Porquê? Não é vergonha nenhuma amar as flores!

Era, também, o que eu pensava, mas quando ele ficou curado... enfim, quase... disse-me que as flores não lhe lembravam nada. Porém, no auge da febre, ele repetia sempre a mesma palavra, parecida com ”flor”, mal pronunciada, claro, e com o sotaque dele. Soava qualquer coisa como ”fior...fioure...”.

Mortimer agarrou no enfermeiro pelos ombros:

Fiora?

Seguiu-se um curto silêncio e cada um dos participantes da cena reteve, por instinto, a respiração. E, subitamente, o pequeno monge sorriu:

Sim... sim, creio que era isso! Agora que a dissestes, creio que a palavra era ”fiora”. Isso quer dizer o quê? É um nome de flor, não é?

Sobretudo, é o nome da mulher dele. Obrigado, meu irmão! Prestastes-nos um grande serviço e nós estamos-vos muito reconhecidos.

Fiora estava incapaz de articular a menor palavra. Vencida pela fadiga e pela emoção, soluçava perdidamente com a cabeça entre as mãos, tendo esquecido tudo o que a rodeava. Só quando sentiu uma mão no ombro é que ergueu o rosto desfigurado pelas lágrimas e reencontrou o olhar azul que tanto a impressionara. Dessa vez, aquele olhar azul estava cheio de compaixão:

Deus tomou conta dele. E continuará a velar por ele, tenho a certeza. Não choreis mais, minha filha!

Sabíeis?

Digamos que adivinhei no momento em que dobrastes o joelho diante de mim. Acrescento que vos perdoo essa... mascarada. Ela foi-vos ditada pelo vosso grande desejo de saber rapidamente um pouco mais sobre o nosso evadido. Mas, evidentemente, deveis abandonar esta casa imediatamente, antes que outro, que não eu, descubra o vosso embuste. Espero que encontreis depressa o conde de Selongey.

Obrigada! Oh, obrigada!

Deixando-se cair por terra, a jovem pegou na mão do monge para a beijar, mas só pôde aflorá-la, porque ele retirou-a suavemente.

E agora ide e que Deus vos tenha na Sua santa guarda! Pedir-Lhe-ei que abençoe a vossa busca, assim como vos abençoo...

O gesto fez curvar também Mortimer, que se encontrava ao lado de Fiora. O abade bateu palmas para chamar o irmão converso para que reconduzisse os visitantes à hospedaria. Antes de sair, Fiora perguntou:

Gostaria de contribuir com uma esmola para esta casa, em agradecimento pelos cuidados recebidos. Vossa Reverência aceitaria...

Obrigado pela vossa intenção, mas a mim, não. Dai a esmola ao nosso hospital, para que possa suavizar os sofrimentos dos pobres doentes.

Um momento mais tarde, Mortimer e Fiora abandonavam o convento e viam-se de novo na grande rua que atravessava a cidade de um lado ao outro.

E agora, que fazemos? perguntou o escocês. Não quereis partir imediatamente, imagino?

Não. Preciso de um pouco de repouso... e creio que precisamos de falar, de tentar imaginar para onde foi Philippe depois de deixar esta cidade...

Para o repouso do corpo e a clareza das ideias, não há nada melhor do que um bom albergue! Segui-me!

CAPÍTULO VII

UMA SITUAÇÃO DIFÍCIL

Villeneuve-Saint-André não era uma cidade como as outras e Fiora pôde aperceber-se disso ao percorrer, ao lado de Mortimer, a longa rua que só entrevira na véspera, já que o convento se encontrava junto das muralhas. Magníficos palácios, rodeados de jardins, ladeavam-na, alguns em perfeito estado e outros ameaçando ruína.

São as livrées dos antigos cardeais da corte pontifícia que ocupou Avinhão até ao começo deste século explicou Mortimer. As casas de campo deles, por assim dizer.

Livrées. Que nome esquisito! Em Florença chamamos-lhes villas...

O nome deve-se disse o escocês que, decididamente, sabia muitas coisas a que cada um dos seus proprietários foi obrigado a livrer a sua casa aos príncipes do Sacro Colégio. Por dinheiro sonante, claro, mas o nome ficou...

Algumas daquelas moradias tinham a severidade dos palácios romanos com qualquer coisa mais. Bastava uma janela com pequenas colunas, uma grande ”amêndoa” de pedra decorada com vitrais coloridos, uma roseira obstinada em suavizar as chagas de uma fachada leprosa, uma moita de mirto, uma vinha exuberante ou uma acácia perfumada, para que tudo fosse de uma amabilidade sorridente. As laranjeiras e os limoeiros transbordavam dos jardins tratados ou não e as grandes pedras de armas que dominavam cada portal conservavam vestígios das

NT: Postas à disposição.


cores ou do ouro que as iluminavam em tempos. Por fim, cobrindo tudo o que não era telhado em forma de terraço engrinaldado de jasmim ou de hera pequena, as telhas cor-de-rosa romanas, arredondadas e quase carnais, viravam para o céu azul-brilhante as suas formas curvilíneas.

