Demorando apenas o tempo para tirar as botas e a túnica de veludo, Fiora estendeu-se no leito de delicados lençóis azuis, que cheiravam a resina de pinheiro e alfazema. A jovem adormeceu como uma pedra.

Fiora dormiu uma boa parte do dia e a tarde já caía, azul e malva, quando se juntou a Mortimer na grande sala abobadada onde se elaboravam os mistérios da cozinha. Sentado perto da vasta chaminé branca onde estava a assar um quarto de carneiro, este bebia vinho branco, ao mesmo tempo que devorava um grande bocado de pão recheado de cebolas, de azeitonas pretas, de pimenta e de anchovas que, visivelmente, deixava escorrer azeite. No outro extremo da mesa de carvalho, longa e estreita, mestre Jacques batia ovos sob uma espécie de coroa grosseira feita de um pedaço de tonel no qual estavam pendurados cachos de uvas do ano anterior, salsichas igualmente quase tão secas e grandes cebolas arroxeadas.

Então perguntou ela sentando-se junto dele soubestes alguma coisa?

Nada! Penso que messire Philippe deve ter partido com os peregrinos e, nesse caso, como distingui-lo dos outros? Enquanto dormíeis, passeei pela cidade, fui conversar com os soldados do torreão e fiz algumas perguntas. Todos sabiam, evidentemente, da história do homem recolhido pelos monges, mas, felizmente, nenhum imaginou que ele pudesse ter vindo de Lyon. De qualquer maneira, ninguém o viu e, portanto, não o podiam reconhecer quando ele partiu. Tomai, provai isto!

Não, obrigada. É repugnante!

Por causa do azeite? Mas, é delicioso!

O escocês cortou um bocado e estendeu-lho. Ao ver aquilo, mestre Jacques largou os seus ovos, pegou num grande guardanapo branco e colocou-o, com um sorriso encorajador, em redor do pescoço da jovem.

Assim é melhor! disse ele.

Era, com efeito, um festim e Fiora, descobrindo, uma vez mais, que estava esfomeada, voltou a pedir daquele ”pain bagna?. A jovem ouviu responder que a hora do jantar não estava muito afastada e que era preciso guardar um pouco de fome. Para se vingar, bebeu um bom terço do pichel de Mortimer sem, no entanto, perder de vista o pensamento que a ocupava.

E agora, que vamos fazer? Tendes alguma ideia?

Acho que devemos ficar aqui três ou quatro dias para bater um pouco os arredores. A menos que tenha tido a ideia de ir até Compostela, o nosso amigo deve ter-se separado dos peregrinos. Talvez alguém o tenha visto, o que nos daria, pelo menos, uma direcção a seguir.

Fiora tinha de confessar a si própria que não conhecia Philippe o suficiente para adivinhar as suas reacções e o seu estado de espírito no momento em que fugira do convento. Que tivesse falado dela durante o seu delírio era reconfortante, mas teria suficientes saudades dela para renegar as suas convicções, a sua intransigente fidelidade à causa de Borgonha e para ir, enfim, para aquela Touraine onde ela exigira que ele a fosse buscar?

NT Região e antiga província de França cuja capital era Tours.


Vendo o rosto da sua companheira entristecer-se, Mortimer pousou-lhe num braço uma mão amiga:

Tentai não vos atormentar! Concedei a vós própria um pouco de repouso! O principal está adquirido, já que sabemos que ele está vivo!

Tendes a certeza? Que pode ele fazer sozinho, sem armas e sem dinheiro? Se quiser sair de França, não tem nenhum meio de pagar uma passagem de barco e imaginá-lo errante, só e miserável ao longo dos caminhos, é um pensamento cruel...

Ele não é nenhuma mulher frágil. O que consegui saber parece-me tranquilizador: um homem daquela têmpera não se deixa morrer de miséria a um canto da floresta. Estou certo de que o reencontrareis um dia. Vamos fazer o que vos disse e, no regresso, poderemos pedir a ajuda do Rei. Ele é suficientemente poderoso para o encontrar não importa onde.

Na condição de ele se deixar apanhar. Diante de um soldado qualquer ou outro servidor do Rei, ele fugirá, ou bater-se-á. Como poderá ele pensar que Luís XI não lhe quer mal?

Veremos isso em devido tempo! Por agora, pensai um pouco em vós!

O serão foi maravilhoso. Extraordinariamente, havia poucos viajantes naquela noite e mestre Jacques apareceu para conversar um pouco com eles, enquanto a dama Françoise tentava convencer uma dama espanhola que pretendia requisitar a totalidade da hospedaria para seu único serviço, não se mostrava contente com nada e discutia todos os preços com uma grosseria de velho usurário. Os seus guinchos deviam ouvir-se até na ponte de Avinhão.

Não devíeis ajudar a vossa mulher? perguntou Mortimer, rindo. Uma mulher tão amável quase a chegar a vias de facto com uma malvada daquelas!

Ela desembaraça-se muito melhor sem mim. Se eu me metesse, atirava aquela megera porta fora. Françoise tem o estofo de um velho diplomata e, neste momento, os tempos estão um pouco difíceis...

