Abri, Nosso irmão e lede! disse-lhe Sisto IV. Quando descobriu o que tinha entre as mãos, o cardeal ficou tão vermelho como o seu traje. O latim do Rei Luís era, com efeito, suficientemente veemente para justificar todos os receios e enquanto desenrolava a prosa real, Estouteville perguntava a si próprio se o embaixador não deixaria a cabeça em Roma:
”Faça o Céu com que Vossa Santidade tome consciência do que faz, escrevia o rei e que, se não quer defrontar os Turcos, que renuncie, pelo menos, a prejudicar quem quer que seja que não concorde com Seu ministério. Porque eu sei que Vossa Santidade não ignora que os escândalos previstos no Apocalipse caem hoje sobre a Igreja e que os autores desses escândalos não sobreviverão, conhecendo o mais terrível fim, tanto neste mundo como no outro. Preze ao Céu que Vossa Santidade esteja inocente dessas abominações...
A voz do prelado estrangulou-se um pouco ao pronunciar as últimas palavras, mas estas não foram menos inteligíveis. Furioso, Sisto acabava de saltar do seu trono e lançava uma espécie de urro vingador que terminou numa série de imprecações:
Filho da iniquidade! Esse Rei vai saber quanto vale a minha cólera! Ousar insultar-Nos assim? Vamos excomungá-lo, vamos interditar-lhe o reino...
Texto integral da carta recebida pelo Papa das mãos de Philippe de Commynes.
Então, Commynes interveio:
O meu Rei não fez nada que mereça isso, Mui Santo Padre! É dever dos príncipes cristãos chamar a atenção do trono de São Pedro para as suas responsabilidades. Quando as velas turcas se aproximam lentamente das costas adriáticas, Vossa Santidade, em vez de tentar juntar a Itália sob a Sua mão augusta para opor ao Infiel uma força forte e unida, só sonha com a destruição de Florença...
Porque Florença merece ser destruída. Ousar enforcar o arcebispo de Pisa, ousar reter como refém o nosso cardeal-legado de Perúsia...
Monsenhor de Médicis não reteve o cardeal Riario como refém: pelo contrário, ofereceu-lhe o asilo do seu palácio para lhe evitar o destino do arcebispo Salviati. Florença é uma cidade piedosa e fiel a Vossa Santidade, mas não pode aceitar que em plena missa de Páscoa, no instante sagrado da Elevação, lhe assassinem os príncipes. O Rei de França não apreciou nada o... direi o incidente de Santa Maria del Fiore. E não é o único na Europa.
Nós não temos questão nenhuma com ele!
A sério? Que Vossa Santidade reflicta! O Rei não alimenta qualquer intenção hostil para com o papado. Mais, encarregou-me de oferecer a sua ajuda para combater o Turco, uma ajuda a não desprezar. Mas se Vossa Santidade se obstina em querer destruir Florença... ou a oferecê-la pela violência ao Seu sobrinho, o conde Girolamo Riario, essa ajuda irá para Florença. Que Vossa Santidade queira, por outro lado, recordar-se dos direitos familiares que a França conserva sobre o reino de Nápoles, usurpado por Afonso de Aragão. Se o Rei decidisse lembrar-se desse pequeno Estado e desejasse reconquistá-lo, Roma poderia ver-se numa posição enganadora. Por fim, suplico a Vossa Santidade que tome em consideração as suas... finanças.
As nossas finanças? Que significa isso?
Que neste mesmo dia de hoje o Rei, meu senhor, deverá ter publicado uma ordem interditando as gentes da Igreja de se deslocarem a Roma... ou de enviar para cá seja que dinheiro for, sob pena de pesadas multas.
Que dizeis?
A surpresa de Vossa Santidade espanta-me. Ela não deve ignorar que o Rei, que achou por bem abolir a Pragmática Sanção de Burges, está a pensar, muito seriamente, restabelecê-la. Essa ordem é apenas o começo.
E vós ousais vir dizer-Nos isso, cara a cara?
A quem mais poderia dizê-lo? Santo Padre, o meu Rei, o Rei ”Mui cristão”, não usurpou esse título a ninguém. Mais piedoso do que ele, mais devotado aos interesses de Deus e da sua mui Santa Mãe, não se pode encontrar. A sua preocupação está cheia de devoção filial e do desejo profundo de ver brilhar o trono de Pedro, tal como no tempo de Inocêncio, sobre todos aqueles que amam e servem a Cristo. A ameaça turca é real, urgente, e antes de responder por meio do anátema seria conveniente examiná-la com espírito frio e lúcido.
Como o do Rei de França?
Exactamente, porque Luís é soberano antes de ser homem, pai, ou o que quer que seja, e a glória de Deus é-lhe mais querida do que a sua.
Pensando não ter nada a acrescentar, o embaixador dobrou o joelho uma vez mais e, como o exigia o uso, que proibia que se virasse as costas ao Papa, começou a recuar na direcção da porta. Em vez de o acompanhar, o cardeal d’Estouteville tomou o seu lugar junto do trono sem parecer aperceber-se da tempestade próxima que se acumulava sob as augustas pálpebras:
Tendes mais alguma coisa a acrescentar? perguntou o pontífice.