Era dia de mercado. Na pequena praça sombreada de plátanos cujas largas folhas, de um verde cambiante, emprestavam a sua frescura, algumas camponesas, de coifas leves na cabeça, sentavam-se, direitas e orgulhosas como estátuas gregas, no meio de cestos rasos onde pipilavam aves de capoeira e cabazes onde, juntamente com grossas azeitonas suculentas, se viam todas as riquezas do campo e do jardim. Agrupados sob-as árvores, pequenos burros desaparelhados aguardavam placidamente que fossem horas de regressar a casa. Vozes alegres trocavam brincadeiras e, algures, esvoaçava uma canção apoiada por um sopro de flauta...

Presa de uma súbita fome canina, Fiora comprou um queijo de cabra que lhe ofereciam sobre uma bela folha de videira e um grande cacho de uvas douradas, que partilhou generosamente com Mortimer.

Tendes medo que não vos alimentem no albergue? perguntou ele, rindo. Se a cozinha continuar como era aquando da minha última visita, não tereis razão de queixa...

Não sei porquê, mas morro de fome. Já agora, o que é que um escocês vinha aqui fazer?

Oh, nada de extraordinário disse Mortimer voluntariamente evasivo. Uma pequena missão de que o Rei me encarregou. Fiquei aqui um mês, mas não foi a coisa mais desagradável da minha vida.

Fiora não procurou saber mais. Bruscamente, devido à magia daquela terra provençal que em muitas coisas lhe fazia lembrar a sua região florentina, a esgotante corrida em busca de uma sombra acabava de ganhar as cores delicadas de umas férias, de uma viagem de descoberta, em que o tempo se esquece para grande prazer dos olhos e do olfacto. As horas cruéis tinham-se apagado perante uma certeza: Philippe estava vivo. Fiora, a partir daí, podia conceder a si própria o direito de respirar um pouco...

Ao abrigo da colegiada de Nossa Senhora, cuja torre quadrada e coruchéus pareciam proteger a pequena cidade como uma galinha os seus pintos, o albergue Grand Prieur abria para a praça do capítulo as suas salas frescas que cheiravam a verbena e ervas aromáticas. Atrás, um jardim abundante de loendros, laranjeiras, mirto, ciprestes, pinheiros, roseiras, jasmim e muitas outras plantas juntava-se ao do priorado pertencente aos abades de Saint-André. Ali, estendiam-se, sobre a colina de Montaut, os vestígios do antigo palácio do cardeal Pierre Bertrand, bispo de Autun e fundador, em Paris, do colégio do mesmo nome. Aquele conjunto formava um daqueles lugares privilegiados onde a beleza da natureza realçava o encanto do trabalho dos homens e onde todas as coisas se juntavam para o contentamento dos olhos e a paz de espírito.

No tempo em que, no seu palácio, o cardeal Bertrand se comprazia em receber os grandes deste mundo, a hospedaria acolhia os senhores dos seus séquitos e socorria as cozinhas por vezes defeituosas dos príncipes da Igreja seus vizinhos. Por outro lado, as gentes de Avinhão transpunham de boa vontade a ponte de Saint-Bénézet para desfrutar de uns momentos de frescura sob as sombras do jardim e, sobretudo, para saborear as maravilhas de uma cozinha célebre num raio de vinte léguas.

A partida da corte papal poderia ter dado um golpe fatal no Grand Prieur, mas isso não aconteceu. Chegara o tempo dos núncios e Avinhão herdou da era dos pontífices uma população cosmopolita, que dela fez um grande local de negócios onde bancos e casas de comércio possuíam escritórios, quando Marselha ainda não tinha nada disso. De facto, sendo Avinhão a principal ligação entre o mar e os grandes mercados de Lyon e Genebra, Villeneuve, apesar de pertencer ao Rei de França, continuou a beneficiar de uma situação excepcional e o Grand Prieur não perdeu nada da sua fama. Bem pelo contrário, porque os seus proprietários, mestre Jacques e a sua mulher Françoise, possuíam, ao mais alto grau, a difícil arte de acolher cada hóspede, viesse ele de onde viesse e da maneira que mais lhe convinha. O sorriso da dama Françoise teria desarmado uma

Dom Abade,


viúva e feito rir de contentamento um anacoreta antes de deixar ao seu marido o cuidado de o fazer mergulhar, até à condenação final, no saboroso pecado da gula.

Tendo recuperado uma parte do que fora a sumptuosa livrée do cardeal Arnaud de Via, sobrinho do Papa João XXII e construtor da colegial vizinha onde repousava, a casa não era muito grande, mas possuía todo o refinamento do palácio ao lado, pelo menos a austeridade, além de uma certa arte de viver que cheirava bem ao sol da Provença. Ao entrar nela, Fiora teve a impressão de que uma mão invisível lhe tirava dos ombros o peso da fadiga e da angústia que os oprimia há semanas e enquanto Mortimer, de olhar incendiado pela recordação das delícias passadas, parava na cozinha, ela deixou-se conduzir até um quarto cujas lajes eram de argila cor-de-rosa, cujas paredes brancas valorizavam os móveis bem encerados e onde um grande ramo de flores multicor estava disposto diante de uma pequena estátua da Virgem. A canção alegre de uma fonte entrava pela janela aberta para o jardim...