Durante os três dias que se seguiram, Fiora e Léonarde comportaram-se como duas estrangeiras em visita. Foram com Agnelle a Notre-Dame, à Capela Santa, vaguearam pelos mercados e pelo cemitério dos Inocentes. Efectuaram numerosas compras na rue de la Lingerie que confinava com o famoso recinto dos mortos, onde ia parar a maior parte dos defuntos de Paris. Não deixaram de dar esmola à reclusa do local, a venerável Agnès du Rocher, que se fizera emparedar setenta e cinco anos antes com a idade de dezoito anos no estreito cubículo sem portas nem janelas, apenas com uma fenda que dava para o cemitério. Havia ali sempre um grande ajuntamento de mulheres ajoelhadas, rezando diante daquela abertura que só deixava aperceber um monte de trapos nauseabundos, nos quais era impossível distinguir um rosto. Fiora deixou cair duas moedas de ouro no interior da parede imunda:
Ela não fica com elas murmurou Agnelle. Antes do anoitecer, um miserável qualquer vem aqui implorar o seu socorro e ela dá-lhas. De qualquer maneira, tereis feito uma obra piedosa.
De facto, do interior, uma voz quebrada, trémula, que não pertencia de todo a este mundo, fez ouvir um agradecimento e uma bênção em nome do Altíssimo.
Como é que uma rapariga foi capaz de se condenar a um tal suplício? perguntou Léonarde, impressionada. Por que não escolheu antes o convento?
Talvez porque era precisa uma grande expiação. Diz-se que Agnès, que era uma rapariga nobre, amou um rapaz que não era do seu nível e que teve dele um filho. O pai dela teria matado, com as suas próprias mãos, o amante e o recém-nascido. Refeita do parto, Agnès conseguiu do bispo de Paris autorização para entrar em clausura. Havia várias em redor do cemitério. Vou mostrar-vos daqui a pouco, entre os túmulos, a da irmã Alix Ia Bourgotte, morta em 1466, sobre a qual o Rei, nosso sire, mandou erguer uma estátua em tamanho natural com as palavras:
Aquijaz a irmã Alix Ia Bourgotte Durante a vida reclusa muito devota Onde reinou humildemente e longamente Durante quarenta e oito anos
Mas Fiora não tinha vontade de ir ver a efígie daquela santa mulher. Aquelas penitências excessivas inspiravam-lhe uma espécie de repulsa e, se bem que compreendesse que uma rapariga desesperada pudesse escolher o asilo de um convento, tinha da vida, esse dom de Deus, uma ideia demasiado elevada para
Agnès viveu assim até 1483, data em que morreu com noventa e oito anos.
admitir aquela espécie de suicídio que, aliás, nem sequer o era porque, submetidas durante anos à humidade e ao frio, mesmo ao gelo, ou ao calor extremo, as penitentes permaneciam vivas durante anos intermináveis. Era preferível, cem vezes, morrer de insolação nos caminhos de Santiago de Compostela, ou morrer afogada a caminho da Terra Santa!
Para ela, os seus pecados de amor eram bem mais graves do que os daquela Agnes que, de facto, expiava o crime de outro, mas a ideia de escolher aquela tumba para ali viver o resto da vida na imundície, fazia-lhe horror. Léonarde deu-se conta disso e afastou-a dali:
Não é um espectáculo para uma futura mãe sussurrou-lhe ela. E Deus não pede tanto aos seres humanos, porque, então, o seu Paraíso, no dia do julgamento, estaria tristemente vazio!
Fiora sorriu-lhe e, sob o manto, sentiu deslizar pelo seu ventre uma mão já protectora. À medida que os dias passavam, a jovem ligava-se cada vez mais àquele pequeno ser desconhecido que ganhava vida nas suas entranhas e começou a pensar que a separação inevitável seria, talvez, tão dolorosa como as dores do parto.
Entretanto, ao mesmo tempo que as mulheres percorriam Paris, Florent, seguindo as ordens de Agnolo, efectuava numerosas viagens a Suresnes para pôr a casa em estado de oferecer uma estadia invernosa mais ou menos confortável. A aldeia, dependente da abadia de Saint-Leuffroy, ela própria vassala da rica e poderosa abadia de Saint-Germains-des-Prés, não tinha grandes recursos para além das vinhas estendidas pelos outeiros acima e dos rebanhos de carneiros que, no Verão, ocupavam as vertentes do monte Valérien. Graças aos cuidados e precauções de Agnelle, tudo ficou pronto a tempo e quando, ao quarto dia, Fiora e Léonarde se despediram dos seus amigos alegre e ruidosamente, sabiam que podiam enfrentar o futuro com uma certa serenidade. De facto, quando a criança fosse viver para casa dos Nardi, aquela boa gente da rue des Lombards não faria a ligação entre a grande dama elegante vinda passar alguns dias em Outubro e a pobre rapariga vinda de Itália para esconder a sua falta longe do seu ambiente habitual.
Os vizinhos em questão teriam ficado muito surpreendidos se tivessem podido assistir, uma hora mais tarde, à curiosa cena que se desenrolou numa cabana de lenhadores abandonada da floresta de Rouvray: a grande dama e a sua seguidora trocavam os seus ricos trajes de viagem por vestidos, capas de espesso pano cinzento e negro e coifas de tela simples que baixaram sobre o rosto, assegurando assim um porte modesto pouco susceptível de atrair a atenção dos passantes, por sinal bastante raros. Após o que retomaram o caminho para Suresnes onde chegaram ao fim do dia, àquela hora cinzenta e indecisa a que chamam ”entre cão e lobo”, quando as ave-marias acabavam de soar no campanário de Saint-Leuffroy.
