Sim. A última vez que o vi encontrava-se perto daqui dentro de uma jaula e conduziam-no ao castelo de Loches disse Fiora em tom de reprovação.

É exacto. Bem, ele foi solto e depois seguido discretamente. Fugiu para Bruges... e nunca mais tive notícias dele... nem, aliás, dos dois homens que encarreguei de o vigiar, mas é verdade que em casa de Madame Maria e do marido, os Franceses não têm fama de santos. Em todo o caso, uma coisa é certa: ninguém apareceu para reclamar a recompensa, mas o vosso marido, minha querida filha, custa uma fortuna à minha tesouraria...

Sinto-me desolada, Sire, mas, se vo-lo tivessem entregado, qual seria o seu destino? Ele teria... ele teria sido...

Executado? Tomais-me por um papalvo? Eu não mudo de opinião com facilidade! Tê-lo-ia fechado mais uma vez numa jaula e aqui mesmo, na prisão do meu castelo, enquanto esperava que vos encontrassem. E agora, vinde! Preciso de caminhar um pouco!

Fiora não se mexeu. De olhar fixo, a jovem contemplava a ponta dos seus sapatos que soerguiam as ramagens do seu vestido e apertava, com força, uma mão contra a outra, segundo o seu hábito quando estava presa de uma emoção forte.

Então? impacientou-se o Rei. Estais à espera de quê? Ela ergueu para ele uns grandes olhos desolados:

E... se ele se tivesse refugiado aqui?

Quem? Selongey? Também pensei nisso. Mas, se fosse o caso, qualquer um da vossa casa o teria visto e já o saberíeis! Vamos, coragem! Estou certo que ele está vivo.

Nesse caso, está longe... talvez demasiado longe! Eu sei que lhe passou pela cabeça pôr a sua espada ao serviço de Veneza para combater os Turcos. Nesse caso, nunca mais regressará e eu nunca mais saberei nada dele.

Veneza, dizeis vós? Nós podemos, pelo menos, saber se ele foi para lá! Vou escrever ao doge a seguir ao jantar. Veneza é, talvez o saibais, a cidade mais bem guardada do mundo e um estrangeiro não pode entrar nela sem chamar a atenção dos esbirros do Conselho dos Dez. Talvez venhamos a saber qualquer coisa, mas abandonai esse ar desolado e regressemos. Não tarda, estão a tocar para a água.

Dessa vez, Fiora deixou-se levar.

Sem mais palavras do que à vinda, o Rei e a sua jovem companheira regressaram ao pátio de honra, onde se amontoavam criados, cavalos e equipagens. Com surpresa e alguma inquietação, Fiora reparou numa grande liteira púrpura cujas portinholas mostravam um grande brasão encimado por um chapéu cardinalício que lhe pareceu vagamente familiar. A jovem ousou pousar a mão no braço do soberano para o deter.

Sire! Que o Rei me perdoe, mas se ele recebe esta noite um príncipe da Igreja, talvez seja melhor eu regressar a minha casa.

Sem jantar? Quando vos convidei? E por que razão, se fazeis favor?

Francamente, Sire, eu estou um pouco... farta de cardeais e receio não me sentir à-vontade. Além disso, o meu traje...

Que estais para aí a dizer? Vós estais soberba e será preciso que estejais à-vontade, porque vos convidei especialmente esta noite para que o cardeal della Rovere veja a estima em que vos tenho.

Sob o olhar brilhante de satisfação de Luís XI, Fiora sentiu-se verde:

O... cardeal... della Rovere? murmurou ela, espantada. Ele não é...

Da família do Papa? É claro que sim, e vós deveis, pelo menos, ter ouvido falar dele em Roma. Ele é um dos sobrinhos, de longe o mais inteligente e, por isso mesmo, o mais perigoso. Mas talvez vos agrade! E agora, deixo-vos: tenho de me ir vestir! E estou a ver Mme. de Linières, que vos vem buscar para vos conduzir até junto da princesa Joana, a minha filha. Vós já a conheceis e ela está muito contente por voltar a ver-vos.

Saudado quase até ao chão por aqueles que se amontoavam no pátio de honra, o Rei conduziu Fiora até à dama imponente que esperava perto da base da escadaria, já dobrada em duas numa reverência profunda. Como, além disso, tivesse baixado a cabeça por respeito para com a aproximação do Rei, este quase se feriu na flecha do grande chapéu pontiagudo que ela trazia. O Rei afastou o obstáculo, o que quase provocou a queda do edifício.

Demasiado alto, Mme. de Linières, demasiado alto! exclamou ele, meio a brincar, meio zangado. Que raiva deu às mulheres para quererem parecer-se com campanários de igreja? O que me espanta é que o meu reino não tenha mais zarolhos.

Peço perdão ao Rei replicou a dama com serenidade e até com um sorriso, mostrando que não estava impressionada. Sempre pensei que a honra de acompanhar uma filha de França, que ainda por cima é duquesa de Orleães, obrigasse a um certo decoro no vestuário. É uma forma de respeito.

Nesse caso, usai o respeito menos pontiagudo!

