Eu não posso recusar uma sorte destas, querida Léonarde e não estarei ausente muito tempo. Se for mesmo Philippe, trá-lo-ei comigo e farei, depois, a paz dele com o Rei. Oh, monsenhor, não imaginais a alegria que me dais!

O cardeal desatou a rir, o que lhe conferiu uma grande juventude. Parecia tão feliz como a jovem:

Bem, está combinado. Amanhã à noite mando-vos a liteira em questão. Os criados terão ordens para que vos junteis a mim lá para o fim da manhã na basílica de Saint-Martin, onde desejo orar antes de partir. Tendes tempo para fazer os vossos preparativos.

Seguido de Fiora, o prelado dirigiu-se para o jardim onde a sua equipagem o esperava e entregou ao seu secretário a carta que lhe fora dada pela jovem. No momento de a deixar, ele baixou a voz para acrescentar:

Para a minha gente, sereis uma dama peregrina que deseja procurar recolhimento em Compostela, ou em Roma.

Não me queirais mal, monsenhor, por preferir Compostela. Roma não me deixou boas recordações...

Acrescento disse Léonarde, que não abandonara Fiora que Vossa Eminência terá sob a sua guarda duas damas peregrinas. Tenciono, também, fazer as minhas devoções. E espero que não haja qualquer inconveniente!

O seu olhar, cuja cor azul ingénua mantinha toda a frescura, desafiava quem tentasse opor-se ao seu projecto. Mas ninguém pensou nisso. Della Rovere sorriu-lhe e Fiora, pegando-lhe no braço, meteu-o no seu:

Já que vou viajar de liteira, sinto-me feliz por irdes comigo.

Foi mais difícil fazer compreender a Khatoun que não podia ir. A presença de uma asiática no cortejo de um príncipe da Igreja, juntamente com outras mulheres, arriscava-se a dar ao conjunto o ar de um harém, em vez de uma peregrinação.

Eu não fico fora muito tempo disse-lhe Fiora e preciso que alguém vele pelo meu pequeno Philippe...

Com efeito, Marcelline deixara la Rabaudière. O seu leite estava a secar e, por outro lado, o seu marido exigia a sua presença. Partira naquela mesma manhã para a sua aldeia de Savonnières com grandes suspiros e muitas lágrimas, porque trocava uma vida agradável e fácil pela existência dura de uma quinta, mas Fiora soubera consolá-la. A ama regressava mais rica do que partira, levando não apenas as roupas que lhe tinham sido oferecidas durante um ano, mas também roupa branca, provisões, a cruz de ouro que usava orgulhosamente ao pescoço e a bonita quantia que faria dela a camponesa mais rica da aldeia.

Khatoun assistira à sua partida com alívio. Ela e a ama tinham-se detestado desde o primeiro momento e a luta pela posse do bebé fora árdua. Como a natureza decidira a favor da jovem tártara, a originária de Tours decretara que a ”feiticeira amarela” lhe fizera azedar o leite. Acusação que Fiora refutou com todo o vigor.

Se me chegar semelhante disparate aos ouvidos disse ela com severidade saberei de onde veio e não queirais fazer de mim uma inimiga. Khatoun era escrava, sem dúvida, mas nunca foi tratada como tal. Crescemos juntas e ela salvou-me por duas vezes. Portanto, devo-lhe muito e eu nunca esqueço as minhas dívidas. Além disso, gosto muito dela...

Compreendendo que não ganhava nada em ser teimosa, Marcelline jurou, sobre o Livro das Horas aberto na imagem da Crucificação que Léonarde lhe colocou sob a mão sem dizer uma palavra mas com um olhar que não admitia réplica, nunca mais repetir a sua acusação. E separaram-se como as melhores amigas do mundo.

Quando a Senhora Condessa der uma irmã a messire Philippe, espero que me chame! disse Marcelline à guisa de conclusão.

Pensais ter mais filhos? Já tendes três, parece-me?

Sim, mas a minha mãe teve doze e o meu Colas quer ter muitos filhos para o ajudarem no campo.

Khatoun, agora senhora do terreno, acabou por compreender que, ao confiar-lhe o filho a meias com Péronnelle, Fiora dava mostras de confiar nela. A jovem cessou os seus protestos.

Em seguida, foi a vez de Florent. A ideia de ver a sua querida patroa abandonar de novo o seu domínio por um destino longínquo era-lhe insuportável. Sugeriu escoltá-la fazendo as vezes de escudeiro. Dessa vez, foi Léonarde que interveio:

Que faria ela com um escudeiro, quando vai viajar de liteira?

Mas, eu protegê-la-ia de maus encontros!

De maus encontros? Quando vamos na companhia de um núncio papal? Não sonheis, meu amigo! Além disso, se eu também vou é, unicamente, para velar por donna Fiora. E vós sabeis muito bem que, com a chegada das vindimas, Étienne precisa de vós.

Ele passava bem sem mim quando eu não estava cá! resmungou o rapaz. Então, Léonarde ofereceu-lhe o seu sorriso mais sardónico:

Eis o que conseguimos quando nos tornamos indispensáveis! declarou ela alegremente.

