O escocês deixou a casa pouco depois. Fiora parecia desinteressada da sua presença, mas quando, à porta, ele a saudou, ela ofereceu-lhe um sorriso tão quente que dissipou o ligeiro mal-estar que se apoderara dele perante a atitude da sua anfitriã.

Ides juntar-vos ao Rei? perguntou ela.

Não. Ele regressa dentro de um mês. Aproxima-se o Inverno e eu vou levar, no castelo, uma existência tranquila de guarnição, que me permitirá visitar-vos mais vezes. Se desejardes caçar, o Rei não vê nisso nenhum inconveniente...

Caçar? Oh não! Desde que matei um homem com as minhas mãos que não suporto a ideia de matar.

Que hipocrisia! disse Léonarde. Nunca vos vi recusar os pratos de coelho, ou as perdizes de Péronnelle. É preciso matar caça para isso!

Sem dúvida, mas não eu. O sangue faz-me horror. Já vi demasiado...

Partido Mortimer, Fiora felicitou Péronnelle por aquela refeição tão conseguida e subiu rapidamente para o seu quarto após ter pedido a Léonarde que lhe fosse buscar Florent.

A esta hora? protestou ela. Que lhe quereis?

Preciso de falar com ele. Sede gentil: ide buscá-lo. Com o olhar cheio de suspeita, Léonarde desapareceu tão depressa quanto lhe permitiam as suas pernas. Quando regressou e entrou, seguida do jovem, no quarto de Fiora, compreendeu que não se enganara sobre as suas intenções. Sob o olhar de Khatoun que, deslumbrada, a ajudava com mãos moles, a jovem metia algumas roupas e objectos de primeira necessidade em sacolas de viagem. Sobre uma mesa, ao lado da pequena caixa onde guardava as jóias e o dinheiro, uma bolsa bem cheia mostrava quais eram as disposições de Fiora.

Eu sabia! exclamou Léonarde, indignada. Ides partir de novo!

Fiora virou-se para ela e envolveu-a num olhar tão sério que a pobre mulher sentiu que não conseguiria nada e que o ”seu cordeiro” estava firmemente decidido.

Sim. Vou partir. E desta vez a cavalo, para ir mais depressa.

Quereis ir ter com o cardeal? Mas isso é uma loucura! Ainda não tendes a vossa conta de emboscadas?

Eu não vou ter com ele. Tenho intenção de o alcançar, sem dúvida, mas também de o ultrapassar sem me mostrar. Não confio inteiramente nele...

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


E a parte em que confiais é por causa de Villeneuve-Saint-André? Mas, por que quereis ir lá, quando vos basta escrever?

O abade, pode, de facto, confirmar o relato do cardeal, mas não me pode descrever o homem que perdeu a memória. Tenho de ir, compreendeis? Florent vai comigo, se quiser, evidentemente...

Se quiser? exclamou o jovem cujo rosto se iluminou como se o Sol acabasse de perfurar a noite, despejando sobre ele os seus raios. Dai as vossas ordens, donna Fiora! Estará tudo pronto de madrugada...

As ordens são simples: dois cavalos robustos, capazes de cobrir longas etapas. Não quereis uma montada para as bagagens?

Não. Não podemos ir atulhados e eu conto ir vestida de homem. E agora ide dormir. Partiremos ao amanhecer.

Fiora não ousava olhar para Léonarde. Como ela não dizia nada, a jovem pensou que a velha solteirona se abandonava ao desgosto, que teria de enfrentar as suas lágrimas, mas quando, por fim, procurou os seus olhos para lhe oferecer alguma consolação, Léonarde, longe de chorar, lançou-lhe um olhar furibundo e abandonou o quarto, batendo com a porta. O bater de uma outra porta, quase imediatamente a seguir, disse a Fiora que a sua companheira entrara no seu quarto. Khatoun quis ir ter com ela para a apaziguar, mas Fiora reteve-a:

Deixa-a amuar, ou mesmo chorar! Amanhã o seu humor estará melhor e, de qualquer maneira, eu estou demasiado cansada para passar a noite a discutir. Acabemos isto e vamos dormir!

Assim fizeram, mas quando à luz da madrugada Fiora, vestida com o traje de pajem que trouxera de Nancy, abriu a porta da cozinha para ali tomar o pequeno-almoço, a primeira coisa que viu foi um par de longas pernas calçadas com botas que ia do chão de pedra ao banco próximo da mesa. Por cima dessas pernas estava uma túnica de couro e, por cima da túnica, o rosto desgostoso de Douglas Mortimer. Léonarde, de pé a alguns passos e com os braços cruzados no peito, esperava para ver o efeito produzido. Florent, com o nariz dentro de uma malga, estava mudo e quedo, mas os seus olhos diziam que teria estrangulado de boa vontade o escocês. No entanto, as primeiras palavras de Fiora foram para Léonarde:

Eu devia ter desconfiado! disse ela. Tínheis que o ir chamar?

Exactamente! Não pensáveis que vos ia deixar ir por esses caminhos com um rapazito como única protecção?

Eu não sou um rapazito! protestou Florent, furioso. E sou muito capaz de defender donna Fiora em qualquer circunstância...

Tenho a certeza, Florent disse a jovem. Foi por isso, caro Mortimer, que não vos informei deste projecto quando a ideia me veio. Léonarde fez mal em vos prevenir, incomodou-vos para nada. Eu quero partir e não conseguireis impedir-me.

