Madame de Selongey? Mas, que feliz acaso é este, que faz com que vos encontre aqui?

O acaso dos grandes caminhos, monsenhor. Regresso a casa, na Touraine, após uma estadia em Paris.

Na Touraine? Vós? Não deveríeis, antes, estar na Borgonha? Ou o vosso marido, finalmente, entregou-se?

Há mais de dois anos que não vejo Philippe, monsenhor. O destino apraz-se em nos separar...

Mas, como é possível?

É uma história longa e triste, bem difícil de contar numa praça pública...

Sem dúvida... mas não à mesa. Dar-me-eis a honra, espero, de jantar comigo? Parece que temos muitas coisas a dizer um ao outro.

Com muito prazer, monsenhor, mas nós acabamos de chegar a esta cidade, dame Léonarde, um servidor e eu mesma, e precisamos de encontrar alojamento.

Quando eu ocupo os melhores? disse ele rindo. A coisa arranja-se. Um dos meus oficiais ficará encantado por ceder o seu quarto a duas damas. Quanto ao vosso criado, fará como os meus: dormirá na cavalariça. Não, não! Não me escapareis. Encontrei-vos, fico convosco!

E enquanto um escudeiro recebia ordens para espreitar o regresso de Florent, Fiora e Léonarde penetraram na hospedaria, onde lhes foi oferecido de imediato um dos melhores quartos.

Como é interessante manter boas relações! comentou Léonarde. As viagens ficam mais agradáveis.

Tudo depende dessas relações. Não nos podemos alegrar por termos conhecido o cardeal della Rovere... e vós nunca conhecestes o Papa!

Não penseis que o lamento! Em todo o caso, pergunto a mim própria o que faz aqui o grande senhor borgonhês.

Fiora soube-o uma hora mais tarde enquanto, sentada em frente dele, saboreava uma empada de lúcio, um dos seus pratos preferidos. Ambos jantavam sós, servidos por um dos pajens que pegava nos pratos à medida que o estalajadeiro os fazia aparecer e os colocava na mesa. Adivinhando, de facto, que a sua convidada podia ter certas confidências para fazer, ele recebera-a sozinho à sua mesa, coisa que Fiora lhe agradecera. Para a pôr à-vontade, o grande bastardo Antoine começou por explicar a razão da sua presença: deslocava-se ao castelo do Plessis-lès-Tours para agradecer ao Rei que, não somente o confirmara na posse das suas terras borgonhesas até então anexadas, como ainda as aumentara.

Não creio acrescentou ele ter escolhido mal ao reconhecer Luís de França como suserano. Se a minha sobrinha Maria tivesse decidido reinar sozinha sobre os Estados da Borgonha, teria posto a minha espada ao seu serviço, mas fazer entrar no império alemão esse outro império constituído pelas possessões dos Grandes Duques do Ocidente, não posso admitir. Borgonha nasceu da França, os seus príncipes descendem de São Luís e as flores-de-lís não podem servir de pasto às águias alemãs. Além disso, Maximiliano não passa de uma ave decorativa, ao passo que o Valois é um grande soberano, mesmo com todos os seus defeitos e apesar de ser muito pouco decorativo. É tempo de Selongey se dar conta...

Não sei se, alguma vez, ele se dará, monsenhor, e eu receio não ser estranha a esse estado de espírito.

Dizíeis-me, de facto, que não o vedes há mais de dois anos? Que se passou? Dispondes do tempo necessário para me contar essa longa história e podeis crer que não sou levado por qualquer curiosidade deslocada, antes pela amizade que sempre tive pelo vosso marido e pela estima que, no decurso deste último ano tão terrível, gerei pela vossa coragem. Que idade tendes, donna Fiora?

Vinte e um anos, monsenhor.

Eu tenho cinquenta e oito. Podia ser vosso avô e, sublinho, é para que saibais que podeis esperar de mim compreensão... e indulgência.

Precisarei muito, porque, se nos separámos em Nancy, a culpa foi minha. Quando esperava ter acabado com uma separação que durara demasiado, ele só pensava em me fechar em Selongey, enquanto continuava a bater-se por Madame Maria. Eu não o suportei e...

E a separação eternizou-se. Eu prometi-vos indulgência, minha querida filha, mas a mulher é, antes de mais, a guardiã do lar. Madame Joana Maria, a minha bela mulher, nunca saiu muitas vezes, durante estes anos difíceis, do nosso castelo de Tournehem que herdou do seu pai. Ela educou nele os nossos filhos... mas peço-vos desculpa: é a vossa vez de falar e pouco vos importam as histórias de um velho.

Posta assim à-vontade, Fiora falou durante muito tempo sem procurar minimizar os seus agravos para com o seu marido, mas fazendo passar em silêncio a aventura apaixonada com Lourenço de Médicis e as suas consequências recentes. A sua história terminou no convento de Val-de-Bénédiction...

O rasto de Philippe apaga-se na soleira do convento e ninguém me conseguiu dizer o que lhe aconteceu. Confesso-vos: receio que ele esteja perdido para sempre. Terá seguido os peregrinos até ao fim? Terá regressado com eles? E depois, para onde terá ido? Terá alguém tido piedade daquele homem sem memória? O pensamento de que ele possa ter morrido de miséria num caminho qualquer perdido atormentou-me as noites durante muito tempo... mas, onde procurar, agora?

