Muito bem, tenho de acreditar que a minha recordação chega para lhe povoar os pesadelos! Simplesmente, agora, tenho uma filha que amo e da qual tive de me separar. Portanto, entendo que, pelo menos, o meu sacrifício serve para qualquer coisa. Já é tempo de ter com Philippe uma explicação definitiva...
Tão definitiva como isso? Dizei-lhe, então, que tem um filho! Ficarei muito espantada se essa notícia não for suficiente para o fazer mudar de ideias. Mas... contemos com o pior: que fareis se ele vos repelir?
Fiora não respondeu de imediato. A pergunta, na sua brutalidade, apanhara-a como um chicote e a dor que sentiu fê-la compreender que nunca conseguiria expulsar a imagem de Philippe do seu coração. No entanto, naquele instante, teria preferido morrer a conformar-se. Com uma súbita violência, disse:
Nesse caso, nada me deterá aqui. Pegarei nos meus dois filhos e vou para Florença. Convosco, evidentemente. Pelo menos, lá, estarei rodeada de gente que gosta de mim!
No dia seguinte de manhã, deixando Léonarde prosseguir o seu caminho na companhia do capelão de Antoine de Borgonha, Fiora, seguida por um Florent perdido de felicidade, retomava, a grande velocidade, a estrada de Paris, que queria atravessar sem parar a fim de atingir a Flandres.
CAPÍTULO IX
EM BRUGES...
De regresso a casa, Léonarde esforçava-se por acalmar as suas apreensões, esperando que a longa corrida através do norte de França abrandasse a cólera de Fiora, mas enganava-se. Enquanto o seu cavalo em Beaugency trocara as mulas por duas sólidas montadas a levava na direcção do palácio de Maria de Borgonha, a jovem não cessava de remoer o seu desgosto e a sua decepção. Desta vez, ninguém lhe poderia atribuir qualquer responsabilidade no estranho comportamento do marido. De facto, a verdade estava ali, cegante na sua claridade, e dizia-se em poucas palavras: Philippe nunca a amara realmente.
Desejara-a, sim, e disso estava segura. Aliás, qual fora o único desejo exigido por ocasião do casamento? Uma única noite! Era verdade que, mais tarde, ao reencontrar Fiora prisioneira do Temerário, o seu ciúme acordara ao saber daquilo a que a jovem chamara ”o episódio Campobasso” e, depois da queda de Nancy, amara-a apaixonadamente... durante três noites. Mas, e depois? Bem, depois, só tivera uma ideia: ir bater-se pela duquesa Maria, juntar-se à duquesa Maria, fazer de cavaleiro da duquesa Maria... aquela insuportável duquesa Maria para a qual ele se apressara a regressar assim que fugira do convento de Villeneuve! E, agora, era no séquito daquela mulher que se encontrava! Era uma verdadeira princesa, a duquesa Maria, nascida sob os tectos dourados de um palácio e não na palha de uma prisão. Além disso, diziam que era encantadora e como se isso não bastasse, possuía a mais incomparável das auréolas: era a filha do Temerário, esse príncipe agora quase lendário, que Philippe venerava tanto ou mais do que se fora seu pai!
À medida que o tempo passava e as léguas desfilavam sob os cascos do seu cavalo, aquela ideia aferrava-se cada vez mais no espírito de Fiora e tornava-se evidente, irritante, como uma queimadura em vias de sarar: coça-se, de repente a crosta sai e tudo volta ao princípio...
Por seu lado, Florent, passada a primeira alegria, sentia-se invadido por uma inquietação que ia aumentando. A mulher de rosto fechado, olhar duro, que cavalgava a seu lado durante todo o dia sem dizer uma palavra e que, chegada a noite, se fechava no quarto de um albergue para ter o repouso suficiente, deixando-o livre o resto do tempo, não era, não podia ser aquela donna Fiora que ele adorava em silêncio. Sem saber o que determinara aquela viagem insensata pouco depois do parto, o jovem sentia que se tratava de uma coisa grave, de uma coisa que a fazia sofrer. Desse modo, ansiava e temia ao mesmo tempo surgir no horizonte aquela cidade de Bruges que ele conhecia um pouco por ali ter acompanhado, em tempos, Agnolo Nardi, que fora em negócios. Uma coisa parecia certa: Fiora ia a caminho daquela cidade como se fosse para se encontrar com um inimigo.
Quando, no fim de uma planície ondulada com longos canais cuja água irisada reflectia o céu e sarapintada de moinhos de grandes velas surgiu, por fim, Bruges, Fiora deteve o seu cavalo para melhor contemplar o inimigo. A jovem teve de confessar a si própria que a cidade era bem bela e o seu rancor ganhou novas forças enquanto a admirava...
Construída sobre a água do Reye e sobre um lago como Veneza sobre a sua lagoa, a rainha da Flandres debruava o céu instável com uma renda de pedra loura e rosa. Sob a delgada torre de menagem, um pouco inclinada, onde os vigias se encontravam, tão alto que mais pareciam a meio caminho do céu, os pinheiros mansos, dourados, dominavam de forma soberba os telhados de telhas cor de carne que, desde o reinado do duque Filipe, o Bom, tinham substituído o colmo e a madeira para maior segurança. Quanto à cintura de defesa, assente na água profunda do rio, estava rodeada de salgueiros prateados, de hera e de tufos de goivos ruivos. Aliás, defendida daquela maneira pelas águas que a isolavam de terra firme, Bruges mal necessitava das suas muralhas.
