Segundo o convite da sua anfitriã, della Rovere instalou-se a um canto da chaminé, na qual, tanto no Inverno, como no Verão, salvo em tempos de canícula, Péronnelle tinha sempre um fogo com alguns ramos de pinheiro para lutar contra a humidade habitual das casas construídas perto do Loire. Mas as janelas completamente abertas deixavam ver o jardim florido, do qual um prolongamento, sob a forma de um grande ramo de flores-de-lis e de rosas misturadas com folhagem, coroava uma credência e perfumava a sala.
Os olhos vivos do cardeal já tinham dado a volta à grande divisão, indo da tapeçaria de mil flores aos objectos dispostos em cima dos aparadores, quando acolheu com prazer os sinais de boas-vindas que Fiora lhe oferecia: o vinho fresco de Vouvray e o bolo de amêndoa que Péronnelle sabia fazer como ninguém. Só quando ficaram sós, ele e a sua anfitriã, é que o cardeal se decidiu a falar. Aliás, ele já exprimira esse desejo e Léonarde, com grande pena, foi obrigada a retirar-se, tal como os outros.
Após a sua partida, seguiu-se um silêncio. O cardeal mirava, através do vinho pálido da sua taça, os reflexos do fogo moribundo e Fiora saboreava o líquido agradável sem dizer nada, esperando que o seu visitante falasse. Este não parecia apressado, mas, subitamente, interrogou-a:
Pensastes no que vos disse na outra noite, donna Fiora?
Vós quisestes pronunciar, a meu respeito, algumas palavras lisonjeiras, monsenhor, e eu não seria capaz de as esquecer.
Sem dúvida, sem dúvida, mas não foram mais do que um preâmbulo e também vos disse que, em minha opinião, nós os dois poderíamos fazer um bom trabalho.
Lembro-me, com efeito, mas confesso que não compreendi bem o que entendia Vossa Eminência com essas palavras.
Entendia... e entendo ainda, que podíamos juntar os nossos esforços para que possamos ser úteis, vós à vossa cidade natal e eu aos interesses da Igreja.
Um papel interessante, não duvido, mas como o desempenharia eu?
O Rei Luís escuta-vos e tendes a sua amizade. A paz entre os povos é um objectivo digno de ser perseguido e podíeis incitar aquele homem difícil a ter mais respeito, mais compreensão para com Sua Santidade, que ele trata muito mal.
Muito menos mal, parece-me, do que o modo como o Papa trata Florença. As suas ideias políticas parecem muito claras, mesmo para uma ignorante como eu: ele pretende acabar, pela guerra, a obra que os seus espadachins iniciaram. Não imaginais que eu o ajudaria a destruir a cidade da minha infância?
Destruir? Nunca! O Santo Padre não quer qualquer mal a Florença e ainda menos à sua população. Aquela... desgraçada conspiração urdida pelos Pazzi exilados...
Talvez eles não a tivessem podido urdir, monsenhor, sem a ajuda benevolente do vosso primo, o conde Riario. De qualquer maneira, entre o Papa e os Médícis está o sangue derramado de Giuliano durante a missa do Domingo de Páscoa!
Os Pazzi foram exterminados até ao último. Mais de duzentas pessoas, segundo parece? Uma tal quantidade de gente não é suficiente para lavar o sangue desse jovem? Seria o caso, talvez, se o Papa não tivesse apelado à guerra santa, não tivesse excomungado Florença e não a tivesse atingido, até, com a interdição. Monsenhor Lourenço limita-se a defender-se.
Ele defende-se, de facto... com desprezo pelo bem-estar de um povo que pretende amar. No fim de contas, ele não é príncipe por direito divino.
Se ele não se sacrifica, é porque esse mesmo povo não deixa. Os Florentinos amam Lourenço de Médícis e estão prontos a morrer por ele.
Todos? Não juraria. Mas, em vez dele, a cidade da flor-de-lis vermelha podia ter uma princesa agradável, letrada, brilhante... e de quem vós gostais, creio?
Uma princesa? Quem?
A condessa Catarina. Ela não é vossa amiga?
Sinto por ela, de facto, muita amizade e respeito.
Então, talvez a pudésseis ajudar?
Fiora olhou para o seu visitante com um estupor sincero, fortemente mesclado de desconfiança. No entanto, não conseguiu ler naquele rosto arrogante e naqueles olhos escuros profundamente cavados nas órbitas senão uma grande tristeza.
Ela reina sobre Roma e sobre o Papa. De que ajuda necessitaria ela?
Talvez da vossa, justamente. Tentai compreender-me, donna Fiora! Eu tenho muita estima e consideração por Catarina e não gosto de a saber infeliz.
Ela é infeliz?
Mais do que possais imaginar e por vossa causa.
Por minha causa?
Com muita simplicidade, o cardeal foi encher de novo a sua taça de vinho e depois, puxando a sua cadeira para junto da da sua anfitriã, sentou-se:
Roma transborda de espiões, Madonna, e sabe-se tudo. Riario não ignora que a sua mulher vos ajudou a fugir para Florença. Daí a imaginar que estáveis encarregue de prevenir os Médicis do que se tramava contra eles...
Sem querer ofender a vossa família, monsenhor, o vosso primo é demasiado denso para conseguir imaginar uma coisa dessas!
É um rústico, admito perfeitamente, mas é manhoso, retorcido, até e, sobretudo, não ignora que a mulher não o ama. Ela vive horas pouco agradáveis, mas poderiam ser bem piores sem a protecção do Santo Padre. Este, felizmente, continua a ter muita afeição por ela.
