O jantar, se bem que longo, foi excelente e teria sido enfadonho não fora a disputa divertida que opôs, como era hábito, o médico do Rei, Coictier, ao chefe cozinheiro Jean Pastourel. De pé por trás da cadeira real, trocavam olhares furiosos e propósitos agridoces a meia-voz acerca do conteúdo do prato do senhor de ambos. Quando o médico afirmou que as morcelas de capão só serviam para envenenar o Rei, o cozinheiro ripostou que as drogas do seu adversário é que eram nefastas para a sua saúde, já que a arte da cozinha consistia em preparar os melhores produtos de maneira a que não causassem qualquer incomodidade. De tempos a tempos, o tom da disputa subia e Luís XI tinha de intervir. O Rei acabou por enviar Coictier para a sua mesa, acrescentando que uma refeição tomada na companhia de um príncipe da Igreja não podia fazer mal a ninguém. Nem sequer a ele.

Coictier afastou-se a resmungar aliás, era um homem muito pouco simpático e, a partir desse instante, Fiora aborreceu-se. O Rei dedicou-se ao seu hóspede e o outro vizinho da jovem, um homem grande, vermelho, que era o capelão do prelado romano, após ter tentado acariciar-lhe o joelho por baixo da mesa, resignou-se quando ela o beliscou energicamente e passou a interessar-se pelas iguarias que lhe serviam. Ao cabo de um quarto-de-hora estava escarlate e, no fim da refeição, completamente ébrio.

Após ter acompanhado até às suas carruagens o cardeal e o arcebispo, que regressavam a Tours, Luís XI voltou para junto de Fiora que, entre a princesa Joana e Mme. de Linières, assistira à partida dos ilustres visitantes:

Então, Mesdammes, que pensais do sobrinho de Sua Santidade?

Os cardeais nem sempre são padres, Sire meu pai. Este é-o?

Sim. Porque essa pergunta? Tendes dúvidas?

Algumas, confesso. Ele fala muito de política, de caça, de objectos raros e das letras gregas... mas nem uma palavra acerca de Deus!

Desejáveis que ele me convertesse? perguntou o Rei com um sorriso que lhe fez erguer todos os traços do rosto. Não era o momento.

Não... mas eu fico inquieta quando um homem da Igreja fala de guerra, de submissão, de cargos e outras violências, sem nunca conceder um pensamento àqueles que sofrem com essas tragédias: o povo das cidades e dos campos com que vós, que, no entanto, não sois padre, vos preocupais sempre tanto!

Luís XI ficou sério de novo e, pegando na mão frágil da sua filha, contemplou, por um instante, o seu belo, doce e luminoso olhar com uma expressão estranha, onde entrava uma admiração que não estava isenta de remorsos:

Tendes uma alma luminosa, Joana, que devia ser capaz de ignorar as fealdades da vida. Pela minha parte, recebi, no dia da consagração, o Santo Crisma, que fez de mim o ungido do Senhor e curei-me das escrófulas de que sofria. Parece-me que isso vale bem a tonsura. Além disso, jurei proteger os meus povos, sobretudo os mais humildes, e servir a França... à qual vos sacrifiquei! Assim como lhe sacrifico, por vezes, alguns escrúpulos.

As filhas dos reis nasceram, verdadeiramente, para serem felizes? Vós colocastes-me no lugar que me pertence.

Sem dúvida, sem dúvida! Quando é que o vosso marido vos visitou pela última vez?

A pergunta é cruel, Sire cortou Mme. de Linières. Monsenhor, o duque de Orleães, nunca aparece e...

Chega! Eu falo com ele.

Em seguida, mudando bruscamente de tom e já sem qualquer vestígio de emoção:

Quanto ao cardeal della Rovere, à sua família e até ao Papa, se quiserdes conhecê-los melhor, falai com Mme. de Selongey! Ela sabe mais acerca desse assunto do que eu. Mas arriscais-vos a perder a fé!

Não, Sire meu pai! Nada nem ninguém me fará perder a fé!

E eu sentir-me-ia culpada, Sire cortou docemente Fiora se pronunciasse uma palavra, por mais pequena que fosse, capaz de perturbar uma alma tão pura.

Com um gesto rápido e inesperado, Luís XI beliscou a face da jovem.

Tenho a certeza! Uma boa noite para vós, Mesdames! Regresso aos meus negócios. Esta noite preciso de escrever ao doge de Veneza!

Enquanto as três mulheres dobravam o joelho para o saudar, ele afastou-se alguns passos e depois deteve-se:

O sargento Mortimer vai acompanhar-vos a la Rabaudière, donna Fiora!

Mas, Sire, eu não vim só.

Doença devida a perturbações de nutrição.

Eu sei, mas, em caso de maus encontros, o vosso criadito não seria de grande ajuda. Aliás, Mortimer adora escoltar-vos. Juntamente com a minha filha Joana, sois a única mulher por quem ele tem alguma consideração.

O Rei retomou o seu caminho na direcção da escadaria, na base da qual se encontrava a silhueta de um homem recortada a negro à luz amarela do interior. Fiora pensou reconhecer a personagem que encontrara em Senlisl no próprio quarto do Rei. Quando ela se virou para fazer uma pergunta às suas companheiras, estas já se afastavam, dirigindo-se para a capela. Pelo contrário, no seu lugar encontrava-se Mortimer, surgido como que por encanto: Às vossas ordens, donna Fiora!

Sinto-me desolada por vos incomodar, caro Douglas, mas, antes de partirmos, contentai a minha curiosidade: aquele homem, além, junto da escadaria? Parece-me que já o vi!

Sob a túnica de seda azul com flores-de-lis, o escocês encolheu os grandes ombros:

Oh, evidentemente que vistes! É o barbeiro do Rei, esse homem de pesadelo chamado Olivier le Daim!

Dir-se-ia que não gostais muito dele? perguntou Fiora, rindo. Mortimer nem sequer sorriu:

Ninguém gosta dele! É um velhaco em quem, infelizmente, o Rei deposita demasiada confiança! No entanto, arrependeu-se quando o enviou, esta Primavera, a Gand, como embaixador.

Como embaixador? Não acredito!

Infelizmente é verdade! O nosso sire, tão sábio e tão prudente, tem, por vezes, ideias estranhas. As gentes da cidade puseram-no, não sei como, às portas da cidade. Acreditai, donna Fiora, desconfiai dele! A sua cupidez é insaciável apesar do que, até agora, conseguiu surripiar ao Rei.

Por que razão havia de desconfiar dele? Nós não temos nada em comum e os nossos caminhos são divergentes.

Pobre inocente! Ficais a saber que Daim considera como ofensa pessoal qualquer presente que o nosso Sire dê a outra pessoa qualquer que não a ele.

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


O Rei é muito bom, mas não me cobre de presentes.

Não? E la Rabaudière? Eu sei que, durante a vossa ausência, mestre Olivier se esforçou por persuadir o Rei de que vós nunca mais regressaríeis e que, como consequência, seria mais sensato instalar o vosso filho e o vosso pessoal aqui mesmo.

No castelo? E porquê?

Para esvaziar a casa, por Deus! Há muito tempo que o nosso homem pisca o olho à Casa das Pervincas e quando soube que vós a queríeis devolver ao Rei, ganhou novas esperanças. Infelizmente para ele, encontraram-vos e regressastes. Deve estar muito desapontado

Bem disse Fiora desdenhosamente ele tem um meio muito simples de colmatar a sua decepção.

Qual é?

Ajudar-me a encontrar o meu marido. Nesse dia abandonarei sem pena aquela casa de que tanto gosto para o seguir para as suas terras... ou para onde ele julgar melhor levar-nos.

Mortimer desatou a rir e, soerguendo o seu gorro com penacho, coçou a cabeça com uma careta cómica:

Pois! Não sei se ele não preferirá um método mais simples e mais... expedito! De qualquer maneira, preveni, há algum tempo, o vosso pessoal... e hei-de dar uma palavra ao Rei.

Se ele tem tanta confiança nesse homem, isso seria um erro! Não lhe digais nada, Mortimer! Eu vou ter cuidado. Entretanto, obrigada por me terdes prevenido!

Fiora e Mortimer recuperaram Florent que após ter comido em casa do seu amigo jardineiro dormia em cima da mesa e puseram-se a caminho, a pé, da Casa das Pervincas, conversando sobre outras coisas. A noite estava clara, suave, cheia de estrelas e de todos os odores do Verão. Teria sido uma pena perturbar aquela beleza evocando as torpezas humanas. Os dois amigos conheciam, tanto um, como o outro, o preço de tais instantes e tinham aprendido a apreciá-los...

CAPÍTULO V

A FLORESTA DE LOCHES

Veneza, Veneza! resmungou Léonarde, sacudindo fortemente o lençol que estava a dobrar com Fiora. Porquê Veneza? E porque não Constantinopla, ou o reino do Prestes João... ou sabe Deus o quê?

Já vos disse, Léonarde: porque sei que ele pensava nisso. Quando eu pedi a anulação do nosso casamento, ele quis que o duque Carlos me entregasse todos os seus bens como pagamento do dote que exigiu ao meu pai. E acrescentou que, se se restabelecesse a paz entre a França e a Borgonha, poderia sempre colocar-se ao serviço do doge para reconstituir a sua fortuna.

Mas isso foi há séculos! E vós continuais a ser mulher dele!

No fundo, ele não sabe. Admitindo que depois da sua evasão Philippe tenha vindo em busca de notícias minhas para estas bandas, pode ter sabido do meu desaparecimento, talvez, até, tenha sabido que me levaram para Roma! Daí a imaginar que eu tinha ido, como o ameaçara, pedir ao Papa a famosa anulação...

Léonarde pegou no lençol, acabou de o dobrar e pousou-o sobre uma pilha que esperava uma última passagem a ferro antes de ir para dentro de um armário onde havia saquinhos de hortelã e de pinheiro. A governanta tirou outro do cesto e atirou com uma das extremidades a Fiora:

Não deixeis voar a vossa imaginação, meu cordeirinho. Se messire Philippe tivesse vindo aqui, sabê-lo-íamos: ele tem umas feições demasiado orgulhosas para passar despercebido e ao saber do nascimento do seu filho não deixaria de aparecer cá em casa.