De facto, a guerra entre o Papa e Florença repercutia-se lastima velmente na vida de Avinhão. A maior parte dos bancos e casas dos grandes comerciantes de panos era constituída por sucursais florentinas. Apenas a dos Pazzi fora convidada a ficar: as outras tinham deixado a cidade para evitar prejuízos maiores, já que o cardeal della Rovere tinha fama de ter uma mão pesada. Os representantes dos Médicis, esses, tinham sido expulsos sem mais nem menos com a proibição de voltar a pôr os pés na cidade papal. Naturalmente, os seus bens tinham sido confiscados e tinham conseguido atravessar a ponte a tempo de escapar às flechas dos arqueiros.

Felizmente disse Jacques encontraram asilo aqui. O governo aloja-os numa das livrées abandonadas, esperando ali o fim dos combates.

Como é possível disse Fiora erguendo a cabeça para o céu que esta guerra estúpida e criminosa se faça sentir até nesta região tão doce? Florença é longe, Roma mais ainda e no entanto...

A noite meridional, com efeito, envolvia o jardim, onde os pinheiros e os ciprestes tentavam, em vão, entristecer o céu. O ar nocturno era de uma pureza de cristal e até o pio sereno de uma coruja tinha um tom amigável. Tendo a dama espanhola consentido em calar-se, mestre Jacques desejou boas-noites aos seus clientes e juntou-se, a correr, à sua mulher. Fiora e o escocês regressaram em passo lento à hospedaria e, muito naturalmente, para a guiar no caminho obscuro, Mortimer tomou o braço da jovem. Ousava, pela primeira vez, esse gesto e ela não o impediu. Era bom sentir junto de si aquela força tranquila que ela sabia poder transformar-se, contra um inimigo, numa espécie de furor sagrado.

Estais bem? perguntou ele com a voz mudada.

Muito bem. A noite está tão bonita! Vai ser delicioso ficar aqui uns dias...

Podereis, assim, visitar os vossos compatriotas, porque eles estão na cidade.

Não tenho nenhuma vontade de os encontrar. Eu ignorava, até, tudo acerca das sucursais de Avinhão. Além disso, quero esquecer Florença para me virar para França. É aqui que está o meu filho, é aqui que está o meu marido, pelo menos assim espero, portanto é aqui que está a minha vida...

Ela só deseja proteger-vos murmurou Mortimer.

Segurando na mão da sua companheira, ele pousou nela, por um curto instante, os lábios, antes de correr a fechar-se no seu quarto. Aquela retirada pareceu-se de tal modo com uma fuga que Fiora desatou a rir silenciosamente. O rude sargento la Bourrasque ter-se-ia tornado sentimental? Os responsáveis eram, sem dúvida, o encanto daquela casa, a beleza daquela noite... e, talvez, aquele vinho branco de Châteauneuf que mestre Jacques lhes dera a beber.

Tendo dormido durante uma parte do dia, Fiora não tinha sono e ficou uns momentos encostada à balaustrada da galeria que corria ao longo dos quartos, gozando durante mais algum tempo a feitiçaria daquela noite que transformava os cabos de guerra em apaixonados e que fazia subir até ela os perfumes daquela terra tão doce.

Mortimer, por sua vez, adormecera numa euforia total. Sentia-se feliz por ter regressado àquela cidade e, decidido a prosseguir algumas buscas, antecipava alegremente as horas que estavam para vir. Aqueles dias no Grand Prieur junto de donna Fiora seriam o mais belo presente que o céu lhe poderia dar..

Assim, ficou dolorosamente surpreendido quando, na manhã seguinte, a dita Fiora, branca como a cal, foi abaná-lo para lhe dizer que se preparasse para partir. A jovem tinha de regressar a la Rabaudière sem perder um minuto e recusou dar mais explicações. Que se teria passado? Foi-lhe impossível saber e não ousou fazer qualquer pergunta quando, um momento mais tarde, ajudou a jovem a subir para a sela. O seu rosto fechado, os seus olhos duros e a boca cerrada desencorajavam a mais simples conversação. E o infeliz perguntou a si próprio se teria sido o seu gesto da véspera, talvez um tudo nada afectuoso, a desencadear aquele humor negro.

Incapaz de suportar uma ideia que lhe retirava toda a presença de espírito, o escocês aproveitou a paragem da noite para se atirar de cabeça:

Por amor de Deus, donna Fiora, dizei-me se sou o culpado do que se passa convosco! Eu não queria que levásseis a mal a minha... atitude de ontem...

Apesar da angústia evidente que sentia, Fiora conseguiu sorrir:

Sobretudo, não vos atormenteis, amigo Mortimer! Vós não tendes nada a ver com a minha decisão de regressar o mais rapidamente possível e peço-vos perdão se vos fiz acreditar que me tínheis ofendido. Tenho-vos muita amizade para deixar que subsista entre nós a mais pequena dúvida e é em nome dessa amizade que vos peço que me leveis para minha casa o mais depressa possível.

Nós temos andado depressa. Creio difícil fazer melhor, a menos que matemos os cavalos, ao que me recuso. Aliás, não avançaríamos mais depressa, porque os que encontrássemos não seriam, sequer, tão bons como estes.