiba já: que o meu marido esteve aqui por ocasião do fim do ano. Ah! Sim! A senhora duquesa quis dizer-me que ele ficou pouco tempo, que o seu aspecto sombrio era chocante numa época de festa e que partiu sem dizer para onde ia.
Pobre criança! É muito pouco... Caminhemos um pouco, sim? E dai-me o vosso braço...
As duas damas deram alguns passos ao longo de uma alameda admiravelmente saibrada, afastando-se dos jardineiros que, nos seus canteiros, desbastavam os arbustos.
Não vos falaram na disputa, pois não?
Uma disputa? Entre Philippe e...
E o arquiduque Maximiliano! Este encontrou o vosso marido de joelhos diante de Madame Maria. Ficou furioso e exigiu que partisse sem ouvir, sequer, a menor explicação. Mas o conde não é daqueles que se deixam expulsar assim sem mais nem menos. Antes de partir, batendo com a porta, disse ao príncipe que era indigno de ser o genro do defunto duque Carlos e que preferia morrer a servir um tal senhor. Depois, limitou-se a sair e, se não foi detido, foi unicamente devido aos pedidos da princesa.
Mas Fiora só retivera as primeiras palavras de Mme. de Schulembourg, que confirmavam dolorosamente o que pensava: Philippe amava a princesa e ousara dizer-lho. Aliás, esta não protestara quando, pouco antes, Fiora lhe dissera o que pensava dos sentimentos de Philippe.
Consciente do silêncio que acabava de cair entre ela e a sua companheira, a jovem reprimiu as lágrimas:
Como é estranho, na verdade! disse ela com uma voz que se esforçou por manter firme. Eu vi o príncipe e ele foi... muito amável. Até me convidou para o baile de depois de amanhã.
A velha dama desatou a rir:
Não vos espanteis! Isso é mesmo dele! Aquele homem não consegue seguir duas ideias ao mesmo tempo. Além disso, lá por se mostrar apaixonado pela sua duquesasinha, não quer dizer que não seja sensível ao encanto feminino. A ideia de dançar com a mulher de um homem que ele considera doravante seu inimigo, deve parecer-lhe agradável. Acrescentai a isso que ele adora rir e dar festas...
Seja, admito-o, mas, por que razão Madame Maria não me disse nada?
Receou, sem dúvida, que lhe pedísseis explicações, o que a teria embaraçado. Além disso, arriscava-se a acordar de novo a cólera de um marido que ela ama de todo o coração. Vê-lo feliz a seu lado e do jovem príncipe Philippe é o que mais deseja. Então, tudo o que se possa meter entre essa felicidade tranquila...
Não esqueçais que ela não conheceu uma verdadeira vida familiar. Não era fácil ser a herdeira mais rica da Europa...
A herança desapareceu disse Fiora secamente e ela não parece muito preocupada. Na verdade, pergunto a mim própria por que razão me recebeu?
E a curiosidade, que é feito? Como resistir à vontade de conhecer a misteriosa dama de Selongey, a florentina de quem diziam maravilhas e que o Temerário arrastava consigo de batalha em batalha como uma rainha cativa? Estou certa que neste momento tendes os ouvidos a zumbir, não é verdade?
Um pouco, mas não tem importância...
Em que pensais?
Na sorte de Philippe. No que lhe aconteceu. Há meses que o procuro e ele parece fugir diante de mim. Vós, que o vistes, a quem ele falou, não me podeis dizer para onde ia quando saiu de Bruges?
Mme. de Schulembourg olhou para a jovem com profunda compaixão. Depois de a ter levado a conhecerem-se, a sua simpatia por aquela bela criatura, em quem adivinhava uma coragem que sempre apreciara, crescia de instante a instante:
Se eu soubesse suspirou ela já vo-lo teria dito. Se estais decidida a prosseguir a vossa busca, é na direcção da Borgonha que deveis dirigir os vossos passos.
Achais que ele voltou para lá? Seria uma loucura, porque foi um milagre ele ter escapado ao cadafalso e, pelo que sei, o Rei Luís tem a região toda na mão. Dizem que até o Franco-Condado, esse último bastião, também caiu.
Sem dúvida, mas a Borgonha ocupada pelas tropas francesas está cravada no coração do conde de Selongey como um espinho que não cessa de sangrar.
A despeito da lentidão, os passos das duas mulheres tinham-nas conduzido até ao alpendre que abria para as galerias do pátio de honra agora quase vazio.
Posso pedir-vos um conselho? pediu Fiora. Que faríeis no meu lugar?
Se quereis mesmo encontrá-lo, ou, pelo menos, descobrir-lhe o rasto, é preciso ir a Selongey. Um homem desamparado procura sempre reencontrar as suas raízes, a sua casa paterna...
Eu pensei nisso, claro, mas o sire de La Trémoille deve ter o castelo vigiado.
Ele já não é o governador da cidade, é messire d’Ambroise, que é infinitamente mais conciliador. Mas, onde viveis vós?
Em Touraine. E se ele tivesse ido ter comigo, eu não estava aqui à procura dele. Passou-se muito tempo desde o Natal...
Nesse caso, ide à Borgonha e começai por Selongey! Espantar-me-ia muito se não encontrásseis lá, pelo menos, um indício. Dito isto, tereis muita dificuldade em encontrar o vosso marido, porque ele deve estar escondido. E ides correr perigos, talvez inúteis. No fundo, o mais sensato seria regressardes a casa e esperar...
O quê? Que ele volte? Ele não volta.
Nesse caso, por que essa obstinação? Se, ao menos, tivésseis filhos!
Eu tenho um filho! disse Fiora, que acrescentou com amargura: Deus sabe que não passámos muito tempo juntos, mas este casamento insensato foi abençoado com uma criança. Simplesmente, Philippe ignora-o.
Então, tendes de lho ir dizer. Procurai-o, encontrai-o, mas se as vossas buscas forem infrutíferas, regressai para junto do vosso filho para que ele não fique órfão. Deus vos guarde, minha querida! Rezarei por vós!
Puxando Fiora para o seu vasto regaço, Mme. de Schulembourg abraçou-a, traçou com o dedo na sua testa uma pequena cruz e depois, apertando contra si o seu manto forrado, retomou, claudicante, o caminho do jardim. Fiora viu-a afastar-se e após um último olhar para aquele palácio esplêndido construído para os Grandes Duques do Ocidente, mas que já não era senão o cenário vazio de uma grandeza defunta, foi ter com Florent, que a esperava passeando os cavalos no pátio.
Desde a sua partida que Fiora acostumara o jovem ao silêncio. Sem ousar questioná-la quando a viu regressar com os olhos cheios de lágrimas dificilmente contidas, ele compreendeu que a jovem tinha pressa de abandonar aquela residência principesca onde alimentara tantas esperanças. Senão, por que aquela magnífica toillette? O jovem apressou-se a ajudá-la a subir para a sela e colocou suavemente as rédeas entre as suas mãos enluvadas. Saltando para a sua própria montada, precedeu a jovem para que lhe abrissem a porta, afastou-se para lhe dar passagem e seguiu-a. Quando chegaram defronte da Ronce Couronnée, viu que umas grossas lágrimas lhe corriam silenciosamente pelo rosto desprovido de expressão. Elas transbordavam dos grandes olhos cinzentos extremamente abertos e caíam uma a uma, seguindo o desenho delicado dos traços da face. Era mais do que podia suportar.
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