Situada entre as vertentes do monte Valérien e o Sena, no qual ia desaguar o seu pequeno pomar, a propriedade de Agnolo Nardi compunha-se do dito pomar, de uma bela vinha que subia suavemente pelo outeiro e de um jardim rodeando uma casa baixa construída em estuque e vigas de madeira cruzadas à moda de Paris por cima de um rodapé de pedra que continha a adega e as caves. Uma escada exterior ia dar ao único andar, encapuzado com um grande telhado pontiagudo. Duas ou três pequenas dependências, das quais uma delas uma cavalariça, formavam, nas traseiras, um pátio irregular com um charco no meio, no qual galinhas e patos se divertiam o dia todo. Um idoso, nodoso como uma cepa e quase tão falador, o tio Anicet, assegurava, em princípio, a guarda do domínio, protegido pela vizinhança com a abadia. O tio Anicet tratava da vinha com a ajuda intermitente mas vigorosa, sobretudo na ocasião das vindimas, de dois homens da aldeia, os irmãos Gobert. O ancião vivia num casinhoto junto à água, o que lhe permitia dedicar-se ao que mais gostava neste mundo para além dos vinhos da região: a pesca. Enfim, nunca punha os pés na casa principal onde, à chegada, Florent se apressou a acender a lareira que tinha preparado antecipadamente.
A casa compunha-se de uma grande cozinha que servia de sala de todos os dias, de quatro quartos e de um recanto para as provisões. Os móveis eram simples, mas sólidos e bem escolhidos, assim como as tapeçarias que aqueciam os quartos, onde nem sequer faltavam os tapetes. Adivinhava-se a mão de Agnelle na abundância e qualidade da roupa branca e nos objectos usuais. Nada de luxuoso, claro, mas tudo o que era preciso para tornar confortável uma estadia de Inverno...
A menos que haja uma grande enchente acrescentou Florent, que fazia as honras da casa não temos nada a recear por parte do rio. Já aconteceu a água vir até à entrada da cave, mas podemos sempre sair pelas traseiras, porque a casa está situada numa encosta. Achais que ides ficar bem aqui, donna Fiora?
Esta tranquilizou-o com um sorriso.
Muito bem. Aliás, tinha a certeza desde que dame Léonarde esteve aqui. Olhai para ela, Florent, já está em casa.
A vida organizou-se rapidamente, ritmada pelo sino do convento de Saint-Leuffroy, que soava para os serviços religiosos. As duas mulheres tratavam da casa e da cozinha, cosiam, bordavam ou fiavam à noite sob o arco da chaminé que os reunia aos três. Florent, esse, velava pelos trabalhos pesados e pelo abastecimento. Fiora sentia-se nitidamente mais alerta do que durante a sua primeira gravidez e percorria muitas vezes a propriedade. Não se mostrava na aldeia a fim de evitar a curiosidade. Mas, aproveitando o Verão de São Martinho, conseguiu que Florent a levasse com Léonarde até ao topo do monte Valerian para admirar a vista sobre Paris, que tinha muita fama. Parecia-lhe que a contemplação da natureza a ajudava na gestação. Além disso, o monte tornara-se ponto de peregrinação desde que ali vivia um eremita chamado Antoine. Para simbolizar o Calvário, erguera três cruzes de madeira, diante das quais rezava de manhã e à noite.
Para não incomodar o santo homem nas suas orações, Fiora e Léonarde subiram a encosta ao começo da tarde. De facto, não encontraram ninguém e mal aperceberam a cabana feita de ramos que ele construíra na orla do bosque.
Do alto, o panorama era admirável. Paris encerrada nas suas muralhas e cortada pela longa fita cinzenta do Sena, Paris, eriçada das flechas douradas das suas igrejas, parecia-se com uma grande taça de prata engastada de ouro e cobre, porque se estendiam em seu redor imensas florestas avermelhadas pelo Outono. Nessas florestas, a mão do homem talhara clareiras onde cresciam aldeias: Saint-Denis, Courbevoie e Colombes na orla das pradarias de Longchamp; na direcção de Saint-Germain, Vaucresson e Montesson e, na floresta de Montmorency, outros lugarejos: Montmagny, Montlignon, Andilly; e depois, na direcção de Marne, Montreuil, Chennevière e Vincennes, enquanto a sul surgiam os campanários de Arcueil, Sceaux, Fresnes e Villeneuve-le-Roi. Florent, que conhecia bem o local, deu com prazer todas as informações a Fiora e esta admirou o espectáculo sem reservas. No meio daquele mar de árvores avermelhadas, lustrosas, douradas, a capital parecia, sob o Sol tardio, vibrar com uma vida muito própria. Um nevoeiro nacarado elevava-se dela, antes de se dissolver no azul ligeiro do céu. E Fiora, que muitas vezes da sua villa de Fiesole contemplara Florença pensando que nenhuma cidade no mundo se lhe podia igualar em beleza, Fiora, que contemplara Roma cintilando sob o fogo púrpura de um ocaso glorioso, permaneceu admirada e muda perante aquela grande cidade serena e majestosa da qual, no entanto, o seu Rei não gostava.
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