Ainda se fosse Inverno, mas durante a tarde vou transpirar tanto que a minha camisa e a minha pele ficarão da mesma cor desta maldita túnica!

Podes tirá-lo para dormir a sesta e eu dei ordem a Colomba para refrescar o teu vinho favorito disse Chiara, consoladora. Mas tu não enganas ninguém, tio Lodovico. Tu és demasiado Albizzi para te mostrares senão vestido de acordo com a tua posição.

Apesar do calor, o ancião fez as honras ao repasto composto de melões e fegatelli, pequenas salsichas de fígado com ervas, que regou com grandes copázios de Chianti. Um festim que o obrigou a repousar um pouco na frescura do seu quarto enquanto não chegava a hora de ir para uma das tribunas de onde os notáveis da cidade contemplariam a corrida do Palio.

Após a manhã, reservada às corporações que davam a Florença toda a sua riqueza, a tarde pertencia aos diferentes bairros da cidade, cujos campeões se defrontavam numa corrida de cavalos, montados sem sela e sem estribos num percurso preparado antecipadamente. O prémio era o palia, uma magnífica peça de tecido, a mais bela de toda a cidade, que o Magnífico entregava ao vencedor.

Cada bairro apresentava quatro estandartes sob cujas cores corriam quatro cavaleiros. Os estandartes do bairro San Giovanni (São João) eram o Leão Negro, o Dragão, as Chaves e o Esquilo; os da Santa Croce o Carro, o Boi, o Leão de Ouro e as Rodas; os de Santa Maria Novella a Víbora, o Leão Vermelho, o Leão Branco e o Licórnio; por fim, os do Santo Spirito, o bairro da outra margem do Arno, a Escada de mão, a Concha, o Chicote e a Quimera. E todos esses estandartes, alegremente coloridos, com os seus servos e muitas velas, iam em procissão até ao Baptistério.

1 Apenas Siena conservou esse fabuloso espectáculo admirado em toda a Europa.


A reunião acontecia diante da Senhoria, vestida com os adereços dos grandes dias de festa. O Velho Palácio cinzento estava cheio de estandartes e sedas. Entre as suas seteiras, uns mastros erguiam para o céu azul os emblemas das cidades vassalas, o de Florença ocupando o topo da torre como convinha a uma rainha. Em redor da praça onde tinham sido erguidas torres de madeira dourada representando as cidades vassalas ou aliadas, as janelas mostravam rios de brocados ou tapeçarias. A calçada, essa, parecia uma pradaria na Primavera com a mistura de trajes de gala e estandartes. Um largo espaço vazio, marcado por cordões de seda, cortava a praça: a passagem por onde galopariam, dentro em breve, os cavaleiros. O ar estava cheio de alegria, da excitação dos desafios lançados pelos portadores dos imensos estandartes. Estes faziam dançar e voar, a despeito do seu peso, os pesados tecidos pintados e bordados.

Na praça do Duomo, onde as grandes portas de bronze dourado do Baptistério deixavam ver a floresta de círios que o iluminavam, o espectáculo era diferente. Ali erguiam-se as tendas furta-cores dos proprietários dos cavalos que iam correr e, em redor, uns mastros, tão altos como as casas, ostentavam, alternadamente, o estandarte branco com o Lis vermelho de Florença e o estandarte azul com os Lis dourados do Rei de França.

A música dos grandes órgãos, das violas, das flautas, dos oboés e dos tamborins da catedral, apoiando o coro com maestria, enchia a praça e de cada lado do arcebispo, cuja capa de ouro era mantida aberta por dois diáconos, os acólitos balouçavam uns incensórios de prata. Estes deviam estar cheios até às bordas, porque as espessas volutas de fumo que se escapavam pelos orifícios subiam até à grande tribuna vermelha onde Fiora e os Albizzi estavam sentados, em lugares singularmente próximos das altas poltronas onde se iam instalar o Magnífico e o seu hóspede privilegiado.

Mais uma vez, o tio Lodovico praguejou. O incenso fazia-o tossir não era o único e pensar, com amargura, na frescura do vale do Mugello. Chiara acabou por repreendê-lo:

Pára de resmungar, tio Lodovico! Tens a sorte de escoltar a mulher mais bela da cidade e passas o tempo a pensar nas tuas borboletas! Está toda a gente a olhar para nós.

Era verdade. Todos os olhares estavam pousados em Fiora, verdadeiramente imperial no seu vestido púrpura. À passagem, suscitara aplausos e cumprimentos entusiastas: ”Longa vida à mais bela!” ”Tínhamos a estrela de Génova, mas agora a de Florença também brilha!” ”Feliz aquele que te possui!” E até, gritado em voz alta por um descuidado ou por um qualquer ignorante das catástrofes que o nascimento irregular fizera cair sobre Fiora: ”Bendita seja, entre todas, a mãe que te deu à luz e te fez tão bela!”...

A jovem respondia com um sorriso ou com um gesto gracioso da mão, feliz por saber que estava no coração daquele povo cuja versatilidade, no entanto, pudera avaliar. Mas as nuvens tinham desaparecido, expulsas pelo amor de Lourenço e a cidade inteira estava pronta a prostrar-se a seus pés, da mesma maneira que, em tempos, se prostrara aos de Simonetta. O senhor bem-amado elegera-a e isso era o suficiente para a coroar.

Aposto disse Chiara com satisfação que vais ser tu a entregar o palio ao vencedor.

Achas?

Tenho a certeza, senão, por que razão havíamos de estar na primeira fila e tu separada de Lourenço apenas por um curto espaço? E logo à noite vais ser a rainha do baile!

Esta tarde, talvez, mas logo à noite, no palácio Médicis, portanto em casa da mulher e da mãe de Lourenço, a situação pode tornar-se delicada.

Nem penses! Desde a morte de Giuliano que as mulheres da família não participam em qualquer festa. Elas ouviram missa esta manhã na capela privada, porque Madonna Lucrezia não quer entrar no Duomo onde o filho foi assassinado... Olha! Eis o teu príncipe!

As longas trombetas de prata, ornamentadas com um pendão de seda com as armas dos Médicis, soavam, com efeito e, rodeados por um brilhante cortejo, o Magnífico e o seu hóspede francês dirigiam-se para a tribuna onde todos se levantaram para os aplaudir. Ambos seguiam de mão dada para simbolizar o entendimento perfeito entre os dois países e saudavam com a outra mão. Por trás de Commynes, Fiora reconheceu Mortimer cuja alta estatura ultrapassava a maior parte dos homens presentes.

Alguns arqueiros da Guarda Escocesa escoltavam-no, juntamente com uma comitiva que parecia bastante numerosa. Visivelmente, o Rei Luís fazia questão de que o seu embaixador desse uma ideia do seu poder e dizia-se que toda aquela gente vinha carregada de presentes fabulosos para os amigos florentinos.

Chegados à base da tribuna, os dois senhores pararam para saudar em redor. Quando se viraram para ocupar os seus lugares, Fiora viu os olhares de ambos fixarem-se em si com uma admiração que a fez estremecer de alegria. O de Lourenço ardia com o fogo que ela tão bem conhecia, mas o sorriso de Commynes não conseguia apagar a espécie de melancolia que lhe enchia o olhar... Deve estar a pensar sussurrou Chiara que é pena a França ter perdido uma dama tão bela!

Nós somos amigos e ele nunca perderá essa amizade. Eu gosto muito de messire de Commynes, sabes?

Ele também, sem dúvida. E talvez mais do que pensas.

Não sejas tola! Tens uma imaginação...

Durante aquele curto aparte, os dois homens tinham subido os poucos degraus cobertos por um tapete vermelho, mas, em vez de se sentarem, viraram-se para Fiora, que mergulhou de imediato numa profunda reverência, oferecida tanto a um, como a outro. A voz de Lourenço soou, curiosamente metálica:

Falastes-me, sire embaixador, da amizade que vos une à mais bela das nossas damas e eu creio adiantar-me ao vosso desejo, conduzindo-vos a ela sem mais demoras.

É verdade, monsenhor e eu agradeço-vos. Senhora condessa de Selongey acrescentou ele em francês sinto uma profunda alegria por vos encontrar e saúdo-vos em meu nome e no do Rei meu senhor.

Seguiu-se um silêncio. Fiora, perturbada por ouvir aquele nome que já não era o seu, permaneceu durante um instante sem voz e apertou com força as mãos trémulas sem sequer retribuir a saudação ao visitante.

Sire Philippe murmurou ela. Vejo por trás de vós messire Mortimer. Ele deve ter-vos dito que eu já não tenho direito a esse nome...

É verdade, é verdade sussurrou Commynes. Mas... para que já não sejais a esposa do conde de Selongey seria preciso que ele estivesse morto. Ora... ele não está.

Que dizeis?

A verdade. Pelo que sei, messire Philippe está vivo. Vamos, minha amiga, componde-vos! Talvez eu tenha sido um pouco brutal, mas estava tão certo de vos provocar uma grande alegria...

E não duvidais, espero? Oh!... parece-me que tenho a cabeça perdida. Aquela execução...

... não chegou ao seu termo sangrento. O governador de Dijon tinha ordem de a parar no momento supremo. A espada do carrasco não degolou o vosso marido.

Sem se preocupar com o protocolo, Fiora deixou-se cair na sua cadeira, lutando contra a vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Vivo. Philippe estava vivo! Continuava a respirar, algures sob aquele céu infinito! Vê-lo-ia de novo, tocá-lo-ia, reencontraria os seus olhos, o seu sorriso, o calor das suas mãos! Com os olhos rasos de água, a jovem olhou para Commynes, que se debruçava sobre ela com inquietação:

Madonna! Estais muito pálida... e chorais!

De alegria! Oh, meu amigo, fostes bem imprudente! Não sabeis que uma felicidade assim pode matar?

Perdoai-me, então! Falaremos mais tarde, porque tenho muito para vos dizer...

Deixando Fiora com a sua amiga, que lhe ofereceu um lenço embebido em perfume, o embaixador juntou-se a Lourenço já instalado no seu lugar. As trombetas soaram de novo.

Não vais desmaiar, ao menos? perguntou Chiara, inquieta. Está toda a gente a olhar para ti, sabias?

Que olhem! Ao menos uma vez têm ocasião de olhar para uma mulher feliz, loucamente feliz!