Beberam, portanto, à saúde do Rei Luís e depois Fiora, Léonarde e Khatoun, a quem tinham destinado um leito perto do quarto da sua jovem patroa, recolheram aos seus aposentos onde já dormia o pequeno Philippe sob a guarda da sua ama.

Se Fiora ficara, à chegada, um pouco inquieta sobre o que o seu pessoal originário de Tours pensaria de Khatoun, em breve ficou tranquilizada. A gentileza e alegria da jovem tártara fizeram esquecer o seu aspecto um pouco exótico. Péronnelle encontrou-lhe, até, uma certa semelhança com a pequena estátua de Santa Cecília que velava sobre o órgão do priorado de Saint-Côme. Porém, a boa mulher fez questão de esclarecer um ponto que a preocupava:

Ela... ela é cristã?

É claro que sim respondeu Fiora. Foi baptizada na igreja da Santíssima Trindade, em Florença, com o nome de Doctrovée, santa patrona do décimo dia do mês de Março... mas nós sempre lhe chamámos Khatoun. O meu pai achava que o nome lhe ia bem, porque ela se parecia com um gatinho.

É verdade aprovou Florent. Um gato bem bonito! E foi assim que Khatoun fez a sua entrada na Casa das Pervincas, onde se instalou com toda a simplicidade, como se a conhecesse desde sempre: a sua espantosa capacidade de adaptação facilitara-lhe muito a vida quando fora separada de Fiora e do universo dourado da sua infância.

Nessa noite, Léonarde mandou-a deitar-se, porque não teria permitido a ninguém que ajudasse o ”seu cordeiro” na toilette da noite e no ritual do deitar:

Há muito tempo que isto não me acontece! declarou ela firmemente, enchendo uma bacia com um jarro de água.

Após ter aplicado longamente uma loção no corpo de Fiora com a ajuda de uma esponja para o livrar das poeiras de uma cavalgada de vários dias, a governanta secou-o com uma toalha fina e depois, empunhando uma escova de crina, desembaraçou os cabelos e escovou-os com vigor.

Khatoun, o vosso filho e Marcelline dormem a sono solto declarou ela tranquilamente. Estamos sós. Talvez me possais dizer a verdade?

A verdade?

Sim. Sabeis muito bem, o contrário de mentira e ilusão... Porque foi uma ilusão aquilo que contastes perante o pessoal durante aquele jantar memorável. Eu quero saber o que vos aconteceu na realidade!

Pensais que menti?

Não penso, tenho a certeza.

Que vos faz pensar desse modo? perguntou Fiora, divertida.

Vós sempre tivestes a infelicidade de corar quando mentis, meu anjo, e esta noite corastes muito. O vinho de Vouvray talvez tenha alguma culpa, mas sou capaz de apostar a minha vida em como entre a vossa estadia no convento, o vosso longo combate contra aquele Papa incrível, a vossa amizade com a condessa Catarina e aquela viagem até Florença para tentar salvar os Médícis, aconteceram... coisas! Aliás, parece que acabastes por ficar algum tempo em Florença?

Reconheço-o. Vendo que era possível viver ali normalmente, confesso que até à chegada de Commynes acalentei a ideia de vos mandar buscar com o meu pequeno Philippe e recomeçar lá uma vida parecida com a de outros tempos, porque... Lourenço guardou a maior parte da minha fortuna.

A sua hesitação imperceptível, antes de pronunciar o nome do Magnífico, não escapou a Léonarde. Fiora constatou-o ao encontrar o seu olhar no espelho... e constatou também, um pouco irritada, que corara de novo.

Lourenço? sussurrou a velha solteirona, erguendo a massa de cabelos negros e sedosos para a arejar. Parece-me que a vossa voz treme um pouco ao pronunciar esse nome!

Bruscamente, Fiora levantou-se e, apertando contra o peito o tecido fino que a envolvia, começou a andar de um lado para o outro sobre o tapete do seu quarto. Léonarde não disse nada e deixou-a andar. Ao cabo de uns momentos, a jovem parou diante dela:

De qualquer maneira, eu tinha intenção de vos dizer tudo. Eu fiquei em Florença, é verdade e a culpa é de Lourenço. Na noite do assassínio da catedral, ele tornou-se meu amante... e, mesmo quando soube que Philippe estava vivo, não me foi fácil separar-me dele. Dai-me uma roupa mais cómoda, Léonarde, e sentai-vos perto de mim aqui, em cima da cama: eu vou contar-vos tudo pormenorizadamente.

Estais certa de não estar demasiado cansada?

Que hipócrita me saístes! disse Fiora, rindo. Há uma hora que me encharcais com água fria. Não me ides dizer que não tínheis uma ideia preconcebida?

Confesso disse Léonarde com bom humor mas prometo-vos que preparei, para daqui a pouco, um chá de tília, para que possais passar uma boa noite.

Já passava da meia-noite quando Fiora recebeu a tisana em questão e deslizou por entre os lençóis frescos que cheiravam a hortelã e a pinheiro. Enquanto a bebia, os seus olhos, por cima da chávena, interrogavam os de Léonarde de pé, de braços cruzados, junto da sua cama:

Não vos faço horror?

Porquê? Porque, crendo-vos viúva, deixastes que a natureza falasse e vos entregastes a um homem... com quem mais de uma mulher sonha? Aquele louco do Demétrios deve, aliás, ter-vos dito o que pensava?

