O escocês não acrescentou que o Rei não lhe perdoaria que sacrificasse dois membros eminentes da sua preciosa cavalariça, mas Fiora sabia-o. Entretanto, tiveram de renunciar à etapa prevista inicialmente em Valence, porque ao penetrarem na cidade encontraram-na embandeirada e o clérigo em regozijo: o cardeal della Rovere fazia a sua entrada pelo norte com toda a sua gente e preparava-se para invadir a localidade. Assim, a despeito de uma fadiga certa, os dois cavaleiros preferiam percorrer mais uma légua para evitar maus encontros: apesar dos seus protestos de inocência, Fiora não conseguia confiar totalmente no sobrinho de Sisto IV. A jovem preferia não o encontrar.

Felizmente para os viajantes, o tempo manteve-se sereno e não lhes opôs qualquer obstáculo. Assim, foi dez dias depois de terem deixado Villeneuve-Saint-André que Fiora viu as torres de Plessis e as ardósias azuis da sua casa acima da frondosidade amarelada das árvores.

Eis-vos em casa, donna Fiora! suspirou Mortimer, desolado por ver terminar tão depressa uma viagem que ele achara tão agradável.

Graças a vós, meu amigo e nunca vos poderei agradecer o suficiente. Só espero que não venhais a ter aborrecimentos.

De facto, a bandeira das flores-de-lis flutuando no castelo real dizia que Luís XI regressara, também ele. Mortimer encolheu os ombros filosoficamente.

Certamente que não, porque o nosso Sire sabia por que razão eu estava longe. De qualquer maneira, esta viagem valeu bem qualquer aborrecimento...

Mal chegou à soleira da sua casa e abraçou com efusão os seus habitantes que acorreram ao seu encontro, Fiora, com o pretexto de se desembaraçar da poeira de que estava coberta, precipitou-se para o seu quarto e, abrindo uma grande arca pintada onde guardava diversas roupas, pôs-se a procurar febrilmente lá dentro.

Mas que procurais vós com essa pressa, meu cordeiro? perguntou Léonarde que, naturalmente, a tinha seguido escoltada por Khatoun com o jovem Philippe nos braços.

A escarcela vermelha de marroquim que eu trazia quando regressei de Florença. Ah! Cá está ela!

Os seus dedos nervosos apalpavam o couro fino e tiraram do interior um raminho de oliveira seco e um pequeno frasco que destapou para sorver o conteúdo antes de o virar com um grito de horror: estava vazio...

Subitamente privada de forças, a jovem caiu sentada nos calcanhares, olhando com desespero para o pequeno objecto que deixara rolar nas lajes:

Que aconteceu? balbuciou ela. Por que é que o frasco não tem nada?

Mas, enfim, que havia lá dentro? perguntou Léonarde, espantada com a palidez da jovem e com os seus olhos marejados de água.

Um... remédio que Demétrios me deu antes de eu partir, caso...

Um remédio? Era um remédio? disse a voz trémula de Khatoun. Oh, meu Deus! E eu que pensei que era veneno!

Desatando aos soluços, a jovem tártara contou que, ao arrumar as roupas da sua patroa, encontrara o frasco que Fiora tinha, talvez, esquecido. Como o odor lhe parecera suspeito, dera a beber algumas gotas a um gato vadio que recolhera. O animal morrera pouco depois e, pensando que Fiora adquirira o líquido num dia sombrio com a ideia de manter junto de si um meio rápido de morrer, ela espalhara o conteúdo nas latrinas da casa...

Eu não suportava a ideia de que quisesses morrer soluçou ela, apertando convulsivamente contra ela a criança, que começou a chorar. O gato morreu... compreendes?

Não tendo, sequer, força para se encolerizar, Fiora, prostrada, olhou para ela sem dizer nada. Aliás, de que serviria zangar-se? A pobre Khatoun, tão dedicada, só agira por afeição... Mas Léonarde, essa, reagiu. Tirando o pequenito dos braços de Khatoun, quase o atirou para os de Péronnelle que acorrera ao barulho e, fechando a porta, segurou Fiora pelos braços para a ajudar a levantar-se e sentar-se no leito:

Eu gostaria muito de compreender! disse ela secamente. Que havia naquele maldito frasco para que vos tivésseis atirado a ele sem sequer tirar as botas?

Fiora ergueu para ela um olhar sem expressão:

Uma coisa que eu devia tomar sem demora, ou sentiria uns certos sintomas. Demétrios insistiu no facto de que não deveria esperar...

Sintomas de quê?

De gravidez. Estou grávida, Léonarde. Grávida de Lourenço! E Philippe pode chegar de um dia para o outro!

Tendes a certeza? murmurou Léonarde espantada, ao mesmo tempo que os soluços de Khatoun, deitada no tapete, redobravam de intensidade

Infelizmente, não há qualquer dúvida. Deve datar do nosso último... encontro, em Julho. Há mais ou menos dois meses.