Tendo despedido o pajem, o grande bastardo voltou a encher a taça de Fiora, serviu-se e, mergulhando o seu olhar sorridente nos grandes olhos cor de nuvem:

Por que não em Bruges? propôs ele.

Em Bruges? Mas, ele deixou essa cidade há muito tempo.

Mais uma razão para voltar para lá. É uma cidade muito bela e que vos agradará, creio...

Com o coração apertado, Fiora, desiludida e vagamente indignada, pousou sobre ele um olhar sombrio.

Fazeis mal, monsenhor, em fazer troça de mim.

Mas, eu não estou a fazer troça de vós. Considero, até, o nosso encontro mais feliz do que pensava e Deus deve ter alguma coisa a ver com ele. Posso assegurar-vos, de fonte segura, que Selongey se encontrava em Bruges no último Natal.

Não é possível!

Porque não? Alguém que me é chegado viu-o na corte da duquesa e até lhe falou. Posso dizer-vos que parecia na plena posse da sua memória, se bem que não tenha sido muito loquaz, ao que me disseram.

Mas, quem é que o viu? Essa pessoa pode ter-se enganado, talvez uma semelhança.

Seria preciso que não o conhecesse. Ora, Mme. de Schulembourg, que é a sogra da minha filha Joana e melhor amiga da minha mulher, se bem que não estejamos no mesmo campo, conhece Selongey desde a infância. Ela achou-o pálido e sombrio e devo dizer que não respondeu às suas perguntas. É verdade que a querida dama é muito faladora, mas posso assegurar-vos que era ele.

Philippe, em Bruges! balbuciou Fiora, siderada. É extraordinário...

Talvez, mas é verdade! Mme. de Schulembourg ficou tão impressionada com o encontro que se apressou a ir a Tournehem para contar à minha mulher. Sabeis que há uma trégua neste momento, entre o casal Maria-Maximilliano e o Rei Luís? Os encontros estão, por isso, facilitados... Mas, que tendes?

Caída sobre as almofadas que guarneciam a sua cadeira, Fiora, de nariz franzido, olhos fechados e faces pálidas, parecia prestes a perder a consciência. De facto, a jovem lutava contra dois sentimentos contraditórios: a alegria e a cólera. A alegria pela certeza de que Philippe recobrara a memória, a cólera porque, mal saíra do pesadelo que quase o submergira, correra a juntar-se à sua querida duquesa! O que significava, sem dúvida, que jamais regressaria para ela e que virara definitivamente a página onde estava escrito o nome de Fiora...

Uma frescura na testa incitou-a a reabrir os olhos. Antoine de Borgonha humedecia-lhe as têmporas com a ajuda de uma toalha molhada, tomado por uma inquietação tão visível que a fez sorrir:

Muito obrigada, monsenhor, mas não é nada... É só a alegria! De facto, foi Deus que fez com que nos encontrássemos.

Também acho, mas bebei um pouco deste vinho de Espanha, que eu trago sempre comigo em viagem! Far-vos-á bem e o Senhor não verá nisso nenhum inconveniente.

Fiora bebeu, mas como a sua cólera tinha aumentado, pediu autorização para se retirar, alegando uma necessidade de repouso bem natural. Cortesmente, o príncipe levou-a até à porta do seu quarto pela mão.

Faremos viagem juntos, amanhã, já que seguimos o mesmo caminho?

Aquela pergunta simples modificou instantaneamente os projectos imediatos de Fiora que, aliás, não sabia muito bem onde estava no instante precedente.

Não, monsenhor, lamento, mas quero ir a Bruges. Mas... se Vossa Senhoria quisesse acompanhar dame Léonarde até à minha casa de la Rabaudière, ficar-lhe-ia infinitamente reconhecida. Ela tem demasiadas dores para conseguir suportar novamente uma longa viagem...

Com prazer, mas achais prudente lançar-vos assim pelos grandes caminhos?

O meu servidor será suficiente como guarda e não conto estar muito tempo ausente.

Foi mais difícil fazer com que Léonarde aceitasse aquela mudança de programa. A velha solteirona lançou fogo e chamas, esconjurando o ”seu cordeirinho” a renunciar àquele projecto insensato, mas conhecia demasiado bem a jovem para saber que nada modificaria a sua decisão e que ela estava pronta a dar a volta ao mundo para levar a cabo o seu projecto um tanto ou quanto vingador.

Estais contente, mas ainda estais mais furiosa, não é verdade? perguntou ela.

É verdade! Já é tempo de Philippe se lembrar que existo e que tem de escolher, sem mais delongas, entre a sua duquesa e eu!

Nunca é bom lançar um ultimato a um homem, sobretudo um homem do carácter de messire Philippe. Não vos bastou o último?

Bastou, mas eu acreditava no amor dele...

Lembrai-vos do que me contastes! O seu delírio, quando ele estava doente em Villeneuve!

Fiora teve um pequeno sorriso triste, rapidamente varrido por uma nova onda de cólera: