No entanto, quando, a meio do dia, ela viu aparecer os altos telhados da abadia de Cormery, onde o prior, em hábito de cerimónia e de cruz na mão, esperava o cardeal rodeado de um enxame de beneditinos, a jovem não pôde evitar um suspiro. Parar todas as noites num convento não tinha nada de aflitivo, mas se, por outro lado, era preciso visitar todas as casas religiosas que encontravam, as três semanas arriscavam-se a transformar-se em dois ou três meses. E Léonarde começava a ficar impaciente.

Enquanto, diante do portal da igreja, se trocavam saudações, genuflexões, beija-mãos e outras demonstrações de civismo, ela interrogou o seu cocheiro. Saberia ele onde tencionava o cardeal passar a noite? O homem respondeu que seria em Loches. O trajecto do dia não seria, portanto, de dez léguas e, provavelmente, nem disso se aproximaria, porque a paragem em Cormery arriscava-se a ser longa.

Com efeito, já o Sol desaparecia quando atingiram a floresta de Loches, para lá da qual se erguia a cidade real e o poderoso castelo que inspirava tanto temor justificado aos inimigos do soberano. Para Fiora, aquele nome fazia-a evocar frei Inácio Ortega, que a perseguira com um ódio inexplicável e ali morrera, assim como o escudeiro e amigo de Philippe, Mathieu de Prame que, esse, tivera a sorte de sair dele vivo... Mas, para ir para onde?

Resignada, Fiora dormitava no ninho que preparara entre as almofadas, enquanto, junto de si, Léonarde rezava o terço. O caminho pela floresta era suave e os solavancos não eram muitos. A seguir à viatura os peregrinos cantavam, talvez para darem coragem a si próprios, porque a sombra verde das árvores estava a ficar cinzenta e o matagal parecia ficar mais denso à medida que avançavam. Deixaram de ouvir as aves e a opressão natural, para quem viaja pela floresta ao crepúsculo, envolveu o cortejo.

Subitamente, numa curva do caminho, um solavanco projectou as duas mulheres uma contra a outra, ao mesmo tempo que a liteira ganhava velocidade. No entanto, o caminho era bastante mais rude e as rodas do veículo iam de um trilho ao outro. Arrancada às suas orações, Léonarde espreitou para o exterior:

Que se passa? gritou ela para o cocheiro, mas este não respondeu.

Pelo contrário, o homem chicoteou os cavalos para que eles corressem ainda mais depressa.

Ele vai-nos matar! disse Léonarde mas isso não é o pior. Nós já não estamos no cortejo.

Por sua vez, Fiora também espreitou. De facto, não havia ninguém à frente, nem atrás. Nada, se não um estreito carreiro que corria por entre massas negras de árvores, no qual a carroça corria à desfilada. As duas mulheres olharam uma para a outra aterrorizadas, invadidas pelo mesmo pensamento: tinham-lhes estendido uma armadilha, que estava em vias de se fechar sobre elas...

Com todas as suas forças, Fiora ordenou a Pompeo, em italiano, que parasse, mas o cocheiro respondeu com um grunhido e um novo estalar do chicote. Por um instante, a jovem pensou em abrir a portinhola e atirar-se para o solo, mas a viatura ia demasiado depressa e, de qualquer maneira, Léonarde não poderia imitá-la sem se magoar. Além disso, a floresta de ambos os lados daquele carreiro parecia animar-se. Surgiram umas sombras mais espessas e em breve quatro cavaleiros mascarados rodearam a equipagem que, no entanto, não abrandou o andamento.

Que Deus nos proteja! gemeu Léonarde. Receio que seja o nosso fim.

Fiora não respondeu. Uma violenta cólera preservava-a do medo. Como pudera ser tão estúpida, tão tola, para ter fé nas palavras de um sobrinho de Sisto IV? Como pudera acreditar que ele desejava ajudá-la?

Subitamente, o cocheiro deteve os cavalos com tanta brutalidade que as duas passageiras se viram de rojo no fundo da carroça. Quase ao mesmo tempo, a portinhola abriu-se e umas mãos, sem qualquer suavidade, apoderaram-se de Fiora e de Léonarde e puxaram-nas para fora. Então, elas viram que se encontravam numa clareira vagamente iluminada pela última luz do dia. Nela encontravam-se cinco ou seis homens vestidos de escuro e era impossível distinguir-lhes as feições. Dois de entre eles, apoiados em pás, mantinham-se ao lado de um grande buraco mais comprido do que largo que tinham, sem dúvida, acabado de abrir.

Foi para diante do buraco que arrastaram as duas infelizes e ambas compreenderam de imediato que ele fora aberto em sua intenção. Aquela gente estava ali para as assassinar.

Quem sois vós? Que quereis? exclamou Fiora.

Aquele que parecia o chefe nem se deu ao trabalho de responder. Avançando à luz dançante de um archote que um dos seus companheiros acabava de acender, atirou uma bolsa ao cocheiro que ele apanhou em voo e apontou para o carreiro, quase invisível, à sua direita:

Bom trabalho, amigo! Vai por ali! Apanhas o cortejo antes de Loches...

Pompeo virou os cavalos. A atrelagem desapareceu instantaneamente, engolida pela noite e pelos ramos baixos. O homem esperou que o barulho se apagasse e virou-se para aquelas que iam, sem dúvida, ser as suas vítimas e que eram mantidas imóveis por quatro dos seus companheiros. Fiora debatia-se furiosamente, mas Léonarde, atingida por aquele golpe inesperado, deixara-se cair de joelhos na terra húmida e rezava, não esperando mais nada senão o golpe fatal.

Com um golpe brutal, o chefe arrancou o véu que envolvia a cabeça de Fiora.

Tinha pensado enterrar-vos vivas disse ele mas eu não sou um homem cruel. Primeiro, vamos degolar-vos e este véu, manchado com o vosso sangue, será uma boa prova de que fiz bem o meu trabalho.

Para quem é esse trabalho? lançou Fiora Não me ides dizer que é para o Rei? Acredito, antes, que ele vos fará pagar bem caro quando souber...

Ele não saberá nada. Vós ides desaparecer sem deixar rasto.

Antes de morrer, gostaria, pelo menos, de saber quem me mata! O Papa? É o cardeal que vos paga?

Esse também não sabe mais do que vós. Tudo o que lhe pediram foi que vos trouxesse com ele.

”Pediram”? Quem?

Isso não vos interessa! Devíeis, antes, fazer como a vossa companheira e fazer as pazes com o Céu. Dou-vos um instante para rezardes uma oração.

Um dos bandidos aproximou-se:

E se despachássemos a outra, entretanto?

Boa ideia! Já deve estar pronta. Já rezou o suficiente.

Deixai-me, ao menos, abraçá-la! gritou Fiora, desesperada.

Parece-me inútil. Ides poder abraçá-la quanto quiserdes dentro daquele buraco...

CAPÍTULO VI

NO RASTO DE UMA SOMBRA

Léonarde! uivou Fiora. Perdoai-me! Respondeu-lhe um grito de dor. O homem que se propusera matar a velha solteirona acabava de lhe arrancar a coifa e segurava-a pelos cabelos, puxando-os selvaticamente para a obrigar a erguer a cabeça e desimpedir a garganta que ia cortar. Mas não teve tempo de lhe aproximar a faca da pele. Partida da sombra, uma flecha atravessou-lhe o pescoço e ele desabou sobre Léonarde. Ao mesmo tempo, uns cavaleiros rodeavam a clareira. A luz incerta do archote fez luzir as cotas de malha por baixo das meias couraças e dos capacetes de ferro. Soou uma voz rouca:

Em nome do Rei! Agarrai essa gente e enforcai-a imediatamente naquela grande árvore!

Ficai, pelo menos, com dois, messire grande preboste! Para ouvirmos o que têm a dizer.

Sem esperar pela resposta, Douglas Mortimer saltou do seu cavalo e correu para Fiora que, sem força nas pernas, se deixara cair de joelhos quando os braços que a seguravam a tinham largado. O escocês ergueu-a com uma mão vigorosa sem que ela fizesse nada para o ajudar. Com as pupilas cinzentas extremamente dilatadas, ela olhava para ele com uma espécie de espanto, como se, em vez de um sólido escocês, ele fosse o luminoso representante de uma qualquer corte angelical...

Tudo bem? perguntou ele com sobriedade quando conseguiu que ela se aguentasse nas pernas.

Creio que... sim. Oh, Mortimer! Começo a acreditar que vós sois uma espécie de anjo-da-guarda para mim... mas, que significa isto tudo?

Eu explico-vos, mas, antes, devo dizer-vos que nunca tive tanto medo! Cheguei a pensar que não chegaríamos a tempo...

Em seguida, sem se preocupar mais com ela, virou-se para Léonarde. Esta estava a ser ajudada por um guarda do preboste, que a desembaraçava do corpo que lhe caíra em cima e o atirava directamente para o buraco. Fiora juntou-se a ele de imediato e não pôde conter um grito de horror. Coberta de sangue, a pobre mulher oferecia uma imagem assustadora. Mas, já recomposta das suas emoções, Léonarde sibilava como um gato enraivecido:

Onde é que há água? Eu não posso ficar assim! Este sangue pegajoso...

Ainda bem que não é o vosso observou Mortimer. Vinde, há ali um pequeno regato.

Os guardas tinham acendido uns archotes e a clareira ficou suficientemente iluminada para que todos pudessem apreciar o dramático espectáculo que ali se desenrolava. Os bandidos, despojados, um após outro, das máscaras, foram atirados, de joelhos, para diante daquele a quem o escocês chamara o grande preboste.

Era um homem de idade, de rosto duro, ornamentado com um bigode e uma curta barba branca. Os anos não pareciam ter tirado vigor ao seu corpo magro: este suportava com facilidade o peso da armadura que vestia com excepção do elmo, substituído por um capelo negro onde brilhava uma grande medalha de prata. Como todos os homens demasiado grandes, inclinava-se um pouco sobre o cavalo que manejava, aliás, com destreza. Ao serviço de Luís XI desde a adolescência, quando este ainda não passava de delfim, Tristan l’Hermite, na sua primeira juventude escudeiro do condestável Richemond e depois preboste dos sargentos, encarnava, aos olhos dos súbditos do Rei, a imagem de uma justiça severa, frequentemente expeditiva mas raramente ilegítima, que inspirava nos vagabundos de toda a espécie um temor saudável. Dedicado ao Rei como um cão de caça ao seu dono, aquele homem silencioso e naturalmente taciturno ignorava tanto a fadiga como a piedade e todos os criminosos podiam ter a certeza de que ele os perseguiria até à sua expiação. Do fundo das suas órbitas cavadas, cujas sobrancelhas espessas acentuavam a fundura, pousava nos homens um olhar cinzento tão duro como o granito.