É verdade. Ela pareceu compreender que, apesar de não o amar verdadeiramente, eu podia ser feliz com Lourenço...

Espantar-me-ia muito se ele vos tivesse pregado as mortificações e o convento! Aqueles gregos têm uma moral muito própria, mas, na ocasião, ele teve razão: vós demonstrastes uma coragem de homem e tínheis direito a uma recompensa. E agora dormi e não penseis mais nisso. Amanhã será um novo dia... e o começo de uma nova vida. É para esse lado que tendes de olhar.

Tendo dito aquilo, Léonarde debruçou-se para beijar Fiora e depois, após ter declarado que não acendia a vela de vigia por causa dos mosquitos particularmente vorazes naquele Verão, abandonou o quarto de Fiora e foi para o seu. Ali, antes de se deitar, permaneceu durante muito tempo de joelhos diante de uma estatueta de Nossa Senhora de Cléry que Luís XI lhe oferecera para nela descarregar as suas esperanças e orações durante a longa ausência de Fiora. A velha solteirona tinha muitas mercês a formular pelo regresso da viajante, mas não se pôde impedir de acrescentar uma outra oração, no sentido de que novas provações fossem poupadas à filha do seu coração...

No dia seguinte de manhã, ao chegar à cozinha, encontrou Douglas Mortimer. Sentado confortavelmente, o escocês regalava-se com um patê de coelho de que Péronnelle lhe servia em porções generosas. Aquele espalhava-as sobre grandes fatias de pão. A cada porção correspondia uma pequena cebola de conserva em vinagre, que ele tirava de um pequeno pote de barro com a ponta da sua faca. O conteúdo de um grande pichel de vinho de Orleães ajudava a deslizar tudo.

Vendo entrar a jovem, ele levantou-se e saudou sem abandonar, por isso, a sua fatia de pão e a sua faca:

O Rei mandou-me ter convosco, donna Fiora explicou ele e enquanto esperava que acordásseis, a dama Péronnelle deu-me com que aguardar com paciência.

Fez muito bem e eu vou fazer-vos companhia. Tenho fome e esse patê cheira tão bem... Mas, por que razão o nosso sire vos enviou logo de manhã? Trazeis alguma mensagem importante?

Sim e não. O Rei convida-vos para jantar esta noite, mas eu sou um madrugador, que gosta muito de organizar o seu dia logo que abre os olhos. Além disso, a ideia de vir passar um momento na vossa cozinha não é nada desagradável concluiu ele com bom humor.

O Rei dá-me uma grande honra disse Fiora puxando a terrina para ela. Mas estarão presentes outros convidados e eu gostaria de falar a sós com ele.

Também ele. É por isso que quer que estejais lá por volta das quatro horas, a hora do seu passeio a pé, ou a cavalo. Hoje será a pé. Podereis dar a volta à horta, ou ao pomar, ou visitar as cavalariças e a montaria...

À hora mencionada, Fiora, escoltada por Florent, muito orgulhoso por reencontrar o seu papel de cavaleiro de honra, penetrou no pátio de Plessis e pôs pé em terra perto do velho poço. A sua toilette levantara-lhe alguns problemas. Ela sabia como o seu real anfitrião apreciava a simplicidade, sobretudo se iam caminhar pelos campos, mas, por outro lado, ele gostava que se respeitasse um certo decoro e, portanto, um certo requinte quando se tinha a honra de se ser aceite no seu séquito particular. Assim, após muita reflexão, Fiora optara, com a aprovação de Léonarde, por um vestido de seda sem reflexos, com desenhos negros e brancos e com uma estreita fita verde sob os seios. Uma pequena coifa, da mesma cor de folha jovem e nublada por uma musselina branca engomada, tapava-lhe a cabeça. Uma única jóia lhe sublinhava o decote: a quimera de ouro com olhos de esmeralda que usara na noite do seu casamento com Philippe e que Léonarde conseguira salvar do saque do palácio Beltrami.

A jovem nem teve tempo de chegar à porta do castelo: o Rei vinha a sair. Ao vê-la, ele teve uma exclamação de alegria e aproximou-se dela em passo vivo, ao mesmo tempo que ela dobrava profundamente o joelho para o saudar e dissimular, com aquele gesto de respeito, a vontade de rir que sentia. Luís XI, com efeito, vestido, como era seu hábito, com uma curta túnica cinzenta que lhe chegava aos joelhos e apertada por um cinto de couro, tinha na cabeça a cobertura mais espantosa que Fiora alguma vez vira. Era, enfiada sobre o gorro de seda vermelha que lhe cobria as orelhas reais, uma espécie de chapéu cardinalício negro, cujas abas, muito largas e de um dedo de espessura, lhe cobriam por completo os ombros e o enchiam de sombra. Com a cabeça tapada daquela maneira, a sua semelhança com um cogumelo era irresistível e o sorriso que Fiora lhe ofereceu brilhava de tanta graça que ele não se deixou enganar.

É o meu chapéu que vos diverte, donna Fiora? Bem, ficais a saber que gosto muito dele, porque, quando está calor, vale uma pequena casa e, quando chove, tapa-me melhor do que os meus chapéus habituais, que se transformam em goteiras... Foi uma ideia que tirei ao bispo de Valência.