Com efeito, e peço desculpa, mas Vossa Santidade é demasiado amiga da justiça e demasiado preocupada com o bem-estar dos Cristãos para que eu não a informe de um facto, mínimo, sem dúvida, mas ao qual eu A acho susceptível de dar um preço.
Que facto é esse?
Trata-se de... donna Fiora Beltrami, que Vossa Santidade, na maior das boas-fés, casou, há coisa de três meses, com o jovem Carlo del Pazzi.
O rosto sanguíneo de Sisto IV, mais uma vez, ficou da cor de um tijolo:
Isso é um assunto de que Nós não gostamos de falar e vós devíeis sabê-lo, Nosso irmão em Jesus Cristo. Essa mulher respondeu com a mais negra das ingratidões e com uma fuga vergonhosa às indulgências com que Nós a queríamos cumular, primeiro por piedade e depois porque ela Nos parecia digna da Nossa benevolência. Que temos mais a reprovar-lhe?
Nada, Muito Santo Padre, absolutamente nada... mas seria sensato dar a saber à Chancelaria do Estado que ela deverá anular o casamento e até... apagá-lo completamente dos seus registos.
Apagá-lo? E porquê? Um casamento que Nós mesmos celebrámos na nossa capela privada... e na vossa presença, cardeal? Se existia um impedimento a essa união, por que não a destes a saber então, como exige o ritual de uma cerimónia nupcial?
Estava na ignorância, Muito Santo Padre e Vossa Santidade teria rejeitado com horror a ideia de celebrar uma tal união se...
Se o quê? Parai de Nos fazerdes andar às voltas, por todos os santos do Paraíso!
Se soubesse que essa jovem não era viúva, como nós pensávamos... e como ela própria também pensava.
O quê?
Commynes encarregou-se de assestar o último golpe com um júbilo interior que necessitou, para não ser demasiado evidente, de todos os recursos da sua diplomacia:
Nada mais verdadeiro, Mui Santo Padre. O conde Philippe de Selongey, condenado à morte, subiu, com efeito, ao cadafalso de Dijon... mas voltou a descer são e salvo, porque as ordens do Rei eram para só lhe darem a conhecer a sua graça no instante supremo.
Seguiu-se um silêncio pesado, perturbado apenas pelos pios das aves que ocupavam, na sala vizinha, um grande viveiro dourado. O Papa lançou um profundo suspiro-.
E... ela? Onde está ela neste momento?
Segundo o que consegui saber, vai a caminho de França, Mui Santo Padre...
E Commynes, com uma última e profunda reverência, abandonou a sala do Papagaio.
Segunda parte
CAMINHOS SEM SAÍDA
CAPITULO IV
CONVERSAR À SOMBRA DE UMA CEREJEIRA
O fim do dia aproximava-se, algumas semanas mais tarde, quando Douglas Mortimer deixou Fiora e Khatoun à entrada do velho caminho sombreado de carvalhos veneráveis que ia dar à Casa das Pervincas.
Eis-vos chegada a bom porto! disse ele, saudando-a. E não precisais de testemunhas para encontrar os vossos...
Podíeis entrar para vos refrescardes? A etapa foi longa e o dia quente.
Encontrarei tudo isso em Plessis. Amanhã, com a vossa permissão, virei visitar-vos, saudar a dama Léonarde e ver se o vosso filho cresceu muito.
O coração de Fiora batia mais depressa do que o costume enquanto o passo do seu cavalo a levava pelo caminho por entre as ervas daninhas dos seus taludes. O seu filho, na sua memória, não era mais do que um pequeno embrulho esperneando nos seus braços, infinitamente doce e eis que se aproximava do seu primeiro ano de vida sem que a sua mãe soubesse nada dele. A jovem não recebera os seus primeiros sorrisos e, quando ele sofrera de um qualquer mal, não fora ela que se debruçara sobre o seu berço e perdera as noites junto dele. Muito certamente, vê-la-ia como uma estranha e, no momento de abordar esse universo, Fiora não podia deixar de sentir alguma apreensão.
Quando saíram da cobertura das árvores e a casa apareceu, rosa e branca no seu ninho de verdura, Khatoun bateu palmas, encantada com o espectáculo. O jardim era um autêntico ramo de flores e as pervincas, ao assalto do terraço, transbordavam do pequeno bosque e espalhavam-se como um tapete real. Ao fundo, o Loire brilhava, reflectindo os raios vermelhos do Sol sumptuoso que parecia encher de chamas os edifícios claros do priorado de Saint-Côme. O ar cheirava a flores, a pinheiro, a erva recentemente cortada e um pouco a lodo vindo do rio.
Como é belo! suspirou Khatoun. Mas... não está ninguém?
Uma voz, que se parecia alegremente com um rondo antigo, brotou das profundezas do jardim e aproximou-se. Por fim, um jovem desembocou de um arbusto de aristolóquias, transportando aos ombros uma criança que ria agarrada aos seus cabelos cor de palha. Uma das montadas das jovens relinchou, o que fez com que ele virasse a cabeça. O jovem estacou, enquanto os seus olhos azuis se esbugalhavam. Ao mesmo tempo, com um gesto maquinal, retirou a criança dos ombros e instalou-a no braço.
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