Ver Fiora e o Papa Sisto IV


Estás a chorar, donna Fiora? exclamou ele. Que boas-vindas! E nós que estamos tão contentes com a tua vinda!

Choro de vergonha, meu amigo, e de pesar, porque é a mim que deves tanto sofrimento e...

Chhh! Eu não fui assim tão valente, porque aqueles bandidos pensaram logo em atirar-se à minha Agnelle... e então, claro, disse tudo o que aquele demónio queria. Se alguém deve pedir perdão, esse alguém sou eu!

Nem mais uma palavra sobre esse assunto! Graças a Deus, Montesecco pagou pelos seus crimes. Ou antes, por um crime que se recusou a cometer.

Como é isso?

Aquando da conspiração dos Pazzi, na última Páscoa, ele recusou abater os Médicis no Duomo, mas foi, na mesma, preso e decapitado.

A justiça de Deus vence sempre! Mas, entrai depressa! Florent vai pôr os animais na cavalariça. Ele deve lembrar-se do local e...

Um grito de alegria interrompeu-o. Sempre redonda, sempre loura, Agnelle, de grandes olhos azuis e de vestido de veludo justo, acabava de surgir com o seu andar habitual, o de uma corrente de ar, e atirava-se para os braços de Fiora, que beijou e voltou a beijar antes de cair nos de Léonarde.

É o que se chama uma chegada discreta! disse entredentes Agnolo com um olhar para as janelas vizinhas onde se instalara uma grinalda de vizinhas.

Quem falou de discrição? protestou a mulher. E por que havíamos de esconder a vinda da nossa donna Fiora, que nós amamos como se fosse nossa filha?

Entretanto, Agnelle mandou entrar toda a gente em casa, onde o bailado das criadas encarregadas de preparar os quartos e melhorar a ementa da noite já tinha começado. Léonarde e Fiora reencontraram com prazer os seus antigos aposentos enquanto Florent partia na direcção dos escritórios para ali fazer a ostentação da sua nova condição de escudeiro de uma grande dama e do seu elegante fato de belo tecido cinzento usado por baixo de uma ampla capa forrada de pele de esquilo. Em seguida iria a casa do seu pai, o cambista Gaucher lê Gauchois, para ali abraçar a sua mãe, as suas irmãs e, certamente, passar a noite.

Estava, portanto, ausente quando, após o jantar, com todas as portas fechadas e as criadas retiradas nos seus quartos, Fiora deu parte aos seus amigos do embaraço em que se encontrava sem procurar qualquer desculpa.

Pelas cartas de Léonarde e pelas minhas, soubestes da aventura insensata para que me vi arrastada antes de poder, por fim, regressar a Florença e viver lá algumas semanas de paz, direi quase de felicidade, porque, durante essa estadia amei... amei Lourenço de Médicis e ele amou-me. Não vo-lo escondo, senti-me tentada a ficar lá, a mandar chamar o meu filho e Léonarde. Evidentemente, pensava que era viúva, mas, morra eu de vergonha diante de vós, creio que, se soubesse que o meu marido estava vivo, as coisas se teriam passado da mesma maneira...

Fiora calou-se por um momento. Antes de começar, recuara o suficiente para que o seu rosto não ficasse demasiado iluminado pelo grande candelabro pousado em cima da mesa. De facto, tinha consciência da incongruência de tais palavras naquele ninho de esposos honestos e fiéis um ao outro. Agnolo e Agnelle votavam um ao outro um amor profundo e, certamente, a segunda nunca teria a ideia, sequer, de olhar para outro homem que não o seu marido. No entanto, naqueles dois rostos virados para si, Fiora não viu nada que se parecesse a uma condenação. Pelo contrário, Agnelle sorriu-lhe:

Vós conheceis monsenhor Lourenço desde sempre, não é verdade?

Desde sempre, de facto...

Então, talvez o amásseis já sem vos dardes conta? Agnolo nunca deixou de me repetir que ele é o homem mais extraordinário deste tempo e que o seu encanto é extremo.

Isso é mesmo vosso, querida Agnelle, procurar uma desculpa para a minha falta, mas eu não amava Lourenço. Era pelo irmão dele, Giuliano, que eu estava apaixonada. Acrescento que o esqueci a partir do momento em que conheci Philippe de Selongey. E é aí que, a despeito da vossa indulgência, talvez tenhais alguma dificuldade em me compreender, porque, mesmo quando estava junto de Lourenço, nunca deixei de amar Philippe e quando soube, por messire de Commynes, que o Rei o agraciara e que ele continuava vivo, o meu único pensamento foi voltar para ele, a minha única esperança era encontrá-lo...

Do outro lado da mesa, a voz de Agnolo, tranquila e um pouco surda, fez-se ouvir:

Quem, de nós, pode vangloriar-se de ter vivido sem pecado? Esquecerás monsenhor Lourenço assim como esqueceste o irmão dele!

Não. O esquecimento é doravante impossível e é por isso que eu vim pedir a vossa ajuda... se não me desprezais demasiado!

O silêncio que se seguiu não durou muito. Agnelle levantou-se, colocou-se por trás de Fiora e, deslizando os seus braços em redor do pescoço da jovem, disse calmamente:

Creio, Agnolo, que te deves certificar de que as portas estão bem fechadas.

