Por que não me anunciastes a vossa vinda, donna Fiora? disse ele avançando uma cadeira almofadada com quadrados de veludo azul. Teria tido tempo de pôr a minha modesta casa em estado de receber a Estrela de Florença...

As notícias não vos chegam com a necessária rapidez. Há mais de um ano que deixei a nossa querida cidade para ir a França tratar de certos assuntos.

Foi, espero, com o acordo do magnífico senhor Lourenço?

Pleno acordo, não tenhais receio! Esses mesmos assuntos, aliás, conduziram-me aqui um tanto repentinamente, mas, como não conto ficar muito tempo, venho ver-vos à chegada. Não para vos pedir hospitalidade, estou alojada na Ronce Couronnée. No entanto, podeis ajudar-me.

Ah! disse ele com um olhar na direcção do cofre, que dizia mais do que um discurso. É que... eu hoje não tenho muitos fundos. Suponho acrescentou ele com um visível embaraço que monsenhor Lourenço está maldisposto comigo porque, a despeito das suas ordens, o meu banco emprestou dinheiro ao defunto duque Carlos de Borgonha. Mas ele devia compreender que, como habitante de Bruges, não podia deixar de contribuir para o esforço de guerra da cidade.

E que a cidade recusou firmemente, assim como as outras cidades flamengas! Acontece que eu vivi junto do duque Carlos durante os seus últimos meses de existência...

Portinari corou, o seu rosto ganhou uma curiosa cor de tijolo velho:

Eu não podia recusar, porque o duque honrava-me com uma amizade muito particular. Por outro lado, creio saber que o vosso pai também lhe emprestou uma grande soma... Falou-se em cem mil florins de ouro...

O meu dote! cortou Fiora secamente oferecido pelo meu marido, o conde de Selongey, ao seu suserano. De qualquer maneira e por mais desprovido que estejais, messer Portinari, suponho que podeis, mesmo assim, honrar esta carta de crédito acrescentou ela tirando da sua escarcela um papel cuidadosamente dobrado.

Após o nascimento de Lorenza Maria, ela conseguira duas da parte de Agnolo Nardi, pensando ter necessidade porque não era prudente viajar com muito ouro.

O banqueiro pegou na carta e leu-a rapidamente, após o que o seu rosto se iluminou:

Cem ducados? Mas é claro! Os nossos cofres têm sempre, pelo menos, essa soma.

Perfeito, portanto, mas não é tudo. Preciso de um vestido!

Um vestido? disse o outro sem esconder o espanto. Eu não sou alfaiate...

Sem dúvida, mas conheceis esta cidade e podeis convencer qualquer costureira a trabalhar para mim esta noite. Quanto ao tecido, estou persuadida de que, como bom florentino, deveis ter uma certa quantidade...

Era quase uma tradição, de facto, entre os florentinos ricos, coleccionar, para além dos objectos preciosos de toda a espécie, tecidos raros que se guardavam em arcas de sândalo ou de cedro, para os expor nas janelas em dias de festa, ou confeccionar, em qualquer ocasião, um traje de cerimónia.

É verdade, é verdade... mas, por que esta noite?

Porque não me quero demorar e pretendo conseguir, já a partir de amanhã, uma audiência com a duquesa Maria...

A duquesa? disse o banqueiro com um pequeno sorriso vagamente desdenhoso. Não vejo que género de favor podereis obter dela. O seu poder, aqui, é praticamente nulo. O Conselho da cidade só sonha em recuperar a sua independência tal como Gand, Ypres e... as outras cidades flamengas. Madame Maria e o seu marido gostam de residir nesta cidade e de dar muitas festas. São gente amável e mantêm uma atmosfera elegante e alegre, por isso as pessoas gostam de os ter aqui. No entanto, são numerosos aqueles que não esquecem o poder brutal do Temerário nem a dureza com que o seu pai, o duque Philippe, reprimiu as últimas revoltas. Agora, é a cidade que detém o poder.

Decididamente, Portinari não gostava mais da duquesa do que a própria Fiora. Mas a curiosidade devorava-o e fora para incitar a visitante a abrir a boca que se dera ao trabalho daquele longo discurso. Pura perda de tempo:

Devo vê-la para um assunto de ordem particular que não interessa ao poder, mas que eu estimo urgente. Ora, não posso apresentar-me na corte vestida desta maneira...

Ser-vos-ia, de facto, impossível obter uma audiência. Muito bem, se quiserdes acompanhar-me, creio que poderemos satisfazer-vos, mas...

Ainda há mais um ”mas”?

Bem modesto, podeis acreditar! Consentiríeis em pedir por mim junto de monsenhor Lourenço? Parece que ele me reprova duramente a conduta durante as últimas guerras. E depois... há aquele assunto infeliz do Último Julgamento, devido ao qual ele se enfureceu tanto...

O Último Julgamento! Que é isso?

Um tríptico do grande pintor flamengo Hugo Van der Góes, que o meu predecessor, Angelo Tani, comprou para doar à igreja de San Lourenço de Florença. Foi há seis anos e eu fui encarregue de embalar e expedir o quadro... que nunca chegou lá.

