Nesse instante, Fiora lamentou amargamente a ausência do Rei. Se ele estivesse em Plessis, teria ido ter com ele para lhe contar os acontecimentos e pedir-lhe conselho. Aquele senhor diplomata, aquele príncipe de todas as astúcias, que conhecia melhor do que ninguém a arte de redigir cartas e tratados, teria conseguido obter do prelado romano a revelação daquilo que escondera a Fiora. Mas o Rei estava longe e era preciso desenvencilhar-se sozinha.
Naquela noite, quando toda a gente já estava deitada, Fiora, já tarde na noite, sentada na sua cama, exercitava-se, tentando escrever uma carta capaz de satisfazer todo o mundo. A jovem depressa descobriu que a coisa não era fácil. O princípio não custava nada, claro: tratava-se, simplesmente, de endereçar a Catarina os seus agradecimentos, em termos comoventes, por ter permitido que uma mãe encontrasse o seu filho. Mas tudo se complicou a partir do momento em que teve de falar do Rei e dos pedidos a fazer-lhe. Era tão difícil que Fiora acabou por abandonar o problema. A jovem afastou o papel e a pena, apagou a vela e deixou que o sono se apoderasse de si. Já reparara, muitas vezes, que a resposta a uma pergunta espinhosa aparecia quando acordava.
O que aconteceu tardiamente, porque adormecera bem depois da meia-noite. Ao abrir os olhos, a jovem viu Léonarde postada aos pés da sua cama a ler, com interesse, as suas diversas tentativas.
Ides, mesmo, escrever esta carta? perguntou ela. No entanto, devíeis recordar-vos do que dizia aquele diabo do Demétrios: ”É preciso prestar muita atenção ao que se escreve e a sabedoria está em escrever o menos possível! Pensais que não penso nisso? Mas eu gostava tanto de ajudar Catarina!
E saber o que vos reserva aquele belo cardeal! Reconheço que ele é hábil e que a sua história foi conduzida com mão de mestre! Ele soube perfeitamente jogar com os vossos sentimentos e com o reconhecimento que deveis a essa jovem dama. E, para terminar, soube espicaçar a curiosidade tão natural nas filhas de Eva.
Mas... como sabeis vós isso? Não me lembro de vo-lo ter contado?
Léonarde teve um grande sorriso que lhe descobriu os dentes um pouco espaçados, mas ainda bastante brancos:
Se bem que já não pareça, eu também sou filha de Eva, minha querida Fiora! Escutei à porta, simplesmente! Vou ver se o vosso banho já está pronto.
A saída de Léonarde, sob as abas brancas da sua coifa que batiam ao vento ao ritmo do seu andamento, foi uma obra de arte de dignidade que Fiora admirou sem reservas. Só um momento mais tarde, quando se levantava do leito, é que se apercebeu que a velha solteirona lhe tinha levado todos os rascunhos.
No entanto, quando o cardeal della Rovere fez, dois dias mais tarde, a sua aparição na Casa das Pervincas, a carta estava pronta e Fiora estendeu-lha assim que ele se sentou perto da chaminé.
Para dizer a verdade, a jovem não estava descontente. Tendo-a trabalhado muito na companhia de Léonarde, pensava que, com toda a equidade, devia satisfazer os interesses em jogo e não devia descontentar ninguém. Com efeito, após algumas linhas cheias de amizade, ternura e profundo reconhecimento, Fiora assegurava à condessa Riario o seu grande desejo de ver reinar de novo a paz entre Roma e a França, assim como naquela terra da Toscânia, que lhe era tão querida entre todas as outras...
Talvez o cardeal ache que não vos estais a empenhar o suficiente observara Léonarde na última leitura mas vereis a sua reacção e tereis, sem dúvida, a oportunidade de discutir com ele.
Ora, para grande surpresa de Fiora, o prelado, após ter lido a carta atentamente, declarou excelente a prosa da jovem e exprimiu-lhe a sua satisfação. Aquela leitura causaria uma grande alegria à condessa Riario e suavizaria um pouco o orgulho ferido de Sua Santidade, já que apenas o amor maternal incitara Mme. de Selongey a fugir e donna Catarina a ajudá-la naquela empresa. O Papa ficaria igualmente encantado por constatar que a sua antiga prisioneira não lhe guardava rancor e que estava pronta, pelo contrário, a ajudar para se conseguir uma reconciliação geral...
Como vedes disse della Rovere em conclusão não vos estava a pedir nada de difícil. Pelo contrário, prestais-me um grande serviço pessoal e vou tentar testemunhar-vos o meu reconhecimento... Oh, de maneira... modesta, receio, porque o que vos vou dizer não tem, talvez, qualquer interesse.
O cardeal fez uma pausa, desviou o olhar como se hesitasse e depois suspirou:
Oh! é estúpido! O meu tio... quero dizer, o Santo Padre acusa-me sempre de falar demasiado e de não refrear suficientemente os meus impulsos. É por isso que receio fazer-vos mais mal do que bem.
Aquilo que fazemos com boas intenções, monsenhor, não pode ser nefasto. Far-me-eis a graça de me confiar, pelo menos, do que é que se trata? É acerca de Florença?
Não. É acerca do... vosso marido!
O meu marido? Sabeis alguma coisa dele?