A jovem contou que, durante a noite passada no Grand Prieur, se levantara para beber um pouco de água. Uma súbita náusea atirara-a para a cama com o coração aos pulos e um suor gelado na fronte. Pensando que fizera demasiadas honras à cozinha de mestre Jacques, não se inquietara e, passado o mal-estar, adormecera. Infelizmente, de madrugada a indisposição regressara, obrigando-a a relembrar as datas do seu ciclo com as quais, para dizer a verdade, pouco se preocupara nos últimos tempos. A verdade aparecera-lhe, então, com uma clareza cegante. Por isso a pressa que, para grande surpresa de Douglas Mortimer, a atirara para a estrada a despeito das incessantes náuseas matinais ao longo do caminho. A sua única esperança residia no frasco oferecido por Demétrios:

Não sei se é preciso lamentar assim tanto o facto de Khatoun ter lançado fora o conteúdo resmungou Léonarde. No fim de contas, o gato morreu.

Não estais a dizer que Demétrios queria envenenar-me? protestou Fiora. Ele tinha-me prevenido: eu ficaria terrivelmente doente durante dois dias, mas, depois, tudo reentraria na ordem...

Foi o que ele disse! Aquele velho feiticeiro pode ter-se enganado e eu acho que mais vale agradecer a Deus. Aliás, nada nos diz que as coisas em questão não entrem na ordem por elas mesmas.

Não vejo como!

A avaliar pelo pouco tempo que durou a vossa ausência, acabastes de fazer quatrocentas léguas a cavalo e a grande velocidade. Se ainda estiverdes grávida é porque essa criança está solidamente instalada. Esperemos alguns dias!

Mas passou-se uma semana e o estado de Fiora não se alterou. A jovem sentia-se mal todas as manhãs e morria de fome durante o resto do dia, ao ponto de Léonarde ter de a vigiar. Se ela engordasse depressa de mais, o seu estado tornar-se-ia visível antes do tempo fixado para o nascimento. Porque, bem entendido, estava fora de questão, para a velha solteirona, recorrer a outras manobras abortivas e ela não estava longe de ver o dedo de Deus no gesto de Khatoun ao entornar o frasco. Como a criança resistira à cavalgada fantástica da sua mãe, resistiria a tudo. Se tentassem desalojá-la, arriscar-se-iam a danificá-lo, talvez a transformá-lo num monstro... O que seria uma pena para uma criança portadora do sangue dos Médícis...

Tenho a certeza acrescentou Léonarde que o pai saberá cuidar dele chegada a hora e lhe assegurará um futuro...

Não é o futuro que me preocupa, é o presente. Não poderei esconder o meu estado durante muito tempo, sobretudo às pessoas daqui. E, voltando ao que me atormenta: que aconteceria se Philippe decidisse, por fim, regressar para junto de mim e me encontrasse cheia como uma jumenta grávida? Talvez não me matasse, mas fugiria de certeza, para sempre.

A questão merecia uma reflexão profunda. Tinham, apenas, que se esconder durante alguns meses, porque, para o parto, Léonarde tinha a solução: os queridos Nardi, Agnelle e Agnolo, não se recusariam, certamente, a acolher Fiora em sua casa no momento crítico, talvez até aceitassem, já que não tinham filhos, ficar com o recém-nascido.

Vamos dizer-lhes, mas só a eles, a verdade acerca do pai da criança, mas aqui e, sobretudo, caso messire Philippe apareça, teremos de encontrar outra solução.

Mas qual?

Deixai-me pensar. Terá que ser uma infelicidade, mais do que uma vergonha...

Khatoun pensou ter a solução.

Com tudo o que sofreste em Itália disse ela a Fiora foi um milagre não teres sido violada cem vezes...

É isso! exclamou Léonarde, triunfante. Durante aquele tumulto em Florença, durante aquela loucura que se apoderou da cidade, tu foste sequestrada por um homem que te cobiçava e te obrigou a sujeitares-te...

Fiora não estava de acordo:

Como se não soubésseis a que velocidade voam as línguas! Eu estive ausente quase um ano e parti de novo há mais de três semanas. Assim que as pessoas souberem que estou grávida, dizem que o filho é de Douglas Mortimer... Não vos esqueçais que foi na sua companhia que eu vim de Itália e eu tenho-lhe muita amizade para o deixar suportar o peso dessa acusação. Philippe desafiá-lo-ia imediatamente para um combate... e a sua morte, ou a do meu marido, ficariam na minha consciência.

Nesse caso, que propondes? perguntou Léonarde, desencorajada.

Partir antes do Inverno, ir para Paris com o pretexto de velar pelos meus interesses e tomar lá certas decisões com Agnolo Nardi. Uma vez em Paris, posso ficar doente. Os Invernos, lá, são duros...

E se messire Philippe chega?

Bem... dir-lhe-ão onde estou e seja o que Deus quiser. Entretanto, gostaria que alguém me fosse lá prevenir rapidamente. Florent, por exemplo, se aproveitou bem as lições do seu professor escocês...

Oh, muito bem exclamou Khatoun, visivelmente fascinada ele monta como um verdadeiro cavaleiro. Mas as pessoas daqui não vão achar estranha essa nova viagem? Para uma mulher que esteve tanto tempo fora...

Ainda acharão mais estranho se me virem inchar a barriga. Fico aqui um mês e depois vou para Paris. Tendes alguma coisa a acrescentar?