Um prisioneiro evadido, Léonarde? Talvez esgotado? Sem dinheiro, sem socorro possível,, e tão orgulhoso? Não estou a vê-lo aparecer aqui em busca de socorro!

Não estou a vê-lo a rondar Plessis! disse Léonarde, imitando Fiora. A única coisa sensata, para ele, seria tentar regressar à Flandres e à corte da princesa Maria. Em todo o caso, lamento não ter assistido à vossa conversa com o Rei. Parece-me que lhe teria feito perguntas mais pertinentes do que as vossas. Puxai, que diabo! Este lençol vai parecer um farrapo!

Não teríeis grande dificuldade! Eu estava tão perturbada que nem sei o que tinha na cabeça! Mas... que perguntas lhe teríeis feito?

Bem, parece-me que tentaria saber o que aconteceu ao castelo de Selongey! O sire de Craon apoderou-se dele depois do julgamento, ou o Rei teve o cuidado de o conservar por vós?

De facto, não sei de nada. Ele só me disse que mandara vigiar os arredores da aldeia para saber se Philippe teria procurado ali refúgio.

Bom. Já é uma meia-resposta: se o governador de Dijon se tivesse apoderado do castelo, não seria necessário espiar os arredores para tentar encontrar o proprietário legal.

É verdade! De qualquer maneira, agora é demasiado tarde para fazer a pergunta ao Rei...

Na verdade, Fiora tivera sorte em encontrar Luís XI logo após o seu regresso de Florença. O Rei regressara a Plessis apenas por alguns dias e no dia seguinte àquele famoso jantar abandonara o castelo para se dirigir a Artois, cuja pacificação ainda não tinha terminado. Além disso, o Rei queria ocupar-se pessoalmente das condições da trégua entre ele e o marido de Maria de Borgonha após a vitória do seu capitão Philippe de Crèvecoeur, em Pyrrhus, sobre o mesmo Maximiliano. Sem dúvida, não estaria ausente durante muito tempo, mas, entretanto, Plessis-lès-Tours voltaria a adormecer sob a protecção de uma única companhia da Guarda Escocesa.

Tendo acabado de dobrar os lençóis, Léonarde levou-os para uma grande arca que estava colocada numa pequena divisão perto da cozinha. Em seguida, a governanta juntou-se a Fiora, que fora sentar-se perto da lareira e mordiscava uma pêra: Étienne pusera um tabuleiro cheio delas em cima da mesa uma hora antes.

Léonarde pegou numa, também ela, esfregou-a no avental para a pôr a brilhar e mordeu-a sem conseguir evitar uma careta: os seus dentes já não eram suficientemente sólidos para aquele exercício e a governanta foi buscar uma faca para descascar o fruto. Fiora, sentada na pedra da lareira e com os cotovelos nos joelhos, olhava para as chamas...

A grande cozinha estava tranquila, quase silenciosa. Péronnelle fora ao mercado de Notre-Dame-la-Riche na companhia de Khatoun e de Florent. Mas, no primeiro andar, Marcelline enfrentava a cólera do pequeno Philippe, insatisfeito com a última mamada. Léonarde pensou que seria preciso dar-lhe, em breve, alguma coisa mais sólida se não queriam ouvi-lo chorar noite e dia. Essa ideia desesperava a ama. Quando já não tivesse leite teria de regressar à sua quinta e essa perspectiva não a encantava, já que a vida era muito mais agradável na Casa das Pervincas.

Esses pensamentos giravam na cabeça da velha solteirona, distraindo-a um pouco dos graves problemas que enchiam o espírito de Fiora, mas esta regressou ao assunto:

Dentro de quanto tempo teremos notícias do doge? perguntou ela, atirando o caroço da pêra para o fogo.

Como posso saber? Veneza é longe.

No entanto, tenho de saber! Não posso ficar aqui sem fazer nada e sem saber do meu marido!

Mas, que quereis vós fazer? Quereis atirar-vos para a estrada como tantas vezes antes para tentardes ir ter com ele? Fiora, isso seria uma loucura. O Verão está a acabar, vamos a caminho do Inverno. Dai a vós própria algum tempo de repouso e reflexão.

Se fico aqui, nunca mais o encontro, porque ele nunca virá para as terras do Rei que tanto detesta...

Mas de quem vós gostais e que, aliás, a menos que eu me engane, vos retribui. Para ter procurado com tanta paciência um rebelde, para continuar a procurá-lo quando nem sequer se devia preocupar, é preciso que vos tenha uma grande amizade.

Nem sequer se devia preocupar? exclamou Fiora, vexada.

Regressai à terra! Que é Philippe de Selongey em comparação com o Rei de França? A diferença é enorme, parece-me?

Dir-se-ia que tendes pouca estima pelo meu marido?

Tento, simplesmente, fazer-vos ver a realidade. O Rei reconquistou, com a Borgonha, uma província francesa que a duquesa actual tenta oferecer ao Império Alemão. O vosso marido, aparentemente, escolheu o partido dela. Para Luís XI é um rebelde, tanto mais que ainda há pouco tempo tentou assassiná-lo. E Luís XI, não só o agracia pela segunda vez, apesar de o manter preso, é verdade, como, quando ele se evade, o tenta encontrar.

Qualquer carcereiro teria feito o mesmo disse Fiora com um meio sorriso.

Mas qualquer carcereiro, apanhada a presa, apressar-se-ia a mandá-la para um mundo melhor, para estar certo de que não o aborreceria mais! Ora, se bem vos compreendi, o nosso Sire queria fechá-lo... enquanto esperava pelo vosso regresso?

É o que ele diz!

E por que razão não haveis de acreditar nele? Entregai-vos a Deus, ao menos uma vez, e pensai um pouco no vosso filho! Ele não tem pai, por isso tem o direito de ter uma mãe como as outras!

Fiora sabia que Léonarde falava com a voz da sabedoria, mas não suportava a ideia de não saber onde se encontrava Philippe. Perante o seu mutismo eloquente, Léonarde recomeçou:

Ainda não estais convencida, pois não? Nesse caso, vou mais longe: vós ignorais onde se encontra messire de Selongey, mas ele sabe muito bem onde vós estais, porque, em Nancy, tivestes o cuidado de o informar. Já uma vez, para se juntar a vós, ele venceu o orgulho. Por que razão não o venceria uma vez mais? Ou então, já não vos ama!

Aquela palavra atingiu Fiora no mais profundo do seu ser e a jovem ergueu, para a sua velha amiga, um olhar desolado:

Já não me ama? Talvez seja verdade... mas, Léonarde, não acredito!

No entanto, tendes todas as razões para acreditar disse Léonarde, impiedosa. Pensáveis nele quando estáveis nos braços de Lourenço de Médicis?

Seguiu-se um silêncio e Fiora desviou a cabeça, talvez para esconder as lágrimas que sentia subirem-lhe aos olhos-.

Sois cruel, Léonarde suspirou ela. Não esperava uma coisa dessas da vossa parte...

Um instante mais tarde, Léonarde estava sentada junto dela na pedra da lareira, rodeando-a com os braços para a obrigar a pousar a cabeça no seu ombro:

Eu sei que vos faço mal, meu cordeiro, mas é para vos evitar mais sofrimentos. O vosso casamento, até agora, deu-vos bem pouca felicidade e muita amargura. Esteja ele onde estiver, deixai que o vosso marido tome a iniciativa! Vós exigistes que, como prova de amor, ele viesse ter convosco! Muito bem, esperai por ele!

E se ele estiver no fim do mundo?

Isso não muda nada: esperai que ele regresse do fim do mundo! Ouvi! Estou a ouvir mulas, é a nossa gente que regressa do mercado. Ide tirar essa cinza que arranjastes nessa pedra e arranjar-vos um pouco! Sois suficientemente jovem para poderdes conceder a vós própria algumas semanas de tranquilidade. Esperai que o Rei vos dê notícias... se ele as tiver.

Seja! Eu espero, querida Léonarde, mas não muito!

Que ides fazer, então?

Creio que, primeiro... vou a Selongey. Talvez Philippe ande por lá escondido sem que a gente do Rei saiba. Depois, se ele não estiver lá...vou ver a duquesa Maria. Não creio que os espiões do Rei tenham tido a possibilidade de lhe fazer quaisquer perguntas. Mas eu sou a mulher de Philippe e ela responder-me-á.

Por outras palavras, o Rei não vos convenceu?

Da profundidade das suas buscas? É evidente que não! Além disso, tendes de admitir que eu, como mulher dele, tenho mais hipóteses de o fazer sair do seu esconderijo...

Léonarde contentou-se em resmungar algo que, em rigor, podia passar por aprovação. A solteirona voltara a tirar da algibeira do avental a pêra e esforçava-se por ferrar nela os dentes.

Como a operação se revelasse tão dolorosa como da primeira vez, atirou, com um gesto de rancor, o fruto para as chamas da chaminé, de onde subiu um fino odor a pêra cozida e a caramelo. Enquanto isso, a cozinha enchia-se de barulho e alegria. Péronnelle, Khatoun e Florent regressavam do mercado.

Nesse mesmo dia, de tarde, quando Fiora se dispunha a fazer uma visita ao priorado de Saint-Côme com o filho, Léonarde e Khatoun, a alameda de velhos carvalhos encheu-se com um bando de cavaleiros escoltando uma liteira que ela reconheceu de imediato, mas sem qualquer prazer. Que ia fazer a sua casa o cardeal della Rovere?

Mas, já que estava ali, era conveniente acolhê-lo cordialmente. Assim, devolvendo o bebé aos braços carinhosos de Khatoun, Fiora avançou para o pesado veículo que descrevia no cascalho uma curva plena de majestade antes de se deter diante da entrada da casa. A jovem ajoelhou-se quando o prelado pôs pé em terra e beijou-lhe a safira que ele lhe estendia.

A minha modesta casa sente-se muito honrada, monsenhor, por receber Vossa Eminência!

A casa é encantadora e eu venho apenas como vizinho. Portanto, deixemos o protocolo de lado e dizei apenas monsenhor disse ele com toda a simplicidade.

Subitamente, ele viu as mulas ajaezadas, junto das quais estava Florent:

Estou a incomodar-vos, talvez? Ides sair?

Estávamos, somente, a pensar ir ao priorado cujo campanário vedes além, monsenhor. Mas como a Igreja vem ter connosco... Dai-vos ao cuidado de entrar.

Enquanto Fiora precedia o hóspede inesperado na grande sala, Péronnelle preparava, uma merenda para o cardeal, ao mesmo tempo que o seu marido instalava a escolta à sombra do pequeno bosque e anunciava que lhe ia dar de beber. Coisa que foi acolhida com satisfação.