Na manhã de terça-feira, 8 de Setembro, dia da Natividade, Fiora e Léonarde deixaram a Casa das Pervincas numa das enormes carroças bem guarnecidas de almofadas, cortinas, colchões e manteletes de couro que permitiam um pouco de conforto durante os longos trajectos e enfrentar as piores intempéries. Dois possantes cavalos estavam-lhe atrelados e um grande diabo de grandes bigodes, respondendo pelo nome de Pompeo, mantinha-os seguros. O tempo estava um pouco fresco, mas prometia uma jornada ensolarada, propícia à viagem. No entanto, quando o pesado veículo começou a andar, Léonarde esboçou uma careta e resmungou entredentes:

Pergunto a mim próprio se não estaremos a fazer uma asneira.

Uma asneira? protestou Fiora. Quando vamos tirar Philippe de uma situação penosa? Sois capaz de o imaginar naquele convento sem saber quem é e de onde vem? Entregue à boa vontade daqueles monges que, se calhar, não são todos santos?

Não sabemos ao certo se é ele...

Estou de acordo, mas confessai que as coincidências são perturbadoras. Temeis que eu apanhe uma desilusão?

Talvez...

Ora, ficai descansada. Eu estou preparada e acho que vale mais fazer esta viagem para nada do que ficar aqui e abandonar Philippe a um destino de que ninguém o poderá libertar.

A serenidade pura da jovem era reconfortante e Léonarde não disse mais nada, mas a velha solteirona não conseguia deixar de se sentir intranquila. O cardeal della Rovere era a causa principal da sua inquietação: não conseguia confiar totalmente nele. Léonarde reprovava-se a si própria porque se tratava do sobrinho do Santo Padre, mas o relato das aventuras vividas por Fiora na Cidade Eterna tinha-a chocado profundamente. A piedade profunda, a fé total e o amor sincero que votava a Deus, a Nossa Senhora e a Cristo não tinham sido abalados, mas, no entanto, deplorava do fundo do seu coração que Roma e o seu príncipe nem sequer fossem capazes de inspirar respeito.

Evidentemente, ela não ignorava que, ao longo dos séculos, houvera pontífices mais ou menos discutíveis, mas aquele antigo monge que, ao pôr na cabeça a Trirregno, só pensava em enriquecer escandalosamente a sua numerosa família e não hesitava em declarar uma guerra para espoliar Lourenço de Médicis após ter tentado assassiná-lo, não tinha qualquer direito à consideração dos fiéis e, sobretudo, à sua. Tudo o que dizia respeito a Roma era, doravante, para ela, questão de desconfiança e o amável cardeal não escapava a esse julgamento definitivo.

Como fora combinado, juntaram-se a ele no adro da colegial de Saint-Martin, ocupado na sua totalidade pela sua faustosa comitiva. As duas mulheres desceram da viatura para ouvir missa, rezar por alguns instantes no túmulo do santo e depois dispuseram-se a abandonar Tours no meio de um grande ajuntamento de povo que aclamava o ilustre estrangeiro. Cavalgando orgulhosamente um soberbo corcel negro, sobre a garupa do qual se estendia com magnificência a sua samarra púrpura, Giuliano della Rovere distribuía bênçãos, ao mesmo tempo que os seus servidores abriam alas em seu nome. Com as suas carruagens, os seus secretários, os seus servos, os seus cavalos e mulas, os seus guardas e as suas carroças com as bagagens, a comitiva do núncio era considerável e quando a cabeça atingiu os muros da cidade, ainda a cauda estava a sair do adro. A viatura com as duas mulheres tomou lugar quase no fim, um pouco antes dos domésticos e das carroças transportando o mobiliário e as bagagens, porque não era conveniente que duas mulheres viajassem perto dos eclesiásticos. Junto delas, um punhado de peregrinos a caminho da Provença e autorizado a aproveitar uma companhia tão augusta, pôs-se em marcha em montadas variadas ou a pé...

Através da grande rue de la Scellerie, passaram diante do convento dos Agostinhos e do dos Franciscanos, nos quais todos os monges estavam de joelhos na poeira para se fazerem abençoar,

A coroa tripla que o Papa recebe no dia da sua coroação.


atingiram o burgo de Areis e a porta de Saint-Étienne, defendida por uma poderosa bastilha virada a sul.

Passado o subúrbio do mesmo nome, as ”Pontes Grandes” que cruzavam o Cher e numerosos pântanos formados por antigos braços de rio, a longa fila atingiu Saint-Avertin e começou a subir ao longo das vertentes cobertas de vinhedos onde os vindimadores já trabalhavam. Após um Verão quente, as uvas estavam maduras: algumas jovens de pernas nuas ofereceram ao cardeal um cesto cheio delas. Este recompensou-as com algumas moedas de prata que lhe valeram mais algumas aclamações.

Se paramos de cinco em cinco minutos, nunca mais lá chegamos! resmungou Léonarde. E quanto nos falta ainda percorrer? Cento e setenta, cento e oitenta léguas?

Se conseguirmos fazer dez por dia, chegamos lá dentro de três semanas. Evidentemente, iríamos mais depressa a cavalo, mas parece-me que vós não guardais boas recordações dessa maneira de viajar! disse Fiora com um sorriso. Para vos consolardes, pensai em todas as abadias onde faremos etapa! Ides poder rezar a quase todos os santos de França!