Talvez. Durante a minha estadia aqui, procurei descobrir acerca de vós aquilo que não sabia. Em Roma, esse condenado à morte, miraculosamente salvo no instante em que ia morrer, sempre me intrigou. Foi assim que soube que o conde de Selongey, fechado no castelo de Pierre-Seize, em Lyon, se evadira sem que se pudesse saber o que lhe aconteceu depois. É exacto?
De facto, monsenhor. Sabe-se, apenas, que roubou um barco para fugir e não vos escondo que essa circunstância me aterroriza. Diz-se que o rio, o Ródano, creio, é perigoso. Tenho medo que ele se tenha afogado.
É possível, de facto. No entanto, quando ouvi essa história, lembrou-me um acontecimento que teve lugar aqui há alguns meses atrás. Um acontecimento menor, aparentemente, mas que, para vós, pode ter grande significado.
Dizei depressa, monsenhor, peço-vos! A menor pista pode ter a maior importância.
Muito bem, aqui vai! O ano passado, como vos dizia, os monges do convento cartucho de Val-de-Bénédiction, em Ville-neuve-Saint-André, mesmo em frente da minha sede episcopal,
Hoje Villeneuve-lès-Avignon.
encontraram, no fundo de um barco encalhado nos caniços, um homem ferido e inconsciente que parecia ter sofrido grandes provações. Eles levaram-no e trataram-no, mas foi impossível fazer com que ele lhes dissesse o nome. O homem não sabe nada acerca de si próprio, de onde veio nem o que sofreu.
Teria perdido a memória?
Foi o que concluiu o abade.
O coração de Fiora batia-lhe no peito com toda a força. O sangue subira-lhe ao rosto e as mãos tremiam-lhe.
Mas, como era ele? O seu rosto... a sua estatura? Viste-lo?
Infelizmente, não. Sei apenas o que o prior disse ao meu capelão. Uma coisa é certa: aquele homem não tem nada de camponês. É grande e as cicatrizes do seu corpo parecem indicar que é um soldado. Além disso, o barco era diferente dos que são fabricados na região. Mas estou a emocionar-vos a um ponto que me deixa inquieto. Pode ser, repito, que não tenha qualquer relação com...
Estou quase certa que sim. Esse homem continua lá?
Evidentemente. Para onde queríeis que fosse, não sabendo quem é e de onde vem? O estado dele deve dever-se, certamente, a um ferimento recebido na cabeça... Mas tranquilizai-vos, foi bem tratado e não é, neste momento, nenhum infeliz. Os cartuxos são bons monges, generosos e hospitaleiros. Além disso, para um prisioneiro evadido, se é dele que se trata, um convento é o melhor dos asilos.
Não duvido nem por um instante, mas, como saber, como ter a certeza?
A jovem levantara-se e caminhava agitadamente de um lado para o outro na grande sala, esforçando-se por apaziguar, sob a sua mão, os batimentos do seu coração, que quase a sufocavam. Ao vê-la empalidecer e cambalear, della Rovere precipitou-se, tomou-a nos braços e obrigou-a a estender-se num banco comprido guarnecido de almofadas. Era tempo, as suas pernas tinham perdido a força! Ao mesmo tempo, o prelado chamou por socorro e Léonarde que escutava por trás da porta apareceu instantaneamente, armada com um frasco de vinagre e uma toalha. A governanta tratou de reanimar a jovem.
A má disposição não tardou a dissipar-se e em breve Fiora, completamente restabelecida, pôde oferecer as suas desculpas ao seu hóspede, que parecia sinceramente inquieto.
Receio ter-vos fatigado em excesso disse ele. O melhor é retirar-me: voltarei amanhã. Aliás, era minha intenção deslocar-me a vossa casa para vos dizer adeus...
Vossa Eminência deixa-nos já? perguntou Léonarde.
Sim, tenho de regressar a Avinhão, onde tenho muitos assuntos para tratar. Despedir-me-ei de Tours depois de amanhã.
O cardeal dispunha-se a partir, mas Fiora reteve-o:
Por piedade, monsenhor! Só mais um momento. Asseguro-vos que estou melhor... Dizei-me mais qualquer coisa sobre esse evadido!...
Que vos posso dizer mais? Sabeis tanto como eu... Escutai! Como vou regressar para lá, quereis que vá ao convento quando chegar, para ver esse homem?
Vós nunca o vistes, monsenhor. Como o reconheceríeis?
Poderíeis fazer-me o retrato dele? Evidentemente, se não vos sentísseis mal, havia uma solução, fácil, sem dúvida, mas talvez fatigante...
Que solução é essa? grunhiu Léonarde, desconfiada. Mas Fiora já compreendera:
Posso acompanhar-vos? É verdade que sou a única a ser capaz de o reconhecer. E, se for o meu marido, a que melhor o poderá tratar...
Fiora! protestou Léonarde. Estais louca? Ides partir, mais uma vez, para o fim do mundo?
Avinhão não é o fim do mundo, Madame, e não vejo que perigos pode donna Fiora correr sob a minha protecção! Até lhe posso oferecer uma confortável liteira...
Fiora parecia renascer. Reencontrara as cores e, nos seus olhos, a esperança fazia cintilar estrelas. A jovem levantou-se:
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