Mortimer levantou-se, estirando o seu longo corpo que pareceu subir até às vigas do tecto alegremente ornamentadas com presuntos, tranças de cebolas e raminhos de ervas secas:

Quem falou em impedir? grunhiu ele. Vós sois teimosa como um burro, sei isso há muito tempo. Não, eu vou convosco...

É impossível! Sabeis muito bem que não podeis partir sem a autorização do Rei. Foi por isso que não vos disse nada ontem.

O escocês inclinou-se para fixar a jovem e as suas pálpebras semicerradas deixaram passar apenas um ligeiro brilho que, por ser azul, não pareceu menos tranquilizador:

Obrigado pela vossa solicitude, minha querida senhora, mas esqueceis-vos de uma coisa: ao constatar que íeis fugir sem tambores nem trombetas com o vosso cardeal, eu estava decidido a seguir-vos, mesmo que fosse necessário regressar a Roma...

A Roma? Nunca se pôs a questão e...

... e vós sois capaz de me dizer o que teria impedido della Rovere, uma vez em sua casa, de vos dar uma boa escolta para vos conduzir até ao seu querido tio? Já vos esquecestes do castelo de Saint-Ange?

As coisas mudaram...

Creio bem que sim! Neste momento, Roma está em guerra com Florença. Decididamente, gostais muito do papel de refém... É inútil continuarmos a discutir, ou só Deus sabe quando partiremos. Pegai nas vossas coisas e toca a andar!

Eu estou pronto! exclamou Florent, levantando-se de um salto com um olhar de desafio na direcção do escocês. Este deixou sair um suspiro de cansaço e, apoiando o indicador musculado no ombro do rapaz, obrigou-o a sentar-se de novo no banco:

Tu ficas aqui!

Nem pensar! protestou Fiora. Eu pedi-lhe, ontem à noite, para me acompanhar.

Muito bem, agora pedi-lhe que fique aqui a guardar a casa disse Mortimer sem desarmar. Tendes intenção de viajar rapidamente, não?

É evidente, mas...

Mas eu tenho a impressão que este rapaz não possuiu o estofo de um centauro. Quanto tempo aguentas a galope, rapaz?

Durante algum tempo. Quando vim de Paris andei bem...

Uma viagem de Paris aqui representa umas sessenta léguas. Nós vamos ter de fazer cerca de duzentas. Donna Fiora, eu sei, é capaz de seguir o passo que eu impuser. Tu, estou menos certo e se for preciso atirar-te para a sela quatro vezes por dia ou abandonar-te, extenuado, num albergue, não nos serás de grande ajuda...

Estou a ver! disse Florent, rabugento. Quereis matá-la?

Não, mas ela quer viajar depressa, ela vai viajar depressa. Além disso, eu ser-lhe-ei mais útil, creio eu, porque ninguém conhece melhor os caminhos de França do que eu. Enfim, sempre sou sargento da Guarda Escocesa...

Já sabemos!

Sim, mas o que tu não sabes é que, se Avinhão pertence ao Papa, Villeneuve-Saint-André, no outro lado de uma grande ponte, pertence ao Rei de França desde Filipe, o Belo! Eu posso, caso o núncio de Avinhão nos dê problemas, requerer as tropas do forte.

Furioso e desolado, Florent ia lançar-se na direcção da porta para correr para o campo e chorar nele o seu desgosto quando Mortimer o deteve e o arrastou para junto dos cavalos que esperavam já ajaezados:

Escuta! Tu tens de ficar aqui! Olivier le Daim quer tanto esta casa que pode querer raptar o miúdo. Eu preciso de alguém que vele por ele...

Tendes o Étienne! Ele não é nenhum maneta!

Não, mas não monta tão bem como tu. Em caso de agitação suspeita, será preciso galopar até Plessis. Irás ter com Archie Ayrlie! Ele sabe quem és, podes ir conhecê-lo daqui a pouco. Ele ajudar-te-á sem hesitar. Aliás, vão ficar dois homens a vigiar a casa sem que ninguém dê por isso...

Por que não o dissestes há pouco?

Diante de donna Fiora? Para a afligir? Talvez não aconteça nada, mas eu fico mais tranquilo. Compreendeste?

Florent fez sinal que sim e tomou o seu cavalo pela brida para o conduzir à cavalariça. Mas Mortimer deteve-o de novo:

Monta e vai ter com Archie. Para te tornar as horas vagas mais alegres, ele ensinar-te-á a montar... como um escocês. Como eu não vou estar sempre presente e como donna Fiora é o que é, pode ser que tenha a sua utilidade!

Florent desatou, então, a rir e, içando-se para o cavalo, tomou a trote o caminho do castelo real. Mortimer, com os punhos nas ancas, via-o afastar-se quando Fiora se lhe juntou.

Onde é que ele vai? perguntou ela.

Vai aprender a montar a cavalo! Não é luxo nenhum. Olhai-me para aquilo! Um verdadeiro saco de farinha!

A despeito do que Mortimer afirmara a Florent, nunca Fiora percorrera a tanta velocidade uma tão longa distância e precisou, mais de uma vez, de cerrar os dentes para não se confessar vencida e rogar por misericórdia. Quando pensou discernir no rosto da jovem um certo cansaço, Mortimer utilizou uma maneira muito sua para lhe ressuscitar a coragem: