E se for mesmo Philippe? Se ele me reconhecer?
Confessar-nos-emos e pediremos humildemente perdão. O único risco será imporem-nos como penitência a peregrinação a Compostela...
Apesar da sua extrema fadiga, Fiora, felizmente alojada sozinha numa cela da hospedaria esta estava longe de estar cheia não conseguiu conciliar o sono. A calma era profunda, no entanto e a noite, que entrava pela estreita janela, parecia feita de veludo azul-escuro sarapintada de prata, mas o espírito inquieto de Fiora impossibilitava-a de encontrar o menor repouso. A jovem permaneceu horas estendida, de ouvido à espreita, espiando os menores ruídos do campo e do convento, contando as horas à medida que lhe chegava o eco longínquo dos ofícios nocturnos. O pensamento de que Philippe podia, talvez, estar ali, a alguns passos dela, num daqueles numerosos edifícios silenciosos, fazia-lhe ferver o sangue e achar que a noite nunca mais terminava... Além disso, estava calor no seu quarto. A hospedaria estava perto da cozinha e da padaria, o calor das fogueiras destas, mesmo adormecidas, penetrava na espessura das paredes e Fiora lamentava ter aceitado passar a noite no convento. Teria sido mil vezes preferível dormir ao ar livre, sob uma árvore ou ao abrigo de um rochedo, em vez de naquela caixa sufocante, mas a jovem esperava que o Dom Abade os tivesse recebido naquela mesma noite...
Quando Mortimer apareceu para a acordar, ela acabava, de cair, finalmente, num sono pesado e ao ver as suas pálpebras inchadas e as faces pálidas devido à longa vigília, ele mostrou-se muito descontente.
Não tenho a culpa se não consegui adormecer! ripostou ela com mau humor.
Eu não estou zangado convosco, estou zangado comigo próprio. Devia ter-vos deixado num albergue qualquer e vir dormir aqui sozinho. Vou mandar que vos tragam água fresca para vos lavardes. Depois, ide ter comigo à sala para restaurardes as vossas forças. Tendes tempo! O reverendíssimo abade receber-nos-á depois da missa.
Uma hora mais tarde, Fiora, bem lavada, penteada, sem nenhum cabelo a sair do capelo, seguia na companhia do escocês o irmão converso encarregue de os conduzir à residência do abade, que dava para a pequena praça da igreja. Enquanto caminhava, a jovem olhava à sua volta, espiando cada silhueta, mas nenhuma se parecia com a que ela esperava.
Colocando um joelho em terra diante do dignitário supremo do convento, Fiora reencontrou a impressão penosa sentida quando Mortimer decidira que ela conservaria o seu disfarce. O abade não era um homem imponente, mas, com o seu hábito branco atado com uma corda, o seu crânio tonsurado onde os cabelos cinzentos só formavam uma estreita coroa evocando a auréola e o rosto magro e tisnado que parecia ter sido talhado no tronco de uma oliveira, parecia-se com um daqueles santos cujas estátuas rígidas povoam as igrejas e as capelas. Sobretudo, saída da sombra das sobrancelhas, a chama dupla de um olhar azul que parecia trespassar até à alma quase fez perder o porte à jovem.
Incapaz de articular uma palavra, Fiora aceitou o tamborete que lhe designaram e deixou que Mortimer explicasse o que os levava ali. Quando o escocês terminou, o abade deixou o silêncio invadir a pequena sala austera onde os recebia e o olhar azul voltou a pousar-se em Fiora, que não conseguiu evitar que as suas faces se enrubescessem. Uma angústia provocava-lhe um nó na garganta e as lágrimas subiram-lhe aos olhos, porque, como acabara de ser contada pelo escocês, aquela história de salvamento e de um homem privado de memória parecia-lhe, agora, absurda.
Trata-se, sem dúvida, de uma... lenda disse ela com uma voz rouca que ia bem com a sua personagem uma história que as pessoas de bem gostam de... espalhar?
Acreditas assim tão pouco na palavra de monsenhor della Rovere, meu filho? Ele só disse a verdade...
A verdade?
Sim. No ano passado, durante as vigílias de Natal, os nossos irmãos pescadores, de facto, trouxeram para aqui um homem que encontraram num barco encalhado nos caniços. Esse homem, devorado pela febre, parecia chegado ao último grau da resistência humana... Nós conseguimos fazer com que regressasse à vida com muito esforço, mas quando ele recuperou a consciência, constatámos que o seu espírito não conservava nada do passado... As provações sofridas tinham, talvez, ultrapassado o limite das suas forças...
Perdoai-me, Reverência disse Mortimer com respeito ele não fala?
Sim, mas muito pouco. Apenas algumas palavras e, quando o interrogámos, ele não nos respondeu nada...
Nós... nós podemos vê-lo? pediu timidamente Fiora, incapaz de resistir por mais tempo. O olhar azul regressou ao seu rosto e ela pensou ver nele uma espécie de compaixão.
Não. É impossível.
Ele está... morto?
Não. Partiu.
Partiu? Quando? Como?
A mão de Mortimer pousou-se no seu braço e apertou-o, para incitar a jovem a ter mais prudência, mas a voz do abade, profunda e suave, não mostrou qualquer impaciência perante aquela falta de conveniência.