Que se passou?

O navio foi atacado pouco depois da partida de Écluse por dois corsários de la Hanse e o Último Julgamento está agora na igreja de Notre-Dame de Dantzig. Fui considerado responsável e até...

Sugeriram que o ataque estava previsto e que vós mesmo tínheis vendido o tríptico?

Compreendestes. Como hei-de defender-me de uma tal acusação? É por isso que tenho tanta necessidade de uma voz a meu favor, senão receio nunca mais poder regressar a Florença. E esse pensamento é tão cruel.

Compreendo-vos melhor do que imaginais. Evidentemente, eu não posso fazer nada quanto a esse assunto do quadro roubado, mas posso levar ao conhecimento de monsenhor Lourenço que vós me prestastes uma ajuda... preciosa. Aliás, é a verdade.

Não peço mais nada. Tereis o vosso vestido... e até espero que me possais permitir que vo-lo ofereça?

Fiora franziu o sobrolho. A frase era mais do que desastrada porque, não tendo qualquer meio de saber se Portinari era um homem honesto e um grande devoto do Temerário ou um simples espertalhão que, crendo no triunfo do grande duque do Ocidente traíra a política do seu país, não queria receber dele qualquer presente. Escreveria a Lourenço, mas, entretanto, interrogaria Agnolo Nardi.

Certamente que não! disse ela secamente. Se quereis que vos ajude, é necessário que não fique em dívida convosco. Pelo menos nesse ponto

Seja como desejais.

No dia seguinte de manhã, duas jovens, enviadas pela melhor costureira de Bruges, levavam à Ronce Couronnée aquilo de que Fiora necessitava para se apresentar com dignidade perante a duquesa Maria, ao mesmo tempo que Florent percorria a cidade para encontrar, também para si, um fato decente. Ao fim da manhã, Fiora, vestida de veludo cor de ameixa salpicado de prata e cetim branco e com um chapéu também de cetim branco nublado por uma musselina engomada, dirigia-se a cavalo, seguida do seu jovem companheiro, para o palácio daquela que julgava sua rival. A jovem ia resoluta e segura de si mesma. A imagem do espelho e a admiração ingénua, visível nos olhos das duas jovens enquanto a ajudavam a vestir-se, eram mais do que tranquilizadoras. Fiora podia comparar-se com qualquer mulher, fosse ela coroada e se, por acaso, Philippe se cruzasse no seu caminho, estaria na posse de todas as suas armas. E isso era o mais importante...

Em caminho, deu a si própria o prazer de admirar Bruges. A cidade era bem construída, com belas ruas pavimentadas e numerosos jardins, dando quase todos para um canal e que, por meio de alguns degraus de pedra, desciam quase até à água onde se mirava a folhagem prateada de um salgueiro, o delgado tronco de uma bétula, ou uns espessos maciços de verdura ainda demasiado tenros para poderem ser identificados. Surgindo de pontes tão baixas que parecia impossível passá-las de outro modo que não a nado, grandes barcas fendiam a água negra e a espuma esverdeada do lodo. Aquele conjunto de canais, cujo entrelaçado parecia inextricável, fascinava a florentina. Punha reflexos ondulados nas fachadas cinzentas de um palácio ou nas paredes nacaradas de um convento novo. Aquele sussurrava junto de um pequeno muro onde dormia um gato, aquele outro deixava divagar uma barca mal atracada, este repousava numa confusão de caniços onde caçava um peixe-gato. Tudo aquilo falava de paz e doçura de viver e, no entanto, Bruges, construída para ser uma cidade feliz, era uma cidade turbulenta que, nos seus dias de agitação, se parecia com a própria Florença...

A Prinzenhof a Corte do Príncipe formava um grande quadrilátero onde se inscrevia o palácio, a capela com um grande campanário, os jardins e, bem entendido, as dependências. Passada a discreta entrada encimada por uma estátua da Virgem rodeada de anjos, o pátio de honra abria-se, rodeado de galerias e precedendo imediatamente os aposentos reais construídos em tijolos vermelhos e alvenaria branca, tal como la Rabaudière.

Aquela semelhança encorajou Fiora. Passada a paragem obrigatória no corpo da guarda onde um sargento, impressionado pelo porte da visitante, correu para advertir um camareiro, ela esperou pacientemente enquanto observava o que se passava no pátio. Com efeito, estavam ali reunidas algumas equipagens. Os palafreneiros conduziam cavalos ricamente ajaezados e surgiam um pouco de toda a parte senhores e damas em traje de caça, ao mesmo tempo que os falcoeiros conduziam, na ponta dos punhos enluvados de couro grosso, falcões, abutres e gaviões encapuzados de veludo bordado a ouro ou prata. As pessoas chamavam-se alegremente de longe em voz alta, saudavam-se, riam, conversavam e o vasto espaço enchia-se de sons e alegria.

Chegámos em má altura sussurrou Florent. O príncipe prepara-se para partir para a caça.

Sem dúvida, mas não é com o príncipe que me quero encontrar, é com a princesa.

Talvez ela também vá à caça?