Ele ergueu uma sobrancelha, sorriu, levantou-se e deixou a sala. O som dos seus passos desiguais afastou-se lentamente. Então, sem abandonar a sua pose afectuosa, Agnelle murmurou ao ouvido de Fiora:

Quando é que chega a criança?

Em Abril, penso, mas, Agnelle, eu não quero, sobretudo, arranjar-vos problemas.

Chhh! Não haverá problema nenhum. Como o vosso marido está vivo, o seu nascimento deve permanecer secreto.

É o que eu desejo e foi também por isso que me quis afastar antes que os sinais exteriores se tornassem visíveis.

Fizestes muito bem. Aqui, a casa é grande...

Não cortou Léonarde. Aqui não é possível. Esquecestes o burburinho provocado pela nossa chegada? Além disso, há as criadas, os empregados do vosso marido. Que grande segredo seria! Nós estávamos a pensar pedir-vos que nos emprestásseis a vossa casa de Suresnes, onde eu passei uma convalescença agradável quando parti a perna.

Agnelle endireitou-se lentamente e deu alguns passos ao longo da chaminé antes de se deter.

Ficastes aborrecida? perguntou Fiora.

Por vós. Uma casa onde só vamos no Verão, passardes lá o Inverno com a humidade do Sena...

As chaminés fumam perfeitamente continuou Léonarde e eu já conheço a casa e os arredores. Penso que não estaremos mais bem retiradas aqui do que lá. Evidentemente, não nos poderemos instalar com grande estadão. Fiora passará por uma cozinheira italiana do vosso marido, ou uma sobrinha que esteve doente e eu serei uma aia muito conveniente. Além disso, o trabalho da casa e os cuidados de um parto não me metem medo.

Quereis morar lá sozinhas?

Naturalmente disse Fiora. O jovem Florent é-me muito dedicado, mas ignora tudo e eu penso mandá-lo de volta para la Rabaudière.

É impossível! disse Agnelle de forma categórica. A casa, como sabeis, está um pouco isolada. É preciso um homem, nem que seja para a lenha, a água e os trabalhos pesados. Florent conhece o local por ter tratado do jardim durante muito tempo e também as gentes dos arredores. Se adoptarmos a ideia da sobrinha de Agnolo, ninguém se espantará por ver o rapaz em Suresnes. Por que não quereis pô-lo ao corrente? Ele não merece?

Fiora corou e não respondeu. Léonarde encarregou-se disso:

De maneira nenhuma, mas o que preocupa Fiora é aliás, vós já o sabeis é que ele está apaixonado por ela desde o primeiro encontro, aqui mesmo. Ela teme... chocá-lo; talvez, até, feri-lo.

Conhecei-lo mal. Ele ficará orgulhoso da vossa confiança e mais ainda por poder velar por aquela que tanto ama. Mas, agora, temos de discutir imediatamente um assunto mais importante: a criança. Que lhe ides fazer? Não a podeis levar convosco...

Eu sei disse Fiora. E podeis acreditar que isso me custa muito. Não posso aceitar a ideia de me separar dela para sempre. No entanto, vou precisar de encontrar uns pais adoptivos de confiança...

E não pensastes em nós? exclamou Agnelle sinceramente indignada. Onde encontrareis pais melhores do que Agnolo e eu, a quem o Céu não concedeu filhos? E onde ficará ela melhor senão em nossa casa, onde podereis vê-la quando quiserdes?

Fiora, por sua vez, levantou-se, tomou a excelente mulher nos braços e apertou-a contra o coração:

Devo confessar-vos: esperava que falásseis assim.

Mas não tínheis a certeza? Porquê?

Estava certa da mulher que sois. Mas há o vosso marido. Ele pode opor-se. Eu conheço os seus princípios...

Mas não conheceis o seu coração. Decididamente, minha amiga, conheceis mal os homens. Educar como seu o filho de monsenhor Lourenço e da sua querida donna Fiora? O meu Agnolo vai subir ao céu!

E assim aconteceu com lágrimas nos olhos, Agnolo agradeceu à jovem a prova de afecto que lhes ia dar.

Farei dele um homem digno do vosso querido pai afirmou ele.

E se for uma rapariga? Há essa possibilidade.

Bem, nesse caso será a luz desta casa.

Quanto a Florent, Agnelle conhecia-o melhor do que Fiora e julgou-o correctamente. Ao saber o que esperavam dele, o jovem colocou um joelho em terra diante da jovem como um cavaleiro perante a sua dama e jurou velar até à morte, se fosse preciso, por ela e pela criança que estava para nascer. Depositário de um segredo tão perigoso para a paz futura daquela que amava, sentiu-se imensamente orgulhoso e, além disso, encantado: a perspectiva de uma longa e estreita coabitação com Fiora sem outras testemunhas que não Léonarde, deliciava-o. De repente, sentia a força e a sabedoria de todos os cavaleiros do grande Carlos Magno juntos. Também sentia uma inquietação ao pensar em Khatoun e na sua atitude perante uma ausência tão longa, mas se, no regresso, tivesse de enfrentar cenas desagradáveis, teria valido a pena.