No último mês de Maio, por ocasião da festa das Rogações, as grandes ladainhas públicas tradicionais atraíram a esta cidade mais gente do que o costume. No começo da Primavera, o rio tinha inundado uma parte de Villeneuve e as terras em redor e tratava-se de pedir a Deus, mais instantaneamente do que nunca, que protegesse as colheitas que se aproximavam. Ao mesmo tempo, numerosos peregrinos a caminho da Galiza transpuseram a nossa porta de Saint-Bénézet e a hospedaria
1 Rogações vem do latim rogare (pedir). Essa festa desenrolava-se durante os três dias que precediam a Ascensão.
desta casa, tal como a dos nossos irmãos beneditinos de Saint-André, na cidadela, viram-se superlotadas. Aquilo foi como que uma vaga e quando ela se retirou, aquele que, à falta de um nome, nós chamávamos de irmão Inocente, tinha desaparecido com ela... Não sabemos o que lhe aconteceu.
Partiu!
A dor no rosto de Fiora era tal que o abade, inclinando-se para ela, tocou-lhe na mão com a ponta dos dedos.
Não deixeis que o desgosto vos invada! No fim de contas, nada nos diz que esse infeliz é aquele que procurais!
Vossa Reverência consente em no-lo descrever? perguntou Mortimer para acudir à sua amiga.
Nós ligamos pouco ao aspecto físico dos homens, meu filho. Que posso eu dizer-vos? Ele era grande, de cabelos castanhos e teria, talvez, trinta e cinco anos. Nós pensámos que ele devia ter sido soldado, porque o seu corpo tinha várias cicatrizes, pelo que me disseram. Mas eu posso mandar buscar o irmão enfermeiro. Talvez ele vos diga mais qualquer coisa!
Tal como os outros irmãos conversos, o enfermeiro não era obrigado à regra do silêncio que era a dos Capuchos e o homem teria sido capaz, à sua conta, de falar pelo convento inteiro. Além disso, parecia ter votado uma espécie de amizade pelo desconhecido. Se o temor respeitoso que o abade lhe inspirava não o tivesse impedido, ter-se-ia lançado, acerca do ”irmão Inocente”, em considerações sem fim, às quais o seu sotaque cantante conferia um sabor inesperado, mas que arruinava um pouco a personagem. Para ele, o desconhecido era um bom rapaz ao qual ele reprovava, sobretudo, o mutismo, mas foi incapaz de dizer de que cor eram os seus olhos.
Ele tinha-os sempre meio fechados explicou ele. Creio que o Sol lhos deve ter queimado quando ele estava no barco, porque estavam todos vermelhos quando ele chegou aqui. Que posso eu dizer-vos mais? Ele não falava como toda a gente e, durante o período de grande febre, eu não compreendia nada do que ele murmurava...
Sua Reverência acaba de nos dizer que ele tinha vestígios de ferimentos? disse o escocês.
Cicatrizes? Tinha, pois! Por todo o corpo! Eu nunca tinha visto tantas! Ao ponto de não poder dizer onde!
A esperança, por um instante regressada, diminuiu de novo no coração de Fiora. Sim, Philippe fora ferido várias vezes em diversos combates, mas não ao ponto de estar coberto de marcas como pretendia aquele bravo mongezinho que, na verdade, parecia ainda mais inocente do que o seu protegido. Encorajado pelo silêncio do abade, lançou-se em novas descrições que acabaram por acabrunhar a jovem: o homem era muito piedoso, mais tímido ainda e muito entendido nos trabalhos do campo. Era também...
Chega, meu irmão! cortou o superior. Creio que os vossos propósitos não interessam muito aos nossos hóspedes. Uma tal atitude não corresponde muito ao que procurais, pois não?
É verdade admitiu Fiora, atravessada, então, por uma ideia digna de uma filha de Florença, onde se encontrava, ao menor acontecimento, um pintor ou um escultor desenhando com traço rápido. Mas, não haverá aqui nenhum monge capaz de fazer um desenho de memória, bem entendido, um retrato?
Os nossos irmãos conversos são incapazes disso. Só, talvez, o nosso irmão iluminista, mas ele nunca viu o nosso hóspede, que não podia transpor a clausura.
Só restava a Fiora e a Mortimer agradecerem aos religiosos e despedirem-se. A jovem retinha, a custo, as lágrimas, tal era a esperança que depositava no incidente do homem do barco. Como se o rio terrível que era o Ródano tivesse podido transportar um barco tão frágil durante uma distância tão grande sem o virar!
Iam os dois transpor a porta quando o pequeno irmão enfermeiro, que parecia muito infeliz, ergueu um dedo tímido para pedir permissão para acrescentar mais qualquer coisa:
O que é? disse o abade um pouco irritado. Parece-me que já falastes o suficiente, meu irmão...
O interpelado ficou muito vermelho e, baixando a cabeça, dirigiu-se para a porta.
Dizei! disse Mortimer, condoído. Tendes permissão!
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Oh! Espantar-me-ia muito se vos interessasse, mas... aquele homem devia amar as flores. No entanto, nunca o confessou.
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