À luz do Sol que declinava, o conjunto vivia, vibrava, cantava como uma floresta no Outono. O espectáculo era de uma beleza opressiva, que Fiora achou insolente. Aquela cidade, uma das mais ricas do mundo, permitia-se, além disso, ser uma das mais magníficas, era o esplendor dos antigos duques da Borgonha que se estendia na sua frente, intacta na aparência. A lenda parecia ter-se petrificado...
É linda, não é? tentou Florent.
Demasiado! Compreendo que as pessoas desejem regressar aqui, sobretudo quando tudo as leva a isso. Mas não é razão suficiente...
E com aquela frase sibilina, que destroçou por completo o pobre rapaz, Fiora esporeou o cavalo e avançou para Bruges como se fosse tomá-la de assalto. A cavalgada durou até à porta de Courtrai, que foi preciso transpor a uma velocidade mais tranquila. Passada a porta, Fiora parou bruscamente e, virando-se para o seu companheiro:
E agora, onde vamos?
Mas... não sois vós, donna Fiora, que mo deveis dizer? Ignoro os vossos projectos...
Sem dúvida, mas pensei que conhecíeis a cidade? Do que precisamos, por esta noite, é de alojamento, de um albergue, de uma hospedaria. Suponho que existem?
É claro, e bem boas. Mestre Agnolo gosta muito da Ronce Couronnée, na rue aux Laines, a Wollestraat, como se diz aqui. Creio, até, que é a melhor.
Vamos para a Ronce Couronnée! Tomai a dianteira, Florent, e guiai-me!
Perante aquele tom que não admitia réplica, Florent pensou que era bom ter boa memória, porque donna Fiora não parecia disposta a conceder-lhe a hipótese de erro. O jovem encontrou o caminho sem grande dificuldade, coisa que tinha o seu mérito porque Bruges, placa giratória do comércio do Ocidente setentrional, fervilhava de actividade a despeito da guerra impiedosa que os barcos franceses faziam aos fornecedores de lã inglesa ou aos produtos portugueses.
Mais meritório ainda foi arrancar ao último descendente da dinastia Cornélis que, desde há mais de cem anos, velava pelo nome da hospedaria, um alojamento digno do nome da casa para Mme. de Selongey e para o seu servidor. De facto, o mês de Abril estava a chegar ao fim e os preparativos para a famosa procissão do Sangue Sagrado, que tinha lugar a 2 de Maio, retinha em Bruges muitos viajantes, sem contar com os que estavam para chegar.
A senhora condessa só pode ficar dois dias, precisou Cornélis. Depois disso, o quarto está reservado.
Se bem que não passe, imagino, de uma questão de dinheiro disse a jovem com desdém penso que dois dias são suficientes. E agora, respondei a duas perguntas: onde mora a duquesa Maria?
Os olhos do estalajadeiro esbugalharam-se de surpresa:
Em Prinzenhof! Toda a gente sabe isso!
Eu não, senão por que vos perguntaria? E onde é esse... Prinzenhof?
Não é longe. Perto da Casa da Moeda.
Fico esclarecida! Passemos à segunda pergunta: Quem é que dirige aqui a sucursal do banco Médicis?
Isso também é fácil: messer Tommaso Portinari. Ele mora em Naaldenstraat, a antiga casa de messire Bladelin, que foi tesoureiro da Ordem do Tosão de Ouro.
Vede se o meu servidor conhece esse caminho! Eu vou-me refrescar um pouco e depois, antes do jantar, vou a casa de messer Portinari.
Se me posso permitir um conselho, nobre dama, os negócios de messer Portinari não vão muito bem depois da morte de monsenhor o duque Carlos, ao qual ele tinha emprestado muito dinheiro. Talvez um outro banqueiro florentino seja mais interessante...
Quem vos disse que eu queria um banqueiro ”interessante”? O mandatário dos Médicis é o único que me interessa.
Posto daquela maneira no seu lugar, Cornélis inclinou-se e conduziu ele próprio a difícil cliente ao seu quarto. Um momento mais tarde, Fiora, liberta da poeira da estrada e severamente vestida de cinzento e raposa vermelha, fazia-se anunciar ao banqueiro sob o nome de Fiora Beltrami.
Actual convento das irmãs da Assunção
Pela maneira como foi recebida, a jovem pensou, primeiro, que o nome do seu pai ainda representava qualquer coisa, mas não tardou a compreender o seu erro e também que os mexericos florentinos se espalhavam pela Europa com grande rapidez. O acolhimento de Tommaso Portinari foi feito, evidentemente, à última favorita de Lourenço de Médicis, não à filha de Francesco Beltrami.
Na grande e austera divisão, revestida com uma tapeçaria mas cujo móvel principal era um enorme cofre coberto de ferro, Fiora viu inclinar-se perante si um grande homem de cabelos ralos e tez morena, provido de um duplo queixo e cujo ventre enchia um amplo traje de fino pano cor de papoila orlado de pele.
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