Não deves desculpas a ninguém, Fiora! A ninguém!
Não me condenas?
A que título? Não tenho o direito, nem quero.
Ele vai, talvez, morrer, sabes?
Não vai nada morrer. Florença não o deixará partir e vai bater-se por ele. Quanto a ti, acabo de to dizer, não te escondas por trás de desculpas e cessa de mentir a ti própria. Tu desejáva-lo, tal como ele te desejava... e tanto melhor se deixares aqui um pouco do teu coração. Talvez, um dia, venhas cá buscá-lo.
Demétrios tinha razão. De regresso por volta do meio-dia, Esteban trouxe notícias consigo. A Senhoria, por unanimidade, ia responder ao Papa, dizendo-lhe que não recebia da Santa Sé ordens de carácter temporal. Lourenço não cometera qualquer falta, e o povo amava-o. Estava-lhe reconhecido por ele o ter defendido contra aqueles que procuravam tirar-lhe as suas liberdades... Quanto ao clérigo toscano, com os prelados à cabeça, afirmava a sua intenção, caso a interdição fosse lançada, de recusar aplicá-la e de reclamar a convocação de um concílio geral.
Melhor ainda. Fora oferecido um corpo de guarda a Lourenço, um corpo que o seguiria para toda a parte e Savaglio marcharia à sua frente, de espada nua, porque se sabia de que armadilhas era capaz o ódio de Sisto IV. Quanto à guerra, todos começavam, já, a preparar-se e o ouro afluía para comprar tropas tão numerosas quanto possível.
Eu não vou poder fazer nada, já que me vou embora...
Rezarás por nós disse Chiara, que aparecera com Colomba para uma derradeira visita, já que Fiora não regressaria à cidade. Assim o decidira Lourenço no decurso da sua última noite, a fim de evitar que ela fosse apanhada pela turbulência do povo.
Eu não tenho o hábito de rezar, sabes?
Léonarde ensina-te: ela fá-lo muito bem. Vou ter saudades tuas. Tive a impressão de regressar aos dias de antigamente!
Por que olhar para trás? Nós somos jovens e temos, espero, muitos anos diante de nós. Talvez possas ir ver-me a França? É um país magnífico, diferente deste, claro, mas tu gostarias de o conhecer. Além disso, terias enorme sucesso!
Não digo que não. Mas, primeiro, tenho de convencer o tio Lodovico sobre o interesse das borboletas francesas!
De braço dado e seguidas por Colomba, que fungava para o seu lenço, as duas jovens seguiam pela longa alameda de ciprestes que ia dar à inlla e que a dissimulava, ao mesmo tempo, de olhares estranhos. Um criado levava, pela rédea, as mulas das visitantes. Subitamente, Fiora viu uma pedra caída na erva, que vinha, sem dúvida, do alto do muro que sublinhava a dupla fila de árvores de um verde quase negro. A jovem pegou nela e, de repente sonhadora, segurou-a na concha da mão por um instante:
Lembras-te do que te disse na manhã de São João?
A pedra arrancada?
Sim. Sabes, eu pensava que ela tinha retomado o seu lugar no muro a que pertencia. Mas estava enganada. Esta pedra é um sinal...
Não. Repara! O lugar dela está marcado... ali! Só tens de a pôr lá.
Não. Ela voltaria a cair. Seria preciso um pouco de argamassa para a fixar e eu não tenho nenhuma. Creio que vou guardá-la e levá-la comigo como recordação.
O seu lugar vai, portanto, ficar vazio, como o teu? Espero que regresseis um dia, uma e outra, para o ocupar.
E Chiara, de lágrimas nos olhos, beijou a amiga, saltou para a sua mula e fugiu como se houvesse um incêndio, perseguida pelos gritos que Colomba lançava sem qualquer cerimónia. Fiora ficou só no fim da alameda.
Assim, os laços que a ligavam à sua querida Florença, uns menores, outros maiores, cediam um após outro, sem que ela pudesse saber se voltariam a unir-se um dia. Tivera de renunciar a regressar ao túmulo do seu pai e essa decisão fora-lhe penosa, mas Chiara prometera-lhe ir lá rezar todas as semanas em seu nome. No entanto, o mais duro foi, na manhã da partida, a última separação, o adeus à casa e àqueles que nela iam ficar.
A partida teve lugar no décimo quarto dia do mês de Julho, dia de São Boaventura, doutor da Igreja e companheiro de Francisco de Assis. Para celebrar a ocasião foi rezada uma missa no pequeno convento franciscano de Fiesole onde, numa noite de Inverno, Philippe de Selongey e Fiora se tinham unido. Esta, antes de se fazer ao caminho, o caminho que a levaria ao seu marido, queria ouvir missa por uma razão que lhe era obscura, mas parecia-lhe que, assim, renovaria, no local do primeiro juramento, os laços que acreditava quebrados pela morte. De manhã cedo, quando o dia nascia, ela ajoelhou-se perante o tribunal da Penitência, na sombra fria da capela, para ali lavar o seu pecado carnal. A jovem desejava sinceramente apagá-lo da sua alma, sabendo ao mesmo tempo que não sentia arrependimento e que a sua contrição não passava de uma fachada. No entanto, as palavras sagradas da absolvição agiram no seu espírito como ela esperava e restituíram-lhe o bem-estar. A amante de Lourenço deu lugar à condessa de Selongey e foi em passo firme que se juntou a Douglas Mortimer, que a esperava na villa com os três homens que constituiriam a sua escolta.
Fiora abraçou um a um, com os olhos enevoados e a voz rouca, aqueles que deixava para trás. A Esteban, disse:
Confio-vo-los, Esteban, porque sois o mais forte. Velai por eles, sem vos esquecerdes de vós próprio. Não vos esqueçais que sois meu amigo.
A Carlo:
Não tivemos muito tempo para nos conhecermos, meu irmão, mas o pouco que tivemos foi suficiente para que eu vos fique, para sempre, profundamente dedicada. Espero, de todo o meu coração, que voltemos a encontrar-nos.
Por fim, a Demétrios:
Tu foste e continuas a ser como um pai para mim e custa-me muito deixar-te. Suplico-te, diz-me que isto não é um adeus e que em breve nos voltaremos a ver!
Tomando-a nos braços, ele apertou-a contra si sem conseguir reter as lágrimas:
Os meus olhos obscurecem-se, pequena Fiora, e o livro do Destino abre-se cada vez mais raramente diante de mim, mas eu sei que não estaremos verdadeiramente separados. E agora vai, depressa! Um filósofo grego deve permanecer impassível em todas as circunstâncias e, neste momento, não me sinto nada filósofo...
Girando nos calcanhares, o médico correu a fechar-se na velha torre que lhe servia de observatório. Fiora foi ter, então, com Mortimer. De pé junto do seu cavalo, ele segurava-lhe o estribo e ela subiu para a sela enquanto o escocês prestava o mesmo serviço a Khatoun de uma maneira um pouco diferente: contentou-se em pegar nela e pousá-la no dorso do animal sem mais esforço do que se estivesse a pegar num simples saco e acompanhando o seu gesto com um sorriso beato que fez corar a jovem tártara e divertiu Fiora. O temível sargento la Bourrasque interessava-se, como era evidente, por aquela pequena criatura frágil e doce que não tinha o ar de pertencer ao mesmo planeta que ele. Mortimer estendeu delicadamente o seu manto sobre o cavalo, sorriu de novo e depois foi ter com a sua própria montada sem se aperceber de que Fiora escondia um sorriso sob o véu que lhe cobria a cabeça. Que a viagem começasse sob uns auspícios tão amáveis parecia-lhe um bom presságio.
Abandonando Fiesole, o pequeno grupo desceu tranquilamente a colina até ao vale do Mugnone, pelo qual seguiriam até à estrada de Pisa e Livorno. O tempo estava bom e uma brisa vinda do mar deixava esperar que o dia não seria muito quente. Fiora, junto de Mortimer, olhava para diante e fazia um esforço para não se virar mau grado a vontade que tinha, para que o arrependimento não invadisse a sua recente serenidade.
Subitamente, ao atingirem a aldeola de Barco, a jovem estremeceu. Todos ao mesmo tempo, como se obedecessem a uma ordem precisa, os sinos de Florença, de uma Florença excomungada, de uma Florença atingida pela interdição, começaram a tocar a um ritmo alegre no ar azul da manhã. Khatoun aproximou-se de Fiora, que parara para melhor escutar:
É ele que te está a dizer adeus murmurou ela.
Talvez... Mas há outra coisa. Os sinos não tocam um adeus, tocam um hino de esperança. Florença está a dizer-nos que a aventura não lhe mete medo, que continua forte e livre e que nada nem ninguém a fará mudar... E agora, vamos! Temos de continuar!
Toda a emoção daquele instante evitou que ela reparasse num homem que a espiava, escondido por trás de um tronco de oliveira. Esse homem era Luca Tornabuoni...
Dois dias mais tarde, no momento em que, no porto piscatório de Livorno, a caravela que ia conduzir o pequeno grupo até Marselha içava nos seus três mastros as grandes velas, Philippe de Commynes, em Roma, fazia soar, sob os tacões das suas botas, as lajes de mármore da sala do Papagaio. Ao fundo, escondido no seu trono como um animal emboscado, Sisto IV via-o aproximar-se por entre as pálpebras semicerradas. Ao lado do embaixador francês, o traje púrpuro do cardeal-carmelengo Guillaume d’Estouteville deslizava sem ruído... Diante deles trotava o mestre-de-cerimónias Patrizi, mais do que nunca parecido com um ratito aterrorizado.
Após o ritual solene das saudações protocolares, o Papa, sem romper o silêncio de mau agoiro em que se mantivera após a entrada do enviado de Luís XI, olhou por um momento para o rosto cheio e tranquilo do flamengo cujos olhos azuis não se privaram de o examinar com uma certa curiosidade. Philippe pensou que aquele homem gordo correspondia à imagem que se fazia dele: parecia tão tinhoso quanto era na realidade. Por fim, do fundo do seu triplo queixo, o Papa grunhiu:
Que nos quer o Rei de França?
Commynes tirou da sua manga uma carta selada com o Grande Sinete, avançou dois passos e, com uma genuflexão, ofereceu-a ao Sumo Pontífice. Mas as suas mãos não deviam ser suficientemente nobres para transmitirem directamente a mensagem, porque foi d’Estouteville quem pegou nela e a estendeu ao Papa:
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