Essa notícia aflige-me, mas como poderia eu ajudá-la?
Por que não lhe escreveis uma carta, na qual lhe exprimis a vossa amizade? Poderíeis acrescentar que estais disposta a defender, junto do Rei de França, a causa do Vaticano...
Fiora levantou-se bruscamente e enfrentou o seu visitante. Um princípio de cólera avermelhou-lhe o rosto:
Falemos claro, monsenhor! Vós quereis que eu tente libertar a França da aliança com Florença e que eu traia os meus queridos amigos, a recordação do meu pai, o meu...
O vosso amante? Não, não vos zangueis! Nós também temos espiões em Florença. E não vos pediria uma coisa tão terrível. O que vos peço é que penseis no seguinte: todos os homens são mortais e o Médicis não escapa à lei comum. Que ele desapareça e que Florença, não tendo mais ninguém para defender, abra as portas ao Papa. Donna Catarina, como soberana, levaria a peito, estou persuadido, a conservação dos vossos bens.
Deixemo-nos de conversas, monsenhor! Eu gosto de donna Catarina e faria tudo para que ela fosse feliz, mas não ajudarei o seu marido a subjugar a cidade que me é querida!
E se Riario não vivesse o suficiente para reinar sobre a Toscânia? Vamos, donna Fiora, eu não vos peço muito: uma carta amável, de certo modo uma carta pacificadora... e depois, talvez, uma tentativa para dispor melhor o Rei Luís connosco sem renunciar, pelo menos abertamente, à sua aliança com Lourenço. A sua atitude actual provoca grandes prejuízos à Santa Sé...
Pecuniários? Não duvido! disse Fiora, azeda. Para mim, não há nada melhor do que trabalhar pela paz, mas não foi Florença, repito, que declarou a guerra. Por outro lado, para que eu acredite na boa vontade do Papa, seria preciso que ele começasse por um gesto... de pai. Levantar a interdição, por exemplo?
Posso sugerir-lho. Escrevereis essa carta?
Seria uma carta enganadora. O Rei está longe e eu não sei quando regressa.
Mas regressa, um dia destes, e eu não tenho pressa. Contentar-me-ei com a carta e com a vossa promessa. Talvez, por outro lado, eu vos possa ajudar num assunto que vos preocupa muito... Mas o tempo passa e eu tenho de vos deixar... Tenho assuntos a tratar com o arcebispo.
O cardeal levantou-se com uma pressa súbita que Fiora achou suspeita e dirigiu-se para a porta.
Evidentemente, voltaremos a encontrar-nos acrescentou ele amavelmente passei junto de vós momentos encantadores. Mas, agora, preciso de reflectir. Regressarei dentro em breve.
Concedei-me ainda um minuto, monsenhor. Que assunto é esse que me interessa muito?
Não passa de um rumor que me chegou aos ouvidos. Infelizmente, não tenho tempo para vo-lo referir. Fica para a próxima visita: digamos... dentro de dois ou três dias?
Tencionais ficar ainda muito tempo em Tours?
Infelizmente, não... se bem que a cidade me agrade e que as pessoas insistam para que eu fique. Mas tenho de partir para Avinhão, onde se encontra a sede da minha nunciatura...
Compreendendo que o cardeal não tencionava dizer mais nada, Fiora conduziu-o até à sua liteira, de onde ele a abençoou e perante a qual a jovem teve de se inclinar.
Perplexa, a jovem viu desaparecer, sob a verdura densa do caminho sombrio que ia dar à saída do seu domínio, a imponente equipagem. Desaparecido o cortejo, Fiora desceu ao jardim, por onde caminhou ao longo das alamedas bem limpas antes de se sentar por baixo de uma latada. Léonarde sentia-o, devia estar a espreitá-la da casa transbordando de perguntas e, justamente, Fiora desejava ficar só por uns instantes para tentar esclarecer aquela visita curiosa. A iniciativa de della Rovere parecia-lhe bastante ridícula. Seria preciso, de facto, conhecer bastante mal o Rei Luís, aquele homem secreto de quem se dizia que o seu cavalo transportava todo o seu conselho, para imaginar, por um só instante, que se pudesse deixar influenciar pelos pedidos de uma mulher, fosse ela objecto da sua amizade. Por outro lado, era insensato pedir-lhe, a ela, de quem, aparentemente, o cardeal não sabia grande coisa, que tentasse desligar a França da sua antiga aliança e das suas amizades.
Evidentemente, havia o caso de Catarina. Fiora sentia-se mal por lhe ter causado aborrecimentos, já que não se sabia até onde poderia ir um homem como Riario. Um acidente é sempre possível e, então, só restaria ao Papa chorar por aquela sobrinha, à qual estava tão afeiçoado.
A memória de Fiora fê-la rever o rosto do cardeal no momento em que falava de Catarina: um rosto tenso, uma máscara quase dolorosa. Talvez a amasse e, nesse caso, talvez estivesse pronto a todas as loucuras para lhe acudir. Não sugerira que Riario talvez não vivesse muito mais tempo? Se della Rovere amava a sua prima por aliança com um amor sincero e ansioso, tornava-se muito mais simpático aos olhos de Fiora e a jovem deu por si a pensar que, no fim de contas, a carta que lhe pediam que escrevesse tinha pouca importância: bastaria escrevê-la com a habilidade suficiente para não a comprometer. E depois, havia aquela frase misteriosa que o visitante recusara esclarecer, dizendo que falariam ”na próxima vez”...
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