Tu és uma verdadeira diabinha dizia-lhe ele, por vezes mas o amor contigo é tão doce...

O importante era, após uma noite particularmente quente, escapar ao olhar míope mas singularmente perspicaz da dama Léonarde, ou ao sorriso entendido do pai Étienne. Florent safava-se indo chafurdar no Loire ao nascer do dia, mas sabia que teria de encontrar outra coisa quando chegasse o Inverno. Era verdade que, então, as noites seriam mais longas e os trabalhos do jardim ou dos campos menos absorventes...

Mas, naquela noite, o jogo do amor terminou rapidamente e, enquanto Khatoun continuava a chorar com a cabeça aninhada no ombro do rapaz, este, apesar de tudo ter feito para apaziguar o desespero da sua amiga, confessou a si próprio que não estava longe de o partilhar com ela. Por que razão partiam Fiora e Léonarde para casa dos Nardi, sobretudo se tinham de ficar lá durante várias semanas, talvez vários meses? Entretanto, no meio da sua inquietação, nascia uma esperança: aquele grande diabo escocês não podia passar o tempo todo a escoltar as damas, o que lhe dava a ele, Florent, a hipótese de ser escolhido.

Sob o feroz comando de Archie Ayrlie, os seus progressos na equitação tinham sido rápidos e não havia razão nenhuma para o deixarem em casa.

O jovem abanou suavemente Khatoun, que adormecera, para a mandar para o seu quarto, um pouco envergonhado por constatar que a ideia de não a ver durante dias e dias não lhe provocava uma grande pena. E como ela recomeçasse a chorar, ele lançou-lhe, descontente:

Não vais passar o tempo todo a chorar até ao Natal? É aborrecido, sem dúvida, que donna Fiora se vá embora, mas podes ter a certeza, de que se o faz é porque tem uma boa razão. Por isso, não lhe compliques a existência! Ela volta. Sim... Tens razão, claro... Enfim, veremos...

E, pegando na camisa, Khatoun vestiu-a com um gesto maquinal e dirigiu-se para a porta. Florent voltou a deitar-se e esforçou-se por adormecer, porque o dia aproximava-se. As palavras de Khatoun martelavam-lhe a cabeça e ele esforçava-se por encontrar uma explicação. O jovem não conseguiu e, pelo contrário, acabou por adormecer num sono tão profundo que não ouviu cantar o galo e esqueceu-se das horas. Só quando Étienne o atirou da cama abaixo é que ele retomou o contacto com a realidade quotidiana.

Realidade essa que não tinha nada de sorridente. Fiora, com o rosto sombrio, não dizia palavra e parecia sofrer. A jovem estava pálida e visivelmente fatigada. Além disso, chovia a cântaros, o que provocava uma luminosidade cinzenta pouco sedutora. Assim, quando depois do meio-dia apareceu um pajem para lhe dizer que o Rei desejava vê-la, ela acolheu o convite sem o menor prazer. Florent, pelo contrário, ficou muito contente, porque a jovem ordenou-lhe de imediato que se aprontasse para a acompanhar e que selasse as mulas enquanto ela mudava de vestido.

Fiora encontrou Luís XI no seu quarto, uma vasta divisão cheia de tapeçarias representando temas de caça onde uma dezena de cães, épagneuls louros e galgos brancos formavam, sobre os tapetes, um arquipélago sedoso. Sentado numa cadeira de madeira esculpida perto da grande chaminé de pedra branca onde ardia um tronco de árvore, o Rei de França parecia curiosamente encarquilhado. Friorento em excesso, estava vestido como em pleno Inverno com um traje castanho sólido e quente orlado de pele de castor, que luzia como uma castanha, combinando com o chapéu que usava, como habitualmente, sobre um barrete de lã vermelha que lhe cobria as orelhas. Junto dele, o seu galgo favorito, Cher Ami, estendia o seu estreito focinho para os bocados de biscoito que as mãos finas, verdadeiramente reais, talvez a única beleza daquele estranho soberano, ofereciam à sua gulodice. À luz das chamas, os rubis encastoados na coleira do cão brilhavam como brasas.

Junto do Rei estava um homem, inclinado para ele para poder ouvir qualquer das suas palavras e Fiora, ao vê-lo, estremeceu. Só vira uma vez aquele rosto de fuinha, aqueles cabelos ralos cortados curtos e aqueles olhos glaucos, mas reconheceu logo o seu proprietário como o homem que, sem que ela lhe tivesse feito qualquer mal, era seu inimigo jurado, aquele que mandara assassiná-la na floresta de Loches. Era Olivier le Daim, barbeiro e confidente do Rei, pelo menos tanto quanto o pode ser um homem que, todos os dias, passeia uma navalha de barba pela garganta de outro. Uma coisa parecia certa: tinha os favores do Rei e Fiora, por mais que quisesse, não o podia acusar abertamente.

Para não ver mais aquele olhar amargo como fel deslizando sobre ela sob as pálpebras descaídas, ela saudou profundamente, esperando que o Rei a libertasse da sua reverência. O que ele fez sem tardar:

Aproximai-vos, Madame de Selongey! Temos de falar, vós e eu! Deixa-nos, Olivier!

O barbeiro sorriu de má vontade, enquanto Fiora avançava para a chaminé e para a cadeira que lhe era indicada. A jovem juraria que o outro ficaria à escuta por trás da porta. No entanto, decidiu não pensar mais nele e sentou-se sem dizer nada, porque cabia ao Rei falar em primeiro lugar. Como ele não parecia apressado, ela examinou-o discretamente e achou-o com má cara. O longo nariz pontiagudo parecia mais adelgaçado e o pesado rosto, de mandíbulas carnívoras, feito de pergaminho amarelecido, ao mesmo tempo que um tique nervoso lhe contraía por instantes a boca de linhas desdenhosas.

Sabendo que ele sofria de má circulação e de dolorosas hemorróidas, ela pensou que uma crise, talvez, explicaria a contracção do seu rosto. E teve a certeza quando, mexendo-se nas almofadas, ele não conseguiu evitar um breve gemido logo seguido de um movimento de cólera e de uma pergunta:

Pelos Céus! Onde está ele, esse animal?

Quem, Sire?

Aquele médico bizantino... Como se chamava ele? Ah sim: Lascaris! Demétrios Lascaris! Vós éreis muito amigos, creio?

De facto, Sire.

Nesse caso, devíeis saber onde está! Não compreendi porque não voltou para o pé de mim depois da queda de Nancy. A sua vingança estava completa com a morte do duque Carlos e o jovem Renato de Lorena não precisava dele. Então? O meu serviço não lhe convinha?

O Rei não pensa isso, certamente, porque Demétrios gostava de o servir, mas uma... desavença instalou-se entre nós e ele preferiu regressar a Florença. Onde se encontra ainda.

E eu, no meio disso tudo?

Ele pensava seriamente que o Rei não precisava mais dele. É um homem muito modesto...

Ele? troçou Luís XI. Ele é tão orgulhoso como um pavão. Em todo o caso, não devia agir dessa maneira. Eu é que sofro, não é ele. Já que sabeis onde ele está, escrevei-lhe a dizer que venha! A carta será levada por um dos meus cavaleiros postais...

Sire, eu pedi-lhe que viesse comigo, mas ele envelheceu e receia as longas viagens. Talvez porque percorreu demasiado o mundo. Além disso, o Inverno está a chegar. Na sua idade...

Pois! O Rei de França, esse, pode sofrer a morte e o martírio enquanto ele está repimpado ao sol. Bem, escrevei-lhe a dizer que me mande a sua pomada milagrosa! Eu mando-o vir na Primavera. E agora falemos de vós! Fostes cabriolar com o mulo do meu escocês?

O Rei pensa verdadeiramente que cabriolar é a palavra apropriada? Nós fizemos uma viagem longa e fatigante e...

Bom, bom! Retiro o cabriolar. Desculpai-me, donna Fiora! Estou de muito mau humor!

Como que falando para si mesmo, ele explicou então que, como existia uma trégua entre o casal Maria de Borgonha Maximiliano de Áustria e ele próprio, o Rei Eduardo de Inglaterra, tão perfeitamente ridicularizado, mas pago, em Picquigny, queria aplicar uma das cláusulas do tratado: o casamento entre o delfim e a sua filha Isabel.

Aquele rato quer-nos mandar a filha para concluir o casamento e receber as sessenta mil libras que eu devo pagar por ano pela mão dessa princesa... que eu não quero. Safa, uma inglesa no trono de França! Além disso, o meu filho, aos oito anos, é demasiado jovem para se casar. Tenho de arranjar um meio de manter Eduardo tranquilo.

E... o Rei encontrou esse meio?

O tempo! Nada mais do que o tempo! Além disso, tenho em Londres um embaixador, Marigny, que é um homem muito hábil. Vai ser o diabo se entre os dois não conseguirmos deter Eduardo. Ainda por cima porque ele casou com uma rapariga da pequena nobreza e o seu trono, cobiçado pelo seu irmão Gloucester, não é tão sólido como se pensa... Mas, como acabámos nós a falar de política? Estávamos, creio, a falar da vossa temeridade em Villeneuve-Saint-André! Parece, portanto, que o conde de Selongey, depois de ter fugido do castelo de Pierre-Scize, encontrou asilo no convento do Val-de-Bénédiction?

Sim, Sire. Mortimer deve ter-vo-lo dito!

De facto. Terá ele aproveitado uma peregrinação para escapar aos monges? O que prova, quanto a mim, que ele não perdeu tanto a memória como nós pensamos.

Sire! protestou Fiora, escandalizada. O meu marido, desempenhar um papel desses?

Por que não? Em Villeneuve, que nos pertence, talvez não se sentisse em segurança.

O convento é um lugar de asilo!

Sem dúvida, mas vós sois uma criança e não imaginais quantos lugares de asilo são pouco seguros desde que certos

1 O futuro Ricardo III.


interesses estejam em jogo. O vosso marido é um homem inteligente. Pelo contrário, fico surpreendido por a vossa estadia em Roma vos ter deixado com tanta inocência.

Fiora sentiu-se corar e procurou disfarçar torcendo o pequeno lenço que tirara da manga. O Rei não fazia qualquer alusão ao cardeal della Rovere e parecia ignorar tudo da aventura trágica para que ele a arrastara.

De novo o silêncio, perturbado apenas pelo crepitar do fogo, se estabeleceu entre ambos. Luís XI acariciou a cabeça do seu cão favorito e procurou uma guloseima para um dos épagneuls que, após se ter estirado longamente, se aproximou dele e se deitou a seus pés... Os cães são os melhores, os mais seguros, os mais fiéis amigos que um homem pode ter. Ainda mais um rei suspirou ele. E agora, tendes alguma ideia do sítio para onde poderá ter ido messire de Selongey? Parece que não procurastes muito em redor de Villeneuve!