E, assobiando alegremente uma ária de caça, Luís XI desapareceu na escadaria em caracol, deixando as duas mulheres frente-a-frente:

Vinde, Madame disse a dama-de-honor, estendendo a mão a Fiora, que não se pôde impedir de rir. A senhora duquesa tem pressa de vos rever e podereis refrescar-vos antes do jantar.

Habituada a ver Luís XI viver na maior das simplicidades, Fiora ficou surpreendida com o aparato para aquele jantar e com o esplendor da sala onde ele se desenrolou. Aquela grande divisão fazia parte dos aposentos reais do primeiro andar, abertos apenas para estrangeiros ilustres e em determinadas circunstâncias. Dava para o terraço sustentado pela galeria coberta do rés-do-chão; o seu fausto, verdadeiramente real, diferia da sumptuosidade cintilante que rodeava os duques de Borgonha. O mobiliário revestido a veludo e as grandes tapeçarias davam ao conjunto uma nota severa, acentuada pelos vitrais de cores das janelas altas, que deixavam entrar uma espécie de penumbra. O ouro dos tectos em madeira e das guarnições dava um ar abafado ao grande salão, salvo quando os grandes candelabros, carregados de velas, os iluminavam, como naquela noite.

Estavam postas três mesas: a do Rei, que ocupava a sala de jantar propriamente dita, ou refeitório; a dos cavaleiros e grandes oficiais da casa real, à qual se sentavam os convidados de importância e, por fim, a dos esmoleres e escudeiros. Uma quarta acolhia, fora da zona dos aposentos, os oficiais de baixa patente e os peregrinos, ou os viajantes perdidos que, por acaso, buscavam hospitalidade. Na mesa do Rei, a mais brilhante e mais bem servida, as mulheres eram raras, salvo quando a Rainha, Carlota de Sabóia, visitava o seu marido.

Naquela noite, eram duas e foi com algum orgulho que Fiora tomou lugar à esquerda do soberano. A princesa Joana, encantadora apesar de um físico desgracioso sob uma coifa de um azul doce salpicado de ouro combinando com um vestido de cendal, estava sentada junto do convidado de honra, este sentado à direita do Rei.

Aos trinta e sete anos, Giuliano della Rovere era, sem dúvida, o mais bem sucedido dos sobrinhos de Sisto IV. Grande e bem constituído, parecia-se mais com um condottiere do que um homem da Igreja com as suas mandíbulas carnívoras e os seus olhos de caçador de órbitas cavadas, que semicerrava frequentemente para apurar a visão. A cor púrpura ia bem com a sua tez morena e com os cabelos negros cortados segundo o desenho do solidéu escarlate que os tapava. Perfeitamente barbeado, o rosto ossudo era duro, mas sabia sorrir com alguma ironia que não era sem encanto e o perfil imperial parecia feito para aparecer em medalhas.

Núncio do Papa em Avinhão, era titular de um grande número de bispados dos quais o de Lausannne, o de Messine e o de Carpentras e a 3 de Julho daquele ano de 1478 recebera, também, o de Mende, para o qual viera em busca de aprovação por parte de Luís XI. Aprovação graciosamente concedida: não era a primeira vez que ambos se encontravam e o Rei tinha um fraco por aquele homem elegante de modos rudes que diziam violento, mas que possuía uma inteligência aguda e que sabia manejar a astúcia quase tão bem como ele mesmo. Ali cessava a semelhança porque, amigo das letras e das artes, o cardeal della Rovere levava uma existência faustosa graças à considerável fortuna que lhe constituíra o seu tio. Uma existência muito diferente da de fidalgo rural habitual do Rei de França.

Quando, apresentada por este, Fiora dobrou o joelho para beijar o anel pastoral na ocorrência uma fabulosa safira em forma de estrela o núncio deixou cair sobre ela um olhar interessado:

Tornar-se-ia, em 1503, no temível Papa Júlio II.


Estivestes recentemente em Roma, creio, Madame?

Com efeito, monsenhor.

É uma pena não terdes podido apreciar as suas belezas...

Essa possibilidade não me foi oferecida, já que me limitei a passar de uma prisão para outra.

Há prisões e prisões. De resto, quando escolhestes Florença, o Santo Padre lamentou-o vivamente, porque estava e continua a estar cheio de benevolência para convosco. A sua amizade ter-vos-ia assegurado alguns dias agradáveis.

Dignai-vos agradecer-lhe os bons sentimentos, mas o seu espírito é demasiado brilhante para não compreender os meus. E esses são os de Florença, monsenhor, e eu só posso deplorar os dramas de que a minha pátria tem sido o teatro.

Dramas que, infelizmente, se agravam. Por que não falarmos deles um destes dias?

Falar de política convosco? Mas, monsenhor, eu não entendo nada de política.

Não vos rebaixeis, Madame. O Santo Padre tem a vossa inteligência em grande consideração e a vossa amizade com o Rei de França só reforça essa opinião. Nós podíamos, os dois, fazer um bom trabalho...

Tendo dito aquilo, della Rovere afastou-se após ter saudado a jovem com uma inclinação de cabeça. As trombetas de prata soaram para o jantar e cada um tomou o seu lugar. O Rei, que depois de ter apresentado Fiora, se afastara para conversar com o arcebispo de Tours, regressou para conduzir ele próprio o cardeal